29 agosto 2024

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 41: É pecado jurar?






Jorge F. Isah




O irmão Bruno fez um questionamento, após a aula passada, ao qual julguei procedente considerar um esclarecimento aqui. Durante a nossa aula, foi dito que o membro da nossa igreja deveria jurar a Deus que aceitaria, cumpriria e defenderia a declaração de fé da igreja. Então, ele me perguntou:

- Mas a Bíblia não diz que o crente não pode jurar? - Certamente se lembrando do Sermão do Monte.

Eu disse-lhe que não, que não há a proibição, mas sem muita convicção, naquele momento. Decidi estudar um pouco, ontem, sobre o assunto e cheguei à conclusão de que a minha resposta estava correta, ainda que proferida sem a base bíblica claramente definida. Portanto, começaremos lendo o trecho de Ex. 20.7, cujo texto é repetido em Dt 5.11: “Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão; porque o Senhor não terá por inocente o que tomar o seu nome em vão”.

Agora leiamos o Sermão do Monte, onde o Senhor Jesus diz: “Outrossim, ouvistes que foi dito aos antigos: Não perjurarás, mas cumprirás os teus juramentos ao Senhor. Eu, porém, vos digo que de maneira nenhuma jureis; nem pelo céu, porque é o trono de Deus; Nem pela terra, porque é o escabelo de seus pés; nem por Jerusalém, porque é a cidade do grande Rei; Nem jurarás pela tua cabeça, porque não podes tornar um cabelo branco ou preto. Seja, porém, o vosso falar: Sim, sim; Não, não; porque o que passa disto é de procedência maligna” [Mt 5.33-37, consonante com Tg 5.12].

O que temos aqui? Uma expressa proibição do Senhor para que não juremos? Ele está a ordenar-nos que qualquer jura é pecado ou se refere a um tipo específico de juramento? É o que veremos a seguir. Mas primeiro, definamos o termo, segundo o Michaelis:

Juramento: "1 Ato de jurar. 2 Afirmação ou negação explícita de alguma coisa, tomando a Deus por testemunha ou invocando coisa sagrada". 

Temos, no Antigo Testamento, a afirmação clara de que o homem não deve jurar em vão, ou seja, ele não pode jurar sobre algo que não pode cumprir, e se jurar, deve fazê-lo, certo de que tem de cumpri-lo, do contrário ele profanará o nome de Deus. Veja que o juramente é sempre em nome de Deus, e não em nome de alguma outra coisa. Não podemos jurar em nome de nós mesmos, pois somos inconstantes e seres caídos, sem autoridade. Nem podemos jurar em nome de outro elemento da natureza, seja o céu, a terra, as árvores, etc., porque, ao fazê-lo, colocamos o nosso juramento sobre algo criado, que em si mesmo não é fonte de nenhuma autoridade, e acabamos por invocar implicitamente o nome de Deus, que é a origem de tudo o mais, o criador de todas as coisas, e é por ele que elas vieram a existência e têm a glória e o poder que ele as deu. Ao fazê-lo, acabamos por jurar implicitamente, de uma forma ou de outra, em nome de Deus, que o princípio de todas as coisas e a causa primeira da criação.

O Senhor Jesus ordena que não se jure por nada criado, visto que os judeus, com o decorrer do tempo, usaram o artifício de jurar em nome do céu, da terra, do templo, em substituição ao juramento em nome de Deus; já que se recusavam e proibiam a pronúncia do nome sagrado, o tetragrama YHVH [Javé]. Com o tempo adotaram a fórmula de jurar em nome das coisas criadas, como um subterfúgio, um estratagema, para resolver o dilema de não se pronunciar o nome divino, considerado impronunciável por qualquer dos homens.

Cristo nos diz que não se deve proceder assim, e que assim o fazendo, cometemos pecado. Entre os judeus, especialmente fariseus, acreditou-se que o juramento, sendo em nome das coisas criadas, possibilitava o seu não cumprimento, de sorte que a autoridade para que determinado juramento fosse considerado válido ou invalido cabia exclusivamente às autoridades do templo. Com isso o homem se tornou, em última instância, a autoridade, aquele que controlava o que se devia cumprir ou não, à revelia do texto bíblico que exortava ao cumprimento de tudo o que se prometia, pois sempre era realizado em o nome do Senhor. Não há juramento que não seja em nome de Deus, pois nele está contido o poder supremo e absoluto, a autoridade absoluta e suprema. Por isso, até hoje, em muitos tribunais, os envolvidos no julgamento são obrigados a jurar dizer a verdade somente a verdade em nome de Deus, com a mão direita estendida e a mão esquerda sobre a Bíblia, implicando que aquela pessoa o está fazendo diante de Deus, em seu próprio nome. O que os judeus fizeram foi uma exceção, uma excrecência à ordem divina, e, agindo dessa forma, estavam em flagrante pecado e desobediência.

Contudo, o próprio Senhor jurou por si mesmo: “Então o anjo do Senhor bradou a Abraão pela segunda vez desde os céus, E disse: Por mim mesmo jurei, diz o Senhor: Porquanto fizeste esta ação, e não me negaste o teu filho, o teu único filho, Que deveras te abençoarei, e grandissimamente multiplicarei a tua descendência como as estrelas dos céus, e como a areia que está na praia do mar; e a tua descendência possuirá a porta dos seus inimigos; E em tua descendência serão benditas todas as nações da terra; porquanto obedeceste à minha voz. Então Abraão tornou aos seus moços, e levantaram-se, e foram juntos para Berseba; e Abraão habitou em Berseba. [Gn 22.15-19].
E,
“Porque, quando Deus fez a promessa a Abraão, como não tinha outro maior por quem jurasse, jurou por si mesmo” [HB 6.13- ver até o verso 17].

Claramente, o juramento nos remete a Deus, o Criador e Senhor de todas as coisas, ao qual devemos honrar e do qual somos porta-vozes. O profeta antigo, que recebia as palavras diretamente de Deus, e o atual, que as recebe das Escrituras, falam em nome de Deus. E é o nosso dever falar em nome do Senhor; algo que devemos ter sempre em mente, e, assim, pelo nosso falar, somos testemunhas não somente do que Deus diz, mas também daquilo que ele fez em nós. Usar e falar em nome do Senhor, logo, não é pecado, pelo contrário.

Há a ordem explícita para que o homem jure“O Senhor teu Deus temerás e a ele servirás, e pelo seu nome jurarás... Ao Senhor teu Deus temerás; a ele servirás, e a ele te chegarás, e pelo seu nome jurarás” [Dt 6.13, 10.20].

Não podemos é usar o nome de Deus em vão, pois quem o faz comete perjúrio [Sl 24.4], a profanação do sagrado, do nome santo de Deus, que é o próprio Deus. 

Em 2 Co 1.23, Paulo invoca a Deus como testemunha de que ele não podia ir a Corinto.

Não devia ser necessário o juramento. O nosso testemunho deveria falar por nós mesmos, de forma que sempre que dissermos sim ou não, a verdade esteja evidente e patente. De que as nossas promessas serão cumpridas e não negligenciadas; de que tudo o que falamos é verdadeiro e de que não mentimos. O juramento é uma forma de confirmar o que está sendo dito, e invocamos a Deus por testemunha daquilo que dizemos ou prometemos. O fato do homem ser mentiroso nos leva a jurar em nome daquele que nunca mente [Rm 3.4]; e por ele, devemos nos guardar da mentira, sendo verdadeiros.  

Notas: 1 - Estudo realizado na EBD do Tabernáculo Batista Bíblico

21 agosto 2024

Fome, de Knut Hamsun

 




Jorge F. Isah

 


Lá pelos meus dezenove, vinte anos, li este livro por indicação de Charles Bukowski, autor que sorvia compulsivamente, cujo estilo “despojado” de escrita admirava. Investi esforço e saí à caça de “Fome”, de Knut Hamsun, autor, inclusive, laureado com o Nobel. Até então, para mim, noruegueses eram pródigos na produção de bacalhau e petróleo; não imaginava que tivessem uma literatura “parruda” e um Nobel, apesar da Academia se instalar concomitantemente em Estocolmo e Oslo, jamais ouvira falar de um grande escritor, não obstante, seria suficiente como sinal de alerta, das coisas não serem como pareciam ser. Pois bem, acabei por encontrar uma reedição publicada pela Civilização Brasileira, com tradução de Carlos Drummond de Andrade.

Exemplar em mãos, passei à leitura, e, depois de três décadas, não me recordava de muitas coisas a não ser as andanças do personagem principal por Cristiânia (atual Oslo) em busca de trabalho, comida e abrigo, e notar algumas tênues semelhanças com Raskolnikov, de Crime e Castigo.

Ao passear pela Amazon, deparei-me com a nova edição da Editora Itatiaia, e resolvi lê-lo novamente. Algumas coisas se confirmaram: para um livro publicado em 1890, “Fome” tem uma simplicidade narrativa e estrutural quase inéditas. Não me lembro, no momento, de outro título, à época, a assumir essa posição.

Durante a leitura, foi possível notar a influência de Hamsun em autores como Hemingway, Fitzgerald, Miller e outros tantos, inclusive o próprio Bukowski. A cada página uma estranheza indefinida vinha intermitente, inexplicável, como alguém a girar em torno de si mesmo sem parar, feito piorra. Entretanto, engana-se quem não percebe as entranhas de “Fome”. O autor vive em constante dilema, seja no aspecto físico, a realidade da sua penúria e miséria, seja no insucesso da sua carreira de escritor, no amor, e em algum auxílio da sociedade, já àquela época tão preocupada e resguardada nas aparências. Se antes era um homem promissor, autor alvissareiro, bajulado por uns e outros, gradualmente se viu obrigado a penhorar livros, objetos pessoais, roupas e até mesmo os botões do seu casaco. Restaram-lhe as roupas de mendigo, sujas, puídas, desbotadas. Seria uma analogia ao seu estado de espírito? À degradação da sua alma? Como Dorian Gray no seu retrato?

“Sentado no banco, e absorto nessas reflexões, sentia-me cada vez mais azedo com relação a Deus, por causa de suas insistentes provações. Se ele supunha chamar-me para junto de si e aperfeiçoar-me pelo martírio, acumulando mortificações em meu caminho, estava um tanto enganado, podia garantir-lhe. Levantei os olhos para o Altíssimo, quase chorando de orgulho desafiador, e disse-lhe essas coisas uma vez por todas, mentalmente.” (pág. 23)

Esta mania que o homem moderno tem de eximir-se invariavelmente de qualquer culpa ou responsabilidade atribuindo-a a outrem, à sociedade ou a Deus, em última instância é apenas o reflexo do Adão perdido no Éden após a sua queda: culpa-se tudo e todos, menos a si mesmo, ao seu desejo ilícito e a sua imoralidade disfarçada, mas não menos exposta e saliente, como a se ver em meio às sombras, a fugir para a escuridão pensando ir à luz.

Se existe algo a propor loucuras na mente é a fome. Se há o “start” da fraqueza, é ela. Não subsistem os princípios morais, éticos e humanitários. Como a avalanche: é capaz de arrastar quem estiver por perto, sem muito esforço.

O personagem principal, cujo nome verdadeiro não sabemos, ao adotar vários no decorrer da trama, em seu orgulho e jactância, desce a escala moral em direção ao fundo do abismo. Entrega-se à mentira, dissimulação, furto, cobiça e tudo o mais que o seu estado deplorável permite. Entretanto, é incapaz de impedir a humilhação, o descrédito e a pilhéria. Vê-se, também, paranoico, enrolado e imerso na própria confusão criada. É a receita do desastre, agravado pelo desprezo à sociedade, à agitação urbana, aos valores impregnados na maioria das pessoas; ainda que, uma e outra, ao perceber-se alvo da gentileza e compaixão alheias, reconhece-as bondosas, mas trata quase imediatamente de despojar-se delas e as suas ações. Não pouco, me vi a perguntar: “Por quê?... Qual o sentido disso? De não se precaver e ser racional?... Parece não haver apenas uma indigência corpórea, mas espiritual; ao perder os sonhos, se encontrava igualmente desnorteado, sem identidade, sujeito às atitudes mais absurdas e levianas. Pode-se dizer estar às portas da loucura, produzida pela empáfia e cinismo. Logo, apesar do estado de penúria, os momentos de arroubos ufanos, predem-no a um mundo intolerável e indigno.

“Não obstante, aquele cobertor verde me importunava. Por outro lado, não condizia com a minha dignidade carregar semelhante pacote debaixo do braço, à vista de toda gente. Que iriam pensar de mim? Caminhando, procurava lembrar-me de um lugar onde pudesse guardá-lo até nova ordem.” (pág.34)

A miséria transtorna e o leva a laivos de hipocrisia. Ao considerar-se melhor do que os outros, incapaz de agir pelos meios deles, de infringir as leis naturais, de ter consciência pura e inocente, numa ilusão e delírio, se mete nos mais banais e caricatos pecados. Vive em paradoxo, onde é incapaz de manter a honra e inocência, e acaba por meter-se num emaranhado desconexo de indulgências e lamentos. Sim, ele é um vitimista, onde todos os problemas, via de regra, concentram-se no exterior, à parte dele. Raramente se dá conta do próprio fracasso e de como contribuiu peremptoriamente à decepção e abandono.

“A consciência de minha honestidade subiu-me à cabeça, inundando-me com o sentimento grandioso de que eu era um caráter, um farol de extrema claridade em meio ao oceano lamacento dos homens, entre destroços flutuantes.” (pág. 43)

Para ele, a fome é a causa de todos os seus problemas, a razão dos dilemas, inclinações e máculas, e não o contrário; dela ser tão somente a consequência das suas escolhas, hábitos e frustrações, guiados pelo orgulho às vezes maior, outras, menor, mas sempre efetivo em algum aspecto nas suas decisões. Paulo escreveu: “Aquele, pois, que cuida estar em pé, olhe que não caia.” (1 Co 10:12).

Ele é um homem que vive na escuridão, com entremeios dispersos de luz ou penumbras, ao ponto em que, de consequência a fome tornou-se também em causa da degradação, em todas as esferas e facetas do ser, a afundá-lo mais e mais na desilusão, em devaneios e reações descabidas. Faltou-lhe o prumo, e o estado famélico elevou o desequilíbrio, em constante amálgama de sonho, delírio e realidade modelados pelo âmago caótico, mas a julgar proveniente do exterior. Se a fome aparenta simplicidade, as emoções, razão e sentimentos são atormentadoramente complexos, às vezes controláveis, na sua maioria exaltados e indômitos.

“Expliquei o caso, contando a mesma história da véspera; menti de olhos abertos, sem pestanejar, menti com sinceridade: ‘infelizmente, farreei um pouco além da conta num café, e perdi a chave...’ ...ninguém me ofereceu um bônus, e não tive coragem de reclamá-lo. Instantaneamente, isso despertaria desconfiança. Começariam a remexer em minhas coisas, descobririam quem eu era realmente. E me deteriam por falsa alegação. De cabeça erguida, com a atitude de um milionário, de mãos presas ao forro do paletó, retirei-me do Depósito” (pág. 67).

Neste círculo vicioso, o protagonista não parece ter saída para a sua alma atribulada, cheia de angústia, humilhada, mas segura em uma altiva inutilidade, incapaz de satisfazer-lhe no desejo mais simples e trivial, a comida. Tudo o afasta dela, e ele é o único promotor a garantir e manter o distanciamento. A despeito da ajuda aqui e acolá, em seus ímpetos atarantados e evasivos, ambíguos e artificiais; pois a fome não lhe dera outra personalidade, apenas a manifestou, retirou-a das entranhas e expô-la, e produziu um tipo de sinceridade traiçoeira e impostora.

“Deixava-me dominar pelo orgulho, saltava à primeira provocação, do alto da minha soberba, atirando dez coroas ao vento, e ia-me embora... Censurei-me severamente por haver deixado o quarto e ter-me posto de novo em apuros.

Afinal, para o diabo com tudo isso! Não pedira aquela nota de dez coroas, mal a tivera na mão, e, logo a passara adiante, em pagamento a alguém que nada significava para mim, e que nunca mais veria.” (pág. 166)

Se o grão não morre, fica só; mas se morrer, produz muitos frutos. Para o personagem sobreviver era a resposta, e de alguma forma, ser herói de si mesmo, bastava-lhe. A solidão e o isolamento persistiram enquanto marinheiro, indo para Leeds. Assim como a sua alma errática. Se trocarmos o homem pelo grão, restar-lhe-ia o quê? Na solidão?

Por fim, seja pela sobrevivência ou a conclusão lógica de todo o aprendizado, se entregou à ajuda, se dispôs à solução, tão óbvia, mas que postergou ao esgotamento, até quase sucumbir.

E, então, “disse adeus por essa vez a Cristiânia, a todas as casas, a todos os lares, a todas as luzes que brilhavam e rebrilhavam nas janelas.”

 

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Avaliação: (***)

Título: Fome

Autor: Knut Hamsun

Editora: Itatiaia

Páginas: 171


15 agosto 2024

Prefácio de Eduardo "Doca" Barroso ao livro "A Bula do Placebo"

 



Não é raro nos surpreendermos com a escrita de um autor. E não é preciso esperar muito ou produzir uma vasta obra para se perceberem nuances e mudanças no estilo; igualmente não raro é perceber-se diante do texto completamente diferente quanto ao objetivo, conceito e percepção. A linguagem, já diziam os estudiosos desde sempre, é um fluxo contínuo de mudanças e solidificação. Existem elementos irremovíveis e outros nem tanto. Fato é que a escrita originária da pena de um único autor deve ser versátil e explorar vários aspectos e recursos e se expressar convincentemente, seja qual for o tratamento aplicado à narrativa. Entretanto, nada deve ser tão heterogêneo a ponto de não ser distinguido e suas características tomadas como as de outro. Com isso, não estou ditando regras ou a “enjaular” a imaginação e criação. Nada pode ser diferente o suficiente para desfigurar ou deformar a identidade, as digitais a apontar para si, independentemente das circunstâncias e formas.

Quando se me apresentou este novo trabalho do Jorge Isah, após lê-lo, mesmo acompanhando seus textos na Revista Bulunga, senti-me diante do artista a procurar novos rumos, novas formas, a alterar o estilo, provocado talvez pela ânsia de aventurar-se em terrenos inexplorados, ou a urgência de sondar novos roteiros, personagens e sentidos. Contudo, lá estava o mesmo autor, meticuloso nos detalhes, inquerindo-se, à cata de respostas e cheio de dúvidas. Lá estava, esquadrinhando o universo intocado e carregando-o nas próprias mãos, deixando indelével a sua impressão. Lá estavam a ironia, o cinismo e a capacidade de rir de si mesmo e do outro. Lá estava o homem a examinar as relações, o momento e a sociedade. Em histórias curtas mas de significados intensos. Lá estava a linguagem mais simples, menos rebuscada, quase “Pulp”, a remeter-me, primeiramente, a Nelson Rodrigues, na maneira econômica de contar histórias, para depois mostrarem-se tão ou mais críticas quanto às do “Escritor Maldito”, sem o seu apelo sexual e orgíaco. Assim, me vi a lembrar dos autores “beatnik” e, por que não, do realismo da primeira metade do século passado, contudo sem a claustrofobia, agonia e niilismo de alguns deles. Existem elementos absurdos, sim, claro. Existem componentes existencialistas, sim, claro. E ingredientes psicológicos, também. Mas existe sobretudo o homem, seus dilemas e a necessidade de decifrar a si e os tempos, seja qual for. É a esta universalidade que o autor nos remete, de estar no tempo e também fora dele. Sem isso, não nos resta muita coisa a não ser comer, beber e morrer.

Entre os contos publicados na Bulunga e alguns outros de épocas distintas, os mesmos elementos fundamentais são perceptíveis a qualquer um que desejar vê-los; e, digo, é melhor vê-los para se deliciar ainda mais com esta obra.

Outro aspecto inseparável das entranhas do autor é o transcendental ou metafísico. Para ele é impossível dissociar a vida frugal e terrena das implicações celestes e espirituais. Sei que alguns leitores não concordarão, mas, pior para eles: é o elemento não somente salutar, mas catártico para esta geração, o reencontro com esta proposta. Ela se apresenta como única solução ao mundo embrenhado e envolto nas trevas, e qualquer alusão apenas à materialização de elementos concretos, palpáveis e físicos simplesmente diminui a humanidade ao nível dos animais. Ainda mais quando se percebem nitidamente as opções à mesa; nada, em sã consciência, pode restaurar o homem e trazer à tona virtudes e qualidades à parte da sublimidade, das coisas lá do alto. Enquanto se mantiver cego aos clamores do espírito, o homem não será o que deveria ser, e apenas se tornará a imagem engelhada de si mesmo. Não existe liberdade quando se excluem os meios de alcançá-la, seja por arrogância, teimosia ou ignorância; pois nada disso o inocentará no fim das contas daquilo que não pode ser porque não quis, ainda que pudesse fazê-lo se tateasse a realidade e a verdade à sua volta.

Nestes aspectos, em linhas gerais, imagino ser fiel ao pensamento do autor, ao menos no ponto fundamental e decisivo, entre tantos outros que o leitor descobrirá certamente ao se debruçar sobre esta obra, de maneira sincera e sem os eventuais preconceitos conceituais ou ideológicos.

Portanto, quer você queira ou não, aconselho-o a não prescindir da indispensabilidade de “A Bula do Placebo”. Ah, por falar no título, demandaria outro prefácio, mas, desde já, ele aponta para o inexorável fiasco das tentativas de autocura ou melhor, buscar em si mesmo o remédio para a doença autoinoculada, sem que o antídoto tenha qualquer eficiência.

Eduardo “Doca” Barroso

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06 agosto 2024

A volta dos mortos-vivos ou a dolce vita no inferno

 




Jorge F. Isah


Talvez você não saiba, ou sequer imagine, mas os faraós eram enterrados com suas joias e ouro, vestuários, esposas, servos, escravos e mais alguém ou algo que o falecido quisesse ter em seu reino celestial. Com isso, nada faltar-lhe-ia, inclusive aqueles para servi-lo, do outro lado. Muitos sacrifícios foram realizados pelos desejos, temores e cuidados faraônicas. O faraó Djer, por exemplo, filho do faraó Hórus Aha, governou o Egito na I Dinastia, entre 3.100 e 3.043 ac., aproximadamente, quando faleceu. Na sua tumba, em Umm el-Qa'ab, Abidos, foi enterrado com outras 318 pessoas. Não se sabe ao certo como eram realizadas as imolações, provavelmente por venenos ou drogas paralisantes.

Em nossos dias, se fosse dada a escolha de ser enterrado com o seu ídolo, quando morresse, o que você pensaria? “Mas essa é uma ideia estúpida”, diria um. “Não tem coisa mais sem cabimento”, diria outro. “O que você está insinuando com isso?”, outrem se pronunciaria. A verdade, contudo, é que muitos vão para os túmulos dos seus ídolos. Loucura? Asneira?... Não, é a verdade da qual o homem tem de se libertar, não importa quão importante ou quanta afinidade se tenha com ele ou eles.

Quando existe uma defesa intransigente e absoluta para com seus ídolos de estimação, muitas vezes cega e obcecada, seja um político, artista, clérigo, jogador de futebol e, pasmem!, bandido e salafrário, o que diria, por exemplo, um parente ou amigo? Que durante a sua vida não lhes revestiu do mesmo ardor e paixão? O que dirá a sua mãe, esposa/marido ou filhos quando o virem tomar “bênção” a um desconhecido? Ou espalhar pôsteres pelo seu quarto? Ou defendê-lo obstinadamente mesmo em seus caprichos, manias e defeitos?

Alguém pode dizer:

- Bem, mas não estaria apenas substituindo o ídolo desconhecido pelo ídolo conhecido, neste caso a mãe ou a esposa?

Normalmente não agimos levianamente com pessoas do nosso convívio, pelo contrário, estamos mais dispostos a criticá-los do que a nós mesmos. A questão é: você se dedica com a metade do empenho no relacionamento com os mais próximos da mesma maneira que se consagra ao ídolo? Qual a razão de dispender dinheiro, emoções, intelecto, e entregar a própria alma a um estranho que não o possa fazer a alguém realmente do seu trato e convívio?

- Me diga então, sabichão: você apenas admira e se simpatiza com seus correlatos? Ninguém fora do seu círculo merece a sua atenção? – Insistiria o interlocutor.

Não estou a falar de méritos, valor ou concordar com atitudes e seus promotores. Por exemplo, se alguém demonstra um ato de gentileza, prestando seja lá que tipo de ajuda, abonarei a atitude e o agente. Mas se esse indivíduo, em seguida, chuta um cão ou joga lixo na rua, não conceberei desculpas a fim de justificá-lo. Infelizmente, muitos agem assim, e para não serem paradoxais (ao menos não se sentirem como tal), criam os maiores sofismas e se fazem de hipócritas na tentativa de salvaguardarem-se a si mesmos preservando o seu ídolo.

- Mas todos erramos... Ninguém é perfeito...

Mais um motivo para não se ter ídolos e morrer abraçado a eles, não é!

E algo ainda pior: ter a consciência trancafiada a sete palmos, anos ou décadas antes de a “dolce vita” no inferno chamá-lo em definitivo.

Ah, e depois, os antigos egípcios é que são criticados...

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Nota: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga


24 julho 2024

Prólogo ao livro "A Bula do Placebo"

 



Este é um livro que me trouxe um prazer diferente de escrever. A maioria das histórias foi publicada na Revista Bulunga, onde acabei desenvolvendo um senso, digamos, mais satírico e ácido, provavelmente mais risível também, e expus-me a experimentos pouco utilizados em meus trabalhos anteriores. Um dos aspectos mais estranhos, e que me deixava menos à vontade, é o que alcunhei de “espontaneidade imperativa”, ou seja, a necessidade de entregar no prazo o material para publicação. Revistas, jornais e outros periódicos não esperam os “insights” surgirem; antes, é preciso pôr a mão na massa, sem procrastinar e arrumar desculpas para não produzir o necessário.

Entre biografias, contos, crônicas e artigos variados, pude me dedicar às narrativas curtas e, ao menos para mim, o resultado foi, no geral, recompensador. Debaixo de uma gama de pseudônimos, pude “afastar-me” um pouco do “Isah” detalhista e quase perfeccionista e me tornar mais breve e condensado nas narrativas. Acredito ser possível, ao leitor que me acompanha, notar essas diferenças e compor um quadro mais completo do que os delineamentos desta análise.

Mudar o foco de temas mais intimistas para tratar de assuntos gerais e mundanos foi como um peso retirado dos ombros. Sempre gostei de relatos simples, não necessariamente ordinários ou pueris; e se me acusam, às vezes, de escrever esnobe e pretensiosamente, a verdade é: gosto de falar de pessoas e coisas comuns, sem me tornar frívolo e impessoal. Se a história e os personagens não me afetam, no sentido de carregá-los e eles a mim, ser íntimo e empático, de que valeria dedicar-me a eles?... Mesmo ao desejar matá-los, não raramente sou atormentado por suas lágrimas, angústias, risos e euforia. Sinto-os como aquele amigo indiscreto a contar um segredo embaraçoso, no meio de uma plateia de caçoístas... Apesar de tagarela, ainda continuará sendo amigo, desde que não abuse do atrevimento.





Como disse, a maioria das histórias de “A Bula do Placebo” (este seria o título de uma publicação na Bulunga, mas o amigo e editor, Michel Salomão, me fez reconsiderar a ideia e guardá-lo para um futuro livro) são fragmentos do dia a dia, sejam íntimos e pessoais ou gerais, mas, em boa parte, contraditórios e ridículos em sua naturalidade desfigurada. Estava a cogitar uma espécie de coletânea dos melhores textos, e já havia separado alguns, quando definitivamente resolvi arregaçar as mangas e iniciar o projeto.

Entretanto, três das histórias não foram escritas originalmente para a revista. São elas: “O cadáver que a chuva molha”,“À sombra de Mishima” e “Cão e alfarrábios”, escritas havia alguns anos e que passaram por pequenas e sutis alterações. Juntamente com “Post Scriptum”e “Os olhos de Ciclope”, são as mais longas e buriladas. Com isso, não estou a dizer que são as melhores ou piores, são o que são e o que sempre foram, dentro daquilo a assomar, atormentar, mas também alegrar o escritor: muitas vozes que devem e precisam ser ouvidas. Coube-me apenas e tão-somente registrá-las, já que, por si mesmas, elas falam com ternura, raiva, amor, ódio, se repetem e, raramente, se calam.

Pois o silêncio pode ensurdecer, especialmente a quem é capaz e deve ouvir.

Jorge F. Isah

19 julho 2024

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 40: A Trindade e o amor trinitário






 Jorge F. Isah




Há muitos textos na Escritura que revelam o amor de Deus por seu povo. O apóstolo diz que ele nos amou tanto que deu o seu próprio Filho em nosso favor, revelando que, como nos diz o mesmo apóstolo, ele nos amou primeiro. Se somos capazes de amá-lo é porque ele nos amou antes, e temos essa capacidade porque o Imago Dei, ainda que distorcido, quase um reflexo tênue do ser divino, foi-nos dado por ele. Amamos, porque ele nos amou antes da fundação do mundo; amamos, porque ele nos deu o seu amor e colocou em nós o seu maravilhoso atributo; amamos, porque sem ele não haveria o amor; amamos, porque Deus é amor, e traz eternamente em si mesmo a relação de amor entre as pessoas da Trindade.

Ora, o amor não pode existir sem haver o outro; qualquer ideia de um amor solitário é impossível. Para haver amor é necessário, ao menos, duas pessoas, de onde o sentimento parte do sujeito ao objeto, ainda que o objeto não ame o sujeito. Ao amor não é necessário reciprocidade, alguém pode amar outrem e este outrem não nutrir nenhum sentimento pelo alguém. Em nossas relações há vários tipos de "amores", todos asseguradamente garantidos pela imperfeição e limitação humana. Há quem diga amar a natureza, o seu animal de estimação, uma obra de arte, um time de futebol, e coisas do gênero. Podemos refletir sobre eles se são mesmo amor ou não, porém, interessa-nos não estabelecer o que seja o amor da criatura, mas compreender o amor divino e relacioná-lo com o seu ser.

Fato é que Deus, se sendo uma única pessoa, não teria a quem amar antes da criação. Mas se até mesmo a criação é um ato amoroso, ele, como o texto sagrado revela, nos amou sempre, eternamente. Alguém dirá que esse amor é possível; sendo Deus perfeito e imutável pode amar mesmo o que ainda não existiu e que para ele sempre existiu, pois sua mente é eterna assim como a sua vontade e atributos. Acontece que nenhum atributo divino surgiu por um processo de "evolução", mas todos são inerentes ao seu ser. Contudo, fica a pergunta: mesmo assim seria possível haver amor sem objeto a que se amar?

Penso que em Deus o amor se dá exatamente porque em seu ser subsistem três pessoas; de forma que o amor eterno somente existe devido às pessoas eternas que se amam mutuamente; sem as quais o significado da palavra "amor" não teria qualquer sentido, e a afirmação bíblica seria uma mera figuração, um símbolo desconectado com a natureza divina. Quando dizemos que "Deus é amor" não podemos jamais o afirmar com base apenas na criação, como se o atributo fosse contingente ao tempo e momento da criação. Ele existe eternamente e somente porque há uma interrelação entre as pessoas da Trindade, e pelo amor que há nelas, manifestando-se umas às outras. Negar o amor como fruto necessário da interrelação entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo é desprezar as evidências bíblicas, que mostram serem verdadeiras. E o amor somente é possível porque Deus é trino, e cada uma das pessoas tem em si a unidade absoluta do amor.

Além desta questão crucial e fundamental para a fé cristã e bíblica, há outras provas de que o ser divino não é unipessoal, mas tripessoal, onde as pessoas se relacionam eterna e intrinsecamente, sendo, contudo, distintas entre si. Senão, vejamos:


a) Relacionamento pessoal
Nas relações pessoais que a Trindade têm entre si é evidenciado que são Pessoas diferentes. As suas designações Pai, Filho e Espírito Santo testificam isso:

1) Usam mutuamente os pronomes Eu, Tu, Ele quando falam um do outro, ou entre si [Mt 17.5; Jo 17.1; 16.28; 16.13];

2) O Pai ama o Filho, e o Filho ama o Pai. O Espírito Santo glorifica o Filho [Jo 3.35; 15.10; 16.14];

3) O Filho ora ao Pai [Jo 17.5; 14.16].

4) O Pai envia o Filho, e o Filho e o Pai enviam o Espírito Santo que atua como Seu Agente [Mt 10.40; Jo 17.18; 14,26; 16.7];

Porquanto, pelo fato de usar pronomes Eu, Tu, entre Si é evidenciado que há um só Deus em Três Pessoas Distintas.


B) São apresentadas separadamente

Três pessoas distintas são apresentadas em 2Sm 23.2,3; Is 48.16; 63.7-10. Igualmente, à vista do fato da criação ser atribuída a cada pessoa da divindade separadamente, como também a Eloim com as palavras “Também disse Deus [Eloim]:Façamos o homem ‘a nossa’ imagem” [Gn 1.26].

Esta convicção é confirmada como verdadeira pelo plural de Eclesiastes 12.1 que diz: “Lembra-te do(s) teu(s) criador(es) nos dias da tua mocidade”, e Is 54.5, que diz: “Porque o(s) teu(s) criador(es) é(são) teu marido”.

Este texto é um pequeno complemento às aulas passadas. Não tem por objetivo convencer os antitrinitários, os quais se desdobrarão em apresentar refutações ao que se apresenta, mas de levá-los a meditar na verdade, a qual a Bíblia insistente e claramente revela, e sem o quê o Cristianismo seria uma religião incoerente e sem nexo, especialmente diante daquilo mesmo que se revela. Há uma tão grande profusão de passagens que expressam a trinunidade de Deus que é o mesmo que chover no molhado, como a minha avó sabiamente dizia. E para que ninguém se molhe além do necessário, pararei por aqui, orando para que a verdade escriturística seja também verdade no coração rebelde do homem caído.
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Notas: 1 - Alguns pontos não abordados neste texto encontram-se expostos no áudio.
2- Aula realizada na E.B.D. do Tabernáculo Batista Bíblico
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ÁUDIO DA AULA 40:

15 julho 2024

Far-West Tupiniquim: Eu Brinquei de Forte Apache, de Marcos Guazzelli

 




Jorge F. Isah




Este livro, em formato e-book, foi o presente de um grande amigo e irmão, Gilberto Resende, e trata de um tema praticamente inexplorado no país: o brinquedo, e hoje objeto de desejo dos colecionadores e aficionados, “Forte Apache”.

Gilberto é além de colecionador e negociante de acervos, restaurador de peças e conjuntos. É um dos maiores entusiastas, especialmente do passatempo em questão.

Quanto ao livro, o título já diz tudo: “Eu brinquei de Forte Apache”, e sobre ele falaremos um pouco. O autor, Marcos Guazzelli, desde o início, na introdução, especifica a razão do lançamento: “Não realizei nenhuma pesquisa detalhada que me permita afirmar isto com absoluta certeza, mas ousaria dizer que o faroeste foi a maior manifestação cultural do século XX ... Apresentei as informações da melhor maneira que as reuni ao longo de muitos anos. Mas estamos a tratar de uma história que não possui registros formais, na qual a maioria das informações está na memória de pessoas”. E, nesse aspecto, o que mais importa ao se tratar do brinquedo que movimentou, emocionou e divertiu gerações de crianças, que não sejam as lembranças?

O caráter do livro não é se tornar um tratado sobre o assunto, mas explicar a origem, o desenvolvimento e o amadurecimento durante o que chamou “eras”: Diamante, Ouro, Prata e Bronze, como se fosse uma olimpíada onde o nosso “campeão”, em algumas décadas, não manteria a performance vencedora do seu auge; ainda assim, é inevitável dizer que o “Forte Apache”, em especial, e seus congêneres, permanecem vivos, sendo produzidos e alcançando ainda em grande escala fãs e entusiastas.


É um livro simples, sem rebuços, com dezenas de imagens a descortinar a evolução dos brinquedos “Far-West”. Como já dito, não é uma pesquisa minuciosa, pois o autor encontrou sérias dificuldades em incorporar elementos, seja por não mais existirem os grandes fabricantes, registros destruídos (como o incêndio na Casablanca), ou negativas quanto a exposição de dados (mormente, a Gulliver), e tornou complexa a investigação. Baseou-se em suas próprias reminiscências, nas de outros colecionadores, ex-funcionários das antigas fábricas e “sobreviventes” do processo de criação, como o grande desenhista Nelson Reis. Entretanto, muitos deles não tinham detalhes precisos, que o tempo anuviou ou apagou. Marcos, contudo, é honesto na exposição dos fatos, e deixa evidente o que não pode ser certificado, e de algumas conclusões serem frutos de deduções, somente possíveis por sua vasta experiência na área, inclusive em dezenas de viagens mundo afora, à cata de objetos raros ou simplesmente vislumbrar “in loco” exemplares cuja existência desconhecia ou era concebida apenas em fotos.

Ao final, é o relato da paixão de uma vida e da relevância de toda uma indústria consumida por crianças, jovens e adultos, no período de 60 anos, cuja história continua a ser escrita.

O único senão na obra, que se diga é um ótimo texto introdutório ao tema, é não haver uma revisão ortográfica especializada, mesmo os erros sendo mínimos, e deixaria a obra ainda mais impecável.

Não é apenas um tributo, mas o seu ineditismo, o ponto de partida para a escrutinação futura, onde as informações coletadas definirão nítida e abertamente o passado do “Forte Apache”, e traçar os rumos seguintes.

Por tudo isso, é inegável o trabalho de Marcos Guazzelli em preservar a história, ou parte dela, e estimular outros investigadores e apaixonados a levar às novas gerações o interesse, e, porque não a diversão, e desfrutar do magnetismo inexplicável das conquistas, vitórias, fracassos, e desvendar imageticamente um pouco da humanidade perdida, em tempos débeis, mecanicistas e sem inspiração como os atuais.

Que o trabalho empreendido pelo autor provoque novos debates e pesquisas, instigue e acorde a galera, em sua maioria, inerte e soronga em seu torpor criativo.

02 julho 2024

Os Belos e os Malditos - F. Scott Fitzgerald

 





Jorge F. Isah



       Scott Fitzgerald é um dos meus autores prediletos. Ele é de uma geração de escritores a primar pela clareza, objetividade e, por que não, sinceridade. Tal qual, por exemplo, Hemingway, guardadas as diferenças de estilo, narrativa e mundos, Fitzgerald parece falar do que entende muito bem, e desnuda o universo no qual transita e, também, seus personagens circulam. Tal qual o especialista em assuntos gerais e intrínsecos, ele esmiúça o que existe de melhor, em pequenas porções, e o mais acintosamente infame, em larga escala, na alma. Em alguns momentos, o abjeto e o frívolo se unem em sua desgraça, ao ponto de trazer ao leitor um mal-estar intenso e profundo. Como se não houve luz, apenas trevas, eles são incapazes de notar onde estão e para aonde vão, cegados por seus vícios e a incapacidade de entendê-los para assim se libertarem.

Outro aspecto perceptível em seus livros é o constante “deslocamento” dos personagens, sejam rebeldes, flexíveis, ambiciosos, desprendidos, pacíficos ou belicosos. Nenhum deles parece conhecer o seu lugar no mundo, e está nele muito mais pela falta de opções do que escolhas. Este sentimento leva-os, cada um, a buscarem distrações, compensar o incômodo existencial com sexo, drogas, bebidas e farras intermináveis. É o dispender-se sem sentido, em um tipo de niilismo levado às últimas consequências, onde viver é o mero exercício do instinto, mecânico, fortuito, mas ainda assim, pretensioso e cabotino. De forma a cada elemento mover-se na direção do grupo, e o grupo satisfazer-se na aquiescência de cada indivíduo; amálgamas do desatino e da fleuma vadia. Uns mais, uns menos, é como uma teia onde convivem, até certo ponto, a presa e o predador, em um jogo igualmente encarniçado e fatal.

      Em “Os Belos e Os Malditos” não é diferente. Segundo livro publicado pelo autor (1922), ele retrata o ambiente efusivo e degradante, porque também não, o declínio de uma geração que se ofuscou em devaneios, caprichos e futilidades. Jovens a imaginarem-se heróis de si mesmos, algo muito comum na maioria dos imaturos, e velhos arraigados ao anti-heroísmo, mormente egoísta e autoritário. No primeiro caso, temos Anthony Patch, universitário e herdeiro de um magnata dogmático e austero. No segundo caso, há Adam Patch, o avô milionário de Anthony, que vê o desregramento do neto como impeditivo para herdar os seus negócios. A inabilidade de Anthony em gerir a própria vida faz o avô imaginar o mesmo para a sua fortuna. E ele não está errado: o neto frustra completamente o patriarca a cada desafio recebido, por menor que seja.

      Anthony aguarda a morte do avô para refestelar-se na fortuna que considera sua por direito inalienável. Praticamente, conta os dias, semanas, meses, em uma espera macabra e aflitiva. Para o seu desespero, o alcoolismo é o maior dos pesadelos, pois o velho Adam, homem respeitado na sociedade, abomina todos os vícios e, em especial, o etilismo. Anthony vive em apuros, vivendo com uma módica mesada (ao seu ver, e para a qual não faz qualquer esforço em merecer), enquanto se esbalda nas noitadas e mais noitadas regadas a Whiskey, lugares da moda, e a despender seus recursos, tanto financeiros como físicos, em uma existência fútil e pueril, ansiando o dia a deter os fundos suficientes para expandir essa tragédia.

      As coisas parecem tomar, inicialmente, outro rumo quando conhece Glória, prima do seu amigo, Dick; este almeja a carreira de escritor e, ao contrário de Anthony, em curto tempo alcança sucesso, fama e dinheiro. Glória é a socialite esnobe, narcisista, cuja beleza estonteante é a única coisa a importar-lhe realmente. Satisfaz-se com levadas de homens aos seus pés, exibindo-se noite sim, outra também, nos salões mais prestigiados de Manhattan. A despeito das diferenças, Anthony se considera um intelectual e Glória uma debutante, algo os atrai: o álcool e a inconsequência. Para quem conhece um pouco da biografia de Fitzgerald e do seu casamento com Zelda, este parece ser o quase retrato da relação entre eles. Algo que Hemingway, amigo de Scott, descreveu no livro “Paris é uma festa”.

      Em suas mais de 300 páginas, o autor fala de decadência, obsessão, frustrações e quão aparente eram os vínculos dos jovens nos anos da geração perdida do Jazz. Com o passar do tempo, as relações se acidificaram, e a aparente harmonia no caos se tornou somente em algo babélico, o verdadeiro “salve-se quem puder”, onde praticamente nenhuma expectativa consolidou-se tal como idealizada. Em meio ao mundo destroçado pela 1ª Grande Guerra, a vida jamais seria a mesma, e caberia a cada um adaptar ou sucumbir aos efeitos gerais, e aos deslizes e equívocos individuais.

      Não custa lembrar: não faço sinopses ou resumos de livros. A ideia é dar um panorama e com ele aguçar o interesse do futuro leitor. Por isto, se você é novo por aqui, desista, não vou lhe entregar a história na bandeja. O meu esforço é o de tentar, às vezes funciona, outras não, contar o mínimo, mas suficiente para que se decida a comprar o livro e explorá-lo. Igualmente, não faço uma crítica, ainda que sempre haja algumas no decorrer da resenha; mais uma apreciação dentro da perspectiva otimista de influenciar e seduzir o leitor com elementos a encorajá-lo em sair do lugar cômodo (na verdade, incômodo) de privar-se das experiências universais, amadurecer, e refletir sobre si, os outros, seu lugar, dos demais, e assim evitar os erros, tonificar os acertos, e no microcosmos a cercá-lo, promover benefícios a todos. Como está escrito: “O meu povo foi destruído, porque lhe faltou o conhecimento” (Oseias 4:6). Neste trecho, o conhecimento se refere a Deus, ao Ser divino, mas pode-se remetê-lo a qualquer aspecto da vida, sem perda de sentido.

            Neste aspecto, Scott Fitzgerald revela em suas narrativas quanto o homem pode ser supérfluo, instável e imprevisível, em uma contingência desordenada e quase sempre desconectada da realidade. Talvez, por isso, o homem insista tanto em fugir da verdade, em uma busca fastigiosa e inexequível. Não raras são as cenas de homens e mulheres a desdenharem, ultrajarem, conspurcarem-se. O poço é fundo, mas pode-se descer ainda mais; e ainda assim, o orgulho, a soberba e a desfaçatez parecem subsistir em meio à lama e entulho... A constatação de serem eles, em última instância, a promoverem e impulsionarem os indivíduos para um fim nada ditoso.   Ainda que se gaste uma vida inteira e não se perceba o aracnídeo prestes a capturá-lo.

            Fitzgerald parecia entender... mas não conseguiu, ou não quis, fugir a tempo.

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Avaliação: (***)

Título: Os Belos e Os Malditos

Autor: F. Scott Fitzgerald

Editora: Record

Páginas: 340




09 junho 2024

Pré-Venda de "A Bula do Placebo"

 


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02 junho 2024

Kaspar Hauser - Jakob Wassermann

 



Jorge F. Isah



Neste mundo, muitos são os personagens e eventos a guardarem a sua parcela enigmática, obscura ou simplesmente farsesca, a iludir e enganar um bom número de simpatizantes, a divertir e aguçar a curiosidade de outros, a aflorar emoções às vezes ambíguas, às vezes sinceras, não raramente oportunistas. Seja por um motivo ou outro, o fato é que a figura de Kaspar Hauser ganhou contornos épicos, de heroísmo estoico, a suscitar reações e emoções um tanto quixotescas, as raias do lirismo, em outras, impermeáveis, ladinas, quase cruéis; sempre a revelar e mostrar as várias facetas da humanidade, tanto para o bem quanto o mal, por vezes prudente, outras, displicente ou, quando não menos, a revelar os preconceitos, imoderação e açodamentos em juízos e sentenças, das quais ninguém estava disposto a libertar ou desvencilhar-se.

Existem, claro, os indulgentes de primeira viagem, aqueles incapazes de, no primeiro momento, tecer qualquer censura ou depreciação quanto à figura ou situação recém-apresentada. A estes, com todas as eventuais consequências da esperança e otimismo quanto a homens e seus atos, solidarizo-me, porque é preferível de antemão confiar até que se prove o contrário do que a desconfiança como a previsível inabilidade pós-moderna de se relacionar, conviver e até certo ponto se sacrificar em favor do outro. Não digo de uma ideia, conceito ou qualquer arrazoado, por mais robusto, mas de gente, pessoa, igual a nós e, talvez, melhor do que nós. Existe sempre a possibilidade do contrário, do indivíduo ser o filhote do capeta, estar a seu serviço e abusar da confiabilidade; mas aí, a culpa será sempre dele e não o inverso; será de quem propõe o embuste e a farsa, e nunca daquele a transpirar decência, sinceridade e compaixão, a ser empático e, por que não, simpático com aqueles a rodeá-lo. É uma mania irritante a de sempre condenar a vítima e expurgar o agressor, não apenas em relação aos crimes civis e penais detalhados em códigos e manuais, mas aqueles tácitos na sociedade. É fazer do falsário, além de espertalhão e vitorioso, o padrão a ser almejado e perseguido como o caráter máximo de humanidade e perfeição. E se hoje caminha-se para a consolidação da “Lei de Gérson”[1], lá pelos idos de 1800, a coisa não era melhor, ainda que em proporções menos, digamos, tóxicas e genéricas. Neste aspecto, ética e moral são princípios ultrapassados, coisa de cristão medieval, e vale mesmo é o pragmatismo, o resultado, seja ele qual for ou como for, e signifique garantir a autodestruição ou o próprio fracasso. A garantia para um sentimento tão irracional e vulnerável é a afirmação pós-moderna do não existe a "verdade absoluta", nada é absoluto, tudo é relativo, menos a sentença proferida pelo pós-moderno em seu absolutismo nada relativo.

Escrito por Jakob Wassermann, alemão, nascido em 1873, o livro narra a trajetória de vida de Kaspar Hauser desde a aparição espetacular em uma praça de Nuremberg. O evento ocorreu em 1828, e chamou imediatamente a atenção de toda a Europa. Trazia consigo uma carta onde a sua vida era resumidamente descrita; e o jovem de 15 ou 16 anos, não se comunicava ou não falava além de sons rudimentares e desconexos, e não escrevia; autoridades e interessados tinham de se contentar com os seus gestos e sons de lamento, espanto, dor e medo. A pergunta corrente era: “quem é ele?”. Louco? Miserável? Nobre? Ou charlatão? Teceram-se várias teorias, desde não se passar de um aproveitador até ser herdeiro do trono de Baden, no sudoeste da Alemanha.

Não vou entrar nos pormenores históricos, apesar do livro conter inúmeros elementos historiográficos, muito menos em averiguar as validades ou não das teorias. Calcula-se em algumas centenas de livros a tratar do assunto, e ninguém parece convicto do que quer que seja. A nós, e a mim em especial, me interessa o trabalho de Wassermann como artista, apesar de, certamente, ele ter realizado uma pesquisa minuciosa do caso, em vista da profusão de aspectos a descrever o insólito evento. Começarei, primeiramente, em descortinar um pouco a figura do nosso herói:

“O comissário, no posto policial, interrogou-o inutilmente. Ele só respondia através de palavras estúpidas. Nada o fez mudar de atitude, nem ameaças, nem gritos. Mas quando um dos soldados acendeu uma vela, aconteceu uma coisa assombrosa: o rapaz moveu-se à maneira de um urso e quis, depois, aprisionar a chama entre as mãos. Queimou-se, e pôs-se a chorar de um modo que cortava a alma.”[2].

O autor descreve e constrói uma personalidade virtuosa, mesmo na forma mais primitiva e instintiva do ser de Kaspar. No decorrer da trama, o jovem faz de tudo para manter a sua pureza, singela, autêntica, gentil e lúdica. Evita os conflitos, as provocações injustas e descabidas, e tencionava de verdade integrar-se ao novo mundo ao qual fora lançado. Mesmo obstinado em conhecer as origens, ascendentes, e as razões pelas quais se tornou pária, um enjeitado, não requer qualquer tipo de restituição e vingança. As ofensas e dissabores esbarram sempre em sua teimosa esperança de, em breve, encontrar a mãe e desvendar o passado. Nesse aspecto, à mercê da bondade e sujeição às exigências sociais, por mais que se esforçasse, nunca parecia suficiente; havia aqui e acolá um e outro e mais outro a implicar com a sua inofensiva devoção em manter-se distante dos imbróglios e complôs. Infelizmente, as pessoas o consideravam não pelo que era, mas pelo que consideravam ter sido (charlatão, bastardo ou herdeiro injustiçado) ou pelo que seria: alguém a se olhar com suspeição e censura, ou o vaticínio da iminente realeza.

Não é difícil ver-lhe os traços cristãos, de alguém disposto a confiar, esperar, se entregar sem imposições ou compensações. É uma alma compassiva, afável, não obstante as inúmeras dúvidas e interrogações emudecidas, ou muitas acusações publicadas. Talvez o ponto central seja a incapacidade ou impedimento humano diante do inexplicável, de pessoas e eventos não catalogados nem discerníveis pela razão, a merecer mais do que a simples opinião ou presunção dos afoitos, mas também dos arraigados em convicções e sistemas inadequados a tratar de determinado assunto e agentes. Assim, enquanto ansiava resolver o passado e seguir em frente, em torno de Kaspar se forma um conluio ou conluios a fim de desacreditá-lo, negar-lhe o sonho, o desejo e a possível ventura. Às voltas com a desconfiança, interesses e toda a sorte de recursos a fazê-lo um “peão” publicitário, ou melhor, um tipo de escada para o sucesso de alguns e reafirmar a autoridade de outros. Com o tempo, após idas e vindas entre diferentes guardiões e tutores, no intuito de salvaguardar-se, omite, recua, caminha solitário... Sua alma, contudo, permanece genuína; não se curva às falsas expectativas e imposições alheias, pois neles não encontra a confiança suficiente para considerar a ajuda de que não precisa, quando não se dispõem a socorrê-lo no necessário.

Prof. Daumer, o primeiro preceptor, a despeito da boa vontade, interesse e empatia com o jovem Hauser, não tinha resolução e galhardia suficientes para continuar o trabalho de educação, para sustentá-lo emocional e espiritualmente. De todos, foi ele e Clara os mais próximos de uma amizade, sem levar em conta os esforços do Presidente Feuerbach que, desde o início, custeou a subsistência de Kaspar, além de empreender todos os esforços para resgatar-lhe o passado e as origens. Os demais, em escalas diferentes, projetavam, no jovem, seus preconceitos, juízos e sentenças. Nesse emaranhado de cobiças e inconveniências, ele experimentou o engano, indiferença, traições, desprezo, ameaças. Para ele, sonhos e pesadelos se entremeavam à realidade, de maneira que a sua índole ainda precoce não estava apta a elucidar; quanto mais as diversas manifestações negativas recrudesciam, cuja motivação era-lhe completamente inalcançável, mais confuso e desarticulado ficava.

Foi, pouco a pouco, fechando-se em seus delírios e anseios, a planejar o jeito de safar-se do labirinto ao qual pertencia, sem se preocupar na autodefesa, a ouvir silente denúncias, humilhação e calúnias. A última esperança estava no policial Schildknecht, e por ela aguardou. Mas após a primeira ameaça e tentativa de assassinato, em Nuremberg, a demora em obter a resposta do soldado turvou-lhe ainda mais o espírito, invadindo-o uma miséria da qual não conseguia mais escapar. Tudo parecia ruir; havia apenas a nesga de luz onde a escuridão teimava ocultar. Kaspar, o homem improvável, culpado por ser e não ser em meio a profusão de conceitos, não era mais humano, era apenas uma ideia, muito diferente da simplicidade e primitiva ingenuidade que homens e mulheres, em sua maioria, não conseguem admitir ou aprovar.

Resta esquecer, e deixar o mito suspeito de produzir, ele mesmo, a obra que não lhe pertence e a honra quase sempre negada.



Notas:

[1] Lei de Gérson, para quem não sabe, ainda que prove ou a aprove diariamente, foi cunhada pelo prof. Maurício Dias, ao se referir à propaganda de cigarros protagonizada pelo ex-jogador da Seleção Brasileira, Gérson, em 1976. O slogan da campanha era: “Gosto de levar vantagem em tudo, certo?”

[2] Página 9

[3] Texto publicado originalmente na Revista Bulunga

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Avaliação: (****)

Título: Kaspar House

Autor: Jakob Wassermann

Editora: 7o. Selo

Páginas: 492


26 maio 2024

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 39: A prova da Trindade - parte 2





Jorge F. Isah
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Não vou repetir aqui o que já disse outras vezes, especialmente neste estudo sobre o ser de Deus, que é o capítulo dois da C.F.B, mas analisar biblicamente a doutrina da Triunidade.

Pois bem, dias desses, assisti ao vídeo do pr. Paulo Romeiro no YouTube, como uma prova incontestável da doutrina da Trindade[1]. À primeira vista, fiquei realmente embasbacado com a prova. Primeiro, assista o vídeo, e depois continuamos.

O pr. Romeiro citou Isaias 6.1-8; João 12.37-46 e Atos 28.23-28. Analisando os versos podemos ter certeza de que Deus é Triuno? Bem, alguns pontos iniciais que me chamaram a atenção:

1- O profeta Isaías vê o Senhor dos Exércitos e a sua glória, de quem os anjos clamavam entre si, dizendo: “Santo, Santo, Santo” [um triságio, do grego tris-agion, significando três vezes Santo]. Esta expressão, utilizada na Escritura em Is 6.3 e AP 4.8, parece-me o reconhecimento dos anjos e da própria revelação especial quanto à santidade divina, o que faz os anjos eleitos [igualmente feitos santos, sem pecado, não por si mesmos, mas pela vontade de Deus] afirmarem que Deus é o único e perfeitamente santo. Mas também nos remete à sua natureza Tripessoal, na qual o ser divino subsiste em três pessoas: o Pai e o Filho e o Espírito Santo, responsivamente indicado pelo "Santo, santo, santo".

2- O profeta ouviu a voz do Senhor que disse: “A quem enviarei, e quem há de ir por nós?” [v.8], onde, novamente, Deus se refere a si mesmo no plural, não na pluralidade de “deuses”, mas na pluralidade de pessoas ou personalidades.
Interessante que uma das acusações dos antitrinitarianos é de que nós somos politeístas e pagãos. Mas mostre-me em qual religião pagã e politeísta há a ideia de um Deus subsistindo em três pessoas? A doutrina da Triunidade divina não encontra eco em nenhuma outra religião a não ser no Cristianismo, e, por isso, certamente é tão atacada e rejeitada.

3- Romeiro diz que o Pai foi visto por Isaías, mas João diz que Isaías viu a Cristo, e Paulo diz que o profeta ouviu o Espírito Santo. Como disse, à primeira vista pareceu-me irrefutável o argumento. Porém, analisando mais detidamente a questão, e após ler alguns contra-argumentos, ela parece ser uma desgraça para os unitaristas, mas nem tanto para os unicistas. Estes podem claramente afirmar que os textos em si revelam que Cristo é o único Deus, validando assim a heresia: Isaías viu Cristo como o Pai, o Senhor dos Exércitos, mas que foi entendido por João como sendo Cristo, e por Paulo como sendo o Espírito Santo, ou seja, Cristo se manifestando de modos diferentes. Será?

4- Nos trechos acima temos a repetição de um mesmo verso, de Isaías 6.10, indicando que os apóstolos, sem sombra-de-dúvidas, referiam-se a ele.

5- Eles demonstram a unidade de Deus, de que Deus é um. Também deixa claro que há três pessoas subsistindo no único Deus: Pai, Filho e Espírito Santo. E salta-me aos olhos que, havendo três Pessoas, elas, em unidade, são a causa de tudo, seja na criação, na salvação, na sustentação; podemos referir-nos a uma das Pessoas como sendo a que criou ou salvou, de forma que ela participou ativamente em cada etapa da obra divina. É o que a Bíblia nos revela quando diz que Deus criou o universo, lembrando-nos de que foi uma obra conjunta das Pessoas que subsistem no Criador: o Pai, o Filho e o Espírito, em sua vontade e ação únicas operaram inseparavelmente na criação, sem, contudo, confundirem-se, como uma única pessoa. Em sua natureza e essência Deus é um, subsistindo em três Pessoas distintas, que se relacionam eternamente entre si. E, por conseguinte, pode-se dizer que as três realizaram, cada uma, a mesma obra.

Por exemplo, em Gênesis 1.1, Deus criou os céus e a terra, mas, em Jo 1.3, Cristo é apontado como o criador de todas as coisas, as quais, sem ele, não seriam criadas. Gênesis 1.2, Jó 26.13 e Salmos 104.30 indicam-nos que o Espírito Santo é o criador do universo. Assim, o mesmo acontece em relação à obra de salvação: o Pai salva [Jn 2.9, Jo 3.16-17], o Filho salva [Mt 1.21, Jo 4.42] e o Espírito Santo salva [Tt 3.5]. De forma que há uma ação conjunta da Trindade em tudo, ainda que se possa designar individualmente uma ou outra como o seu agente direto. A obra, no fim-das-contas, pertence a cada uma delas, porém realizadas em unidade, conjuntamente, como consequência da vontade única e indissolúvel de Deus.

A questão, portanto, não é se os trechos apontados pelo pr. Romeiro defendem o unicismo, o que não é verdade. Nunca, em tempo algum, qualquer versículo bíblico pode ser usado como argumento para o engano, o pecado ou a heresia. Jamais haverá afirmação escriturística que corrobore ou induza o homem a qualquer desvio. Logo, a culpa não é da Bíblia, mas da mente imperfeita, pecaminosa e caída do homem que interpreta equivocadamente o que o texto diz ou, a partir de pressupostos falhos, ele induz o texto a dizer o que não diz, e conclui, para a sua desgraça, que o texto confirma o que a sua mente doente não é capaz de ver: que nada do que pensa ou concluiu tem procedência divina, e foi revelada por Deus. A deficiência é completamente humana, na incapacidade de reconhecer a verdade, e apenas vislumbrar o engano.

Eles, antes, declaram que Deus é um e opera todas as coisas por intermédio das três Pessoas. O que há, na verdade, é uma distorção do ensino bíblico, ao se afirmar que as Pessoas são meras manifestações, estados ou modos de uma única personalidade. O pressuposto de que há um só Deus exclui, na mente herética, a sua tripersonalidade; o que faz desses, ao contrário do que querem parecer, os verdadeiros idólatras, ao adorarem e reverenciarem uma força, o Espírito Santo, ou um ser criado, Cristo. Fazer todas as passagens onde consta o nome "Deus" parecer serem obras de uma única pessoa é o reducionismo que adverti na aula passada, e pertence à mente racionalista dos unitarianos e unicistas. É como se eles vissem uma macieira carregada de frutos e acreditassem estar diante de uma única maça, esquecendo-se do tronco, galhos, ramos, flores e demais frutos que constituem a árvore. Com isto não estou a dizer que Trindade pode ser comparada a uma árvore, nada disso. O exemplo está a afirmar a incapacidade dos antitrinitarianos reconhecerem a verdade, desprezando a revelação que o próprio Deus faz de si mesmo. Toda a cegueira deles está no fato de serem também pragmáticos e se interessarem pelo resultado, seja ele qualquer um, desde que redunde em algo "palpável" e que atenda aos anseios dos seus intelectos.

Por isso, me assusto quando cristãos criticam o argumento do pr. Paulo Romeiro, como uma defesa do unicismo. Ela não é; pelo contrário, nos revela a unidade e a diversidade divina, onde a glória de Deus é compartilhada tanto pelo Pai, como pelo Filho, como pelo Espírito, em um inter-relacionamento eterno, perfeito, santo e infinito, capaz de nos levar às lágrimas, à emoção, mas sobretudo à adoração, louvor e gozo em saber que o amor de Deus por nós não surgiu a partir de uma necessidade divina de se relacionar com a criação, mas é eternamente vivo no relacionamento intrínseco que há entre as Pessoas da Trindade.

Isaías viu o Pai ou o Filho? Ouviu o Pai ou o Espírito Santo?

Cristo disse que quem o vê, vê ao Pai [Jo 14.7, 9]: a mesma natureza ou essência divina, sendo duas Pessoas distintas. De forma que, ao afirmar duas vezes coisas aparentemente contraditórias, estava referindo-se à vontade e propósito iguais de ação por meio da Trindade. Senão, vejamos:
"Mas aquele Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará todas as coisas, e vos fará lembrar de tudo quanto vos tenho dito" [Jo 14.26];

e

"Mas, quando vier o Consolador, que eu da parte do Pai vos hei de enviar, aquele Espírito de verdade, que procede do Pai, ele testificará de mim" [Jo 15.26].

O que lhes parece? O Pai ou o Filho é quem envia o Consolador, e em nome de quem? Ainda que não se possa explicar tudo, e tem-se de entender que a Trindade é um mistério insondável para o homem, ao menos por hora e aqui, o que está claro é o propósito e ação únicas das Pessoas. Não há mistura de Pessoas ou elas não podem ser distinguidas em suas ações, mas há uma só vontade e um só propósito, deliberação, decisão ou resolução no Pai, no Filho e no Espírito Santo, uma harmonia de intentos somente possível no Ser perfeito, eterno e santo de Deus. De outra forma, não estaria ele lançando-nos uma pegadinha? Por que haveria distinção de nomes e pessoas sendo elas uma só personalidade? Com qual intento Deus se revelaria equivocadamente ao homem? Para confundi-lo?

O fato é que os textos indicados pelo pr. Romeiro não defendem o unicismo, mas a Trindade, de forma que aquele que crê no Deus bíblico crê na Pessoa do Pai, do Filho e do Espírito Santo; e aquele que não crê no Pai, no Filho e no Espírito Santo desconhece verdadeiramente a Deus, e dele não é conhecido.
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ÁUDIO DA AULA 39: 


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Notas: [1] O vídeo do pr. Paulo Romeiro intitulado, "A Trindade em Isaias 6", pode ser acessado na aula anterior, clicando AQUI
[2] Aula realizada na E.B.D. do Tabernáculo Batista Bíblico