Jorge F. Isah
“Não cuideis que vim trazer a paz à terra; não vim trazer paz, mas espada”
INTRODUÇÃO
Ao lermos este verso pela primeira vez, e isoladamente, ele nos traz um certo estranhamento e a impressão de que contradiz outras afirmações bíblicas.
É preciso entende-lo à luz da unidade textual das Escrituras, e sob a iluminação do Espírito Santo.
Muitos, porém, de maneira precipitada e simplista, apreendem dele aquilo que não diz, colocando nele significados que jamais foram intenção do autor, como aqueles que deduzem estar o Senhor a falar de uma guerra em defesa da fé onde o cristão pode se utilizar de todos os meios, inclusive a força e violência, para que ela prevaleça.
A ideia de que o crente não é um “bobo”, nem deve ser feito de “palhaço” pelos outros, de que é possível revidar na mesma medida em que se é agredido, tem ganhado contornos de verdade e quase infalibilidade entre os cristãos, nos últimos tempos.
Entendem que Jesus está a validar e respaldar um tipo de belicosidade “santa”, na qual a defesa da fé está diretamente ligada à defesa de Deus, e como qualquer ataque ao Criador deve ser rechaçado, até mesmo a morte do ímpio é desejável (que desagrada a Deus – Ez 18.23), no sentido de que estamos em uma guerra santa, e o cristão não deve se sujeitar à tirania e morticínio provocado por seus inimigos.
Seria esse então o bom combate ao qual Paulo se refere em 2 Tm 4.7? Matar o maior número possível de opositores?
Deve-se levar a defesa da fé até as últimas consequências, mesmo que seja a destruição do semelhante?
É o que veremos, a seguir.
DEUS É PAZ
Em vários trechos das Escrituras temos a afirmação de que Deus é paz. Semelhantemente, a igreja se cumprimenta com “a paz do Senhor”, sabendo que se desejamos ao irmão a paz de Cristo é porque ela somente pode provir daquele que a é em essência.
Paulo nos apresenta alguns versos que confirmam esta afirmação:
“Porque Deus não é Deus de confusão, senão de paz, como em todas as igrejas dos santos.” (1Co 14.33)
“E o Deus de paz seja com todos vós. Amém.” (Rm 15.33)
No primeiro verso, o apóstolo contrapõe “confusão” com “paz”. A palavra confusão tem vários significados, mas sempre ligados à ideia de desordem, bagunça, dúvidas. Penso que a paz vem adicionada à fé, não a qualquer tipo de fé, mas aquela proveniente do bom Deus, que nos leva a suportar até mesmo as piores e mais terríveis batalhas na confiança de que ele não somente não nos abandonou, mas tem nos sustentado e dirigido a trajetória em direção a si, à paz verdadeira.
A paz, portanto, é o complemento da fé, não como um acessório, um adendo, mas consequência natural de tudo o que Deus nos dá e proporciona a partir da obra remidora de Cristo. Paz, significa, então, conciliação, concórdia, união, harmonia, acordo, em que Deus, e aqueles que desfrutam da sua paz, encontram-se ligados a um mesmo propósito. Não mais existe apenas o Pai, o Filho e o Espírito Santo, unidos eternamente, três Pessoas e um único Deus, mas também nós estamos unidos a eles. Esta é a promessa divina:
“E não rogo somente por estes, mas também por aqueles que pela tua palavra hão de crer em mim;
Para que todos sejam um, como tu, ó Pai, o és em mim, e eu em ti; que também eles sejam um em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste.
E eu dei-lhes a glória que a mim me deste, para que sejam um, como nós somos um.
Eu neles, e tu em mim, para que eles sejam perfeitos em unidade, e para que o mundo conheça que tu me enviaste a mim, e que os tens amado a eles como me tens amado a mim.” (Jo 17:20-23)
Neste sentido, até mesmo a justificação é decorrente da fé salvadora; aquela colocada em nossos corações pelo Espírito, e nos leva à comunhão e intimidade com Deus.
“Tendo sido, pois, justificados pela fé, temos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo;
Pelo qual também temos entrada pela fé a esta graça, na qual estamos firmes, e nos gloriamos na esperança da glória de Deus. (Rm 5.1-2)
Sendo Deus paz, quando os cristãos se cumprimentam com “a paz do Senhor” (e, infelizmente, essa tem sido uma prática negligenciada; sim, muito do que é dito o é da boca para fora, mas ainda assim o cumprimento serviria de lembrança para algo que não devemos negligenciar: de que Deus é a nossa paz), reconhecemos que é por ele que encontramos, enfim, a reconciliação com o Criador, conosco e, de alguma maneira, com o mundo que nos tem por inimigos.
A INIMIZADE DO MUNDO: COMBATENDO NÃO A CARNE E O SANGUE
Mas, então, por que Cristo afirma, categoricamente, que não veio trazer a paz, mas a espada?
Estaria ele conclamando o seu povo a uma guerra santa?
Devemos entender que o chamado da fé não é para combater a carne e o sangue, mas as potestades, como Paulo nos diz:
“Revesti-vos de toda a armadura de Deus, para que possais estar firmes contra as astutas ciladas do diabo.
Porque não temos que lutar contra a carne e o sangue, mas, sim, contra os principados, contra as potestades, contra os príncipes das trevas deste século, contra as hostes espirituais da maldade, nos lugares celestiais.
Portanto, tomai toda a armadura de Deus, para que possais resistir no dia mau e, havendo feito tudo, ficar firmes.” (Efésios 6:11-13)
Há uma luta em curso que, antes de qualquer coisa, está sob a égide espiritual. O mal que campeia no mundo é fruto daqueles que combatem o bem, ou seja, são inimigos de Deus e da verdade, logo, trabalham para o príncipe das trevas, aquele que é mentiroso e assassino desde sempre. As maldades que vemos, ouvimos ou tomamos conhecimento diariamente é fruto da influência do diabo e seus demônios, mas também nasce, brota e se fortalece no homem cujo coração não conhece a Deus, não deseja conhece-lo, é idolatra, e produz para si um emaranhado de certezas a partir da mentira e falsidade. Alguns querem colocar a culpa exclusivamente nele, mas o coração que insiste e se alegra na afronta e rebeldia a Deus, também é culpado pelo mal que produz, muito mais do que satanás.
E se estamos em um mundo onde os homens carregam almas beligerantes contra o Criador, não somente a Cristo e seu evangelho, mas todos aqueles que o servem, também são declarados inimigos do mundo. Claramente, o cristão não poderá agradar ao mundo e a Deus, e se tem em seu íntimo a vontade agradar a Deus, fatalmente desagradará ao mundo. E o desagrado é uma declaração de guerra, ainda que unilateral. Porque o cristão não odeia os homens, nem o mundo, no sentido de querê-los destruídos, aniquilados, mortos por suas mãos. Não. Ainda que o pensamento do mundo seja motivado pelo pecado, pelo não arrependimento, desagradável, vil e mesquinho, ao crente, que também um dia, em algum aspecto, posicionou-se a favor do mal e contra o bem, reconhecerá que assim como ele mesmo necessitou da graça e misericórdia divinas para ser perdoado de sua condição iníqua e contenciosa, aos homens devem ser levadas as mensagens de vida, as boas-novas de Cristo, a fim de terem suas mentes e corações transformados, suas vendas tiradas, e a verdade lhes seja revelada pelo próprio Espírito. O arrependimento como consequência de uma disposição favorável, amorosa e grata, quando antes havia apenas ódio, desgosto e rivalidade contra Deus.
“Porque, andando na carne, não militamos segundo a carne.
Porque as armas da nossa milícia não são carnais, mas sim poderosas em Deus para destruição das fortalezas;
Destruindo os conselhos, e toda a altivez que se levanta contra o conhecimento de Deus, e levando cativo todo o entendimento à obediência de Cristo;
E estando prontos para vingar toda a desobediência, quando for cumprida a vossa obediência.” (2Co 10:3-6)
Portanto, se odiaram a Deus, também odiarão os seus filhos e servos:
“Isto vos mando: Que vos ameis uns aos outros.
Se o mundo vos odeia, sabei que, primeiro do que a vós, me odiou a mim.
Se vós fôsseis do mundo, o mundo amaria o que era seu, mas porque não sois do mundo, antes eu vos escolhi do mundo, por isso é que o mundo vos odeia.” (João 15:17-19)
E ainda outra vez:
“Estando eu com eles no mundo, guardava-os em teu nome. Tenho guardado aqueles que tu me deste, e nenhum deles se perdeu, senão o filho da perdição, para que a Escritura se cumprisse.
Mas agora vou para ti, e digo isto no mundo, para que tenham a minha alegria completa em si mesmos.
Dei-lhes a tua palavra, e o mundo os odiou, porque não são do mundo, assim como eu não sou do mundo.
Não peço que os tires do mundo, mas que os livres do mal.
Não são do mundo, como eu do mundo não sou.” (Jo 17:12-16)
DEIXO-VOS A PAZ
Como harmonizar os versos iniciais com outros tantos em que Deus é a paz, e ele veio para nos dar a paz? Como o próprio Senhor disse:
“Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; não vo-la dou como o mundo a dá. Não se turbe o vosso coração, nem se atemorize.” (Jo 14:27)
Cristo mostra que não dará aos seus uma paz igual a que o mundo deseja ou oferece, uma paz temporária, volátil, que se desfará no primeiro problema, trazendo, em seu lugar, angústia, dor e contendas. A paz que o mundo advoga é transitória, ilusória, porque ao homem bastaria um dissabor, uma contrariedade, ou algum tipo de agressão (por menor que seja), para que a ela seja quebrada. Na verdade, ela está diretamente ligada ao orgulho, ao egoísmo, e ao desejo de poder. Este poder não necessariamente significará subjugar os outros, mas simplesmente não se deixar subjugar. O mundo está em guerra com Deus exatamente por isso, por não querer, e não aceitar, o jugo divino. E se a forma de gratidão, por tudo que o Criador é, seria a adoração sincera e espiritual, em seu lugar o homem natural se põe na condição de ingrato, cultuando a si ou seu semelhante, quiçá um objeto.
Neste sentido, a paz pode ser entendida como aquela na qual o homem se sujeita e se entrega ao governo divino, e, por conseguinte, ao serviço como um todo: não somente a Deus, mas por Deus, para a sua glória, e servindo também ao próximo.
A afirmação do Senhor Jesus de que ele veio ao mundo para servir e não ser servido, coloca-nos diante de um dilema entre o “eu” que deseja ser servido, e a prontidão em se negar a si mesmo (negação não como pessoa, mas no egoísmo e superioridade de se considerar o “centro do mundo”; o que é, me maior ou menor escala, fruto da idolatria), e estar disposto a servir.
Cristo é a paz; aquele que veio desfazer a inimizade, a contenda, e guerra entre o homem e Deus. Ele é a paz, por se sujeitar à vontade do Pai; ele é a paz, por buscar a glória do Pai, e fazer a vontade dele, ao invés da sua; Ele é aquele que dá, quando poderia tomar; Ele é o sacrifício, oferecido como dádiva, quando poderia trabalhar por algum interesse individual; veio como Servo sofredor, quando poderia ter vindo como Rei. Este é o despir da glória de Cristo, o Rei eterno se fez um de nós, se fez servo, para que ele fosse tudo em todos.
Essa é a paz que recebemos, a paz que nos faz, em todos os sentidos, ansiar sermos como é o nosso Senhor. Se somos como ele, viveremos como ele, e serviremos como ele. No servir está a paz daquele que se submete ao Deus de paz.
CONCLUSÃO
No capítulo 14 de João, ele inicia assim:
“Não se turbe o vosso coração; credes em Deus, crede também em mim.”
E no versículo 27, ele repete, mais ou menos, o mesmo enunciado do verso 1:
“Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; não vo-la dou como o mundo a dá. Não se turbe o vosso coração, nem se atemorize.”
A paz somente vem pela fé. A fé de que, em qualquer situação ou circunstância, Cristo está cuidando de nós. E de que, sendo ele a paz, e estando unidos a ele, também teremos paz.