31 julho 2010

Suicídio Espiritual


















 Por Jorge Fernandes Isah



Não há na Escritura ninguém a reivindicar que se creia nele mesmo, a não ser Jesus Cristo; porque, de fato, ele é Deus, e ninguém mais pode reclamar o direito à razão da fé do que o próprio Deus. Mas nem todos estão aptos a ver isso. Muitos, nem mesmo querem ver, e apelam para um cristianismo sem Cristo. Para um cristo sem Deus. Para um deus inútil ao homem. Para um homem perdido, mas inexplicavelmente salvo por uma salvação em que a própria humanidade é redentora. Para um céu que é de todos, por direito, pois o inferno é possível apenas aqui, neste mundo. Para pecados desculpáveis, quando o único pecado indesculpável é a justiça divina. Para arrogar santidade, boas obras, mas sempre como um esforço próprio, como um processo “evolutivo” em que o homem interior se auto-regenerará progressivamente, e a justificação imputada por Cristo seria apenas o exemplo daquilo que se pode alcançar como conseqüência da bondade inerente ao homem, uma espécie de autocriação do bem à margem de Deus, o próprio bem. Mesmo os maus não têm do que se preocupar; no fim das contas, “Deus” vai consertar tudo, e a maldade será recompensada pela impossibilidade de ser boa, como uma “pobrezinha”, uma “coitadinha”, que não tinha consciência da perversidade, pois a ignorância quanto ao bem é o salvo-conduto para se aperfeiçoar e praticar o mal. Afinal, nascer e viver no mal é uma boa desculpa para não fazer o bem. E tem funcionado, pois nunca o mal foi tão amado, contemporizado, e minimizado entre os cristãos; ao ponto em que o pecado é um sofisma, a ser considerado apenas por mentes doentias e retrogradas.

Deixando a digressão de lado, voltemos ao foco: Cristo. Como disse, somente o Senhor avocou para si que os homens cressem nele; e, na Bíblia, somos chamados à fé apenas em Deus. Então, quando ele diz: “Credes em Deus, crede também em mim”, pois, “Eu sou o caminho, e a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai, senão por mim. Se vós me conhecêsseis a mim, também conheceríeis a meu Pai; e já desde agora o conheceis, e o tendes visto” [Jo 14.1, 6-7], está simplesmente afirmando a sua divindade, pois quem o vê, vê a Deus. Como também Paulo asseverou sobre ele: “O qual é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação... porque foi do agrado do Pai que toda a plenitude nele habitasse” [Cl 1.15,19]. De forma que Deus falou, nos últimos tempos, pelo Filho, o qual é o resplendor da sua glória, e a expressa imagem da sua pessoa, a quem constituiu herdeiro de tudo [Hb 1.1-3].

Ora, mas há os que tentam invalidar a Escritura dizendo que Cristo não se nomeou Deus, e os autores inspirados jamais o proclamaram como tal. Eles tentam nadar contra a maré, da mesma forma que um defunto pode pedalar um velotrol numa montanha-russa. O absurdo dos absurdos; e em suas presunções, logram-se sábios, quando não passam de loucos [Rm 1.21-22]. Para tanto, têm de rejeitar a inteligência, a lógica, a verdade, a fim de se entregarem às artimanhas mais vis que o espírito humano pode engendrar. Pois, como resistir, por exemplo, às evidências escriturísticas?

Vamos a algumas delas:

1- “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” [Jo 1.1];

2- “Disse-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo que antes que Abraão existisse, eu sou” [Jo 8.58];

3- “Eu e o Pai somos um. Os judeus pegaram então outra vez em pedras para o apedrejar... não te apedrejamos por alguma obra boa, mas pela blasfêmia; porque, sendo tu homem, te fazes Deus a ti mesmo” [Jo 10.30-33];

4- “E quem me vê a mim, vê aquele que me enviou” [Jo 12.45];

5- “Nos quais o deus deste século cegou os entendimentos dos incrédulos, para que lhes não resplandeça a luz do evangelho da glória de Cristo, que é a imagem de Deus” [2Co 4.4];

6- “... e negam a Deus, único dominador e Senhor nosso, Jesus Cristo” [Jd 4];

7- Jesus disse ao paralítico: “Filho, perdoados estão os teus pecados”, ao que alguns escribas arrazoaram, dizendo: “Por que diz este assim blasfêmias? Quem pode perdoar pecados, senão Deus?” [Mc 2.5-7];

8- “Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu, e o principado está sobre os seus ombros, e se chamará o seu nome: Maravilhoso, Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz” [Is 9.6];

9- “Olhai, pois, por vós, e por todo o rebanho sobre que o Espírito Santo vos constituiu bispos, para apascentardes a igreja de Deus, que ele resgatou com seu próprio sangue” [At 20.28];

10- “Dos quais são os pais, e dos quais é Cristo segundo a carne, o qual é sobre todos, Deus bendito eternamente. Amém” [Rm 9.5];

11- “E, sem dúvida alguma, grande é o mistério da piedade: Deus se manifestou em carne, foi justificado no Espírito, visto dos anjos, pregado aos gentios, crido no mundo, recebido acima na glória”[2Tm 3.16];

12- “Aguardando a bem-aventurada esperança e o aparecimento da glória do grande Deus e nosso Senhor Jesus Cristo” [Tt 2.13].

Como é possível, diante dessas evidências, que alguém ainda defenda a não-divindade de Cristo [e há um volume muito, mas muito maior na Escritura acerca dela]? Porém, o pior, o inconcebível, são pessoas que se dizem “cristãs” acreditarem, como ebionistas e arianos, que Jesus é um homem muito especial, um ser criado magnífico, mas nada além disso; não podendo jamais ser Deus.

Por Cristo vir buscar e salvar o que se havia perdido [Lc 19.10], o que implicará automaticamente na condenação dos que não forem salvos e mantêm-se dispersos no pecado, ao ver deles, é-se necessário desqualificá-lo, diminuí-lo, para, primeiro, anular o Juízo de Deus, depois a redenção, e então propor, à revelia da Bíblia, uma obra cujo valor é apenas moral, um exemplo de coragem, coerência e desprendimento para todos os homens.

O reflexo direto desse posicionamento é a descrença. Primeiro, por não levar em conta a revelação divina no texto bíblico e, segundo, por não levar em conta o próprio Deus. O que há é o desejo acalentado de atrair o homem para uma liberdade incapaz de tirá-lo da escravidão [2Pe 2.19]: a irrestrição para se pecar descaradamente, ainda que a noção de pecado esteja tão corrompida pelo próprio pecado, que não pareça pecado.

O pior é que conceitos não-cristológicos, ou seja, não-bíblicos, estão sendo sutilmente propagados nas igrejas e seminários; pequenos desvios, quase subliminares; heresias reformuladas e adequadas ao padrão de desconhecimento e pouco caso para com a Escritura, refletindo uma espécie de cultivo esmerado e tenaz da ignorância, em que a verdade dá lugar a mentiras travestidas de meias-verdades, como se fossem verdades. O discurso é aparentemente bíblico, mas não se está a exibir o que a Bíblia diz; eles buscam uma proximidade, e até mesmo se utilizam de expressões escriturísticas para dissimularem seus reais intentos, e seduzirem os tolos; e fazem crer que o Cristo não-revelado é o revelado, e assim, concluírem sua obra demoníaca. É o que Pedro diz: “haverá também falsos doutores, que introduzirão encobertamente heresias de perdição, e negarão ao Senhor que os resgatou, trazendo sobre si mesmos repentina perdição. E muitos seguirão as suas dissoluções, pelos quais será blasfemado o caminho da verdade” [2Pe 2.1-2].

No fundo, o homem natural apenas repete a si mesmo em seus muitos erros, acreditando na autonomia, na independência e autosuficiência em relação a Deus. Ele se encontra tão cheio de si, achando possível encontrar um significado no próprio homem, que erra enquanto acredita acertar, e perde a razão, tornando-se um ser ridículo, uma figura burlesca, um farsante que se orgulha de seus embustes; convencido de que não é trapaceiro, pelo hábito de trapacear.

Por isso, Cristo diz: “morrereis em vossos pecados, porque se não crerdes que EU SOU, morrereis em vossos pecados” [Jo 8.24].

E muitos já estão, sem sabê-lo, cometendo suicídio espiritual.

24 julho 2010

A Paz











Por Jorge Fernandes Isah

Farei uma postagem um pouco diferente de todas até aqui. O motivo? É que, nesta semana, recebi o vídeo abaixo, o qual me fez meditar no que está escrito: "E morará o lobo com o cordeiro, e o leopardo com o cabrito se deitará, e o bezerro, e o filho de leão e o animal cevado andarão juntos, e um menino pequeno os guiará. A vaca e a ursa pastarão juntas, seus filhos se deitarão juntos, e o leão comerá palha como o boi. E brincará a criança de peito sobre a toca da áspide, e a desmamada colocará a sua mão na cova do basilisco. Não se fará mal nem dano algum em todo o meu santo monte, porque a terra se encherá do conhecimento do Senhor, como as águas cobrem o mar" [Is 11.6-9].

Não entrarei nos mendros escatológicos, por pura ignorância mesmo, mas sei de alguns irmãos que não se furtarão a fazê-lo. Sejam bem-vindos! Mas mais do que a discussão sobre os "fim dos tempos", quero revelar a minha imensa alegria com a esperança da promessa de que a nossa paz está em Cristo, o Renovo [v.1] ao qual o profeta se referiu, e levou-o a dizer: "Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu, e o principado está sobre os seus ombros, e se chamará o seu nome: Maravilhoso, Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz" [9.6]

Paulo confirmou-o: "Mas agora em Cristo Jesus, vós, que antes estáveis longe, já pelo sangue de Cristo chegastes perto. Porque ele é a nossa paz" [Ef  2.13-14]

Não uma paz meramente ideológica, alcançada por meios humanos; não uma paz fomentada em gabinetes e discussões infandáveis e inócuas; não uma paz pela força, conquistada pelos quartéis e tropas; não uma paz que humilha e corrompe, destrói e expropria o espírito; não uma paz ao custo de arames farpados, grilhões, perseguições e morte. Ainda que a promessa seja de que o mal e os malfeitores serão castigados no fogo eterno ["Não há paz para os ímpios, diz o Senhor" Is 57.21], o que não é injusto, mas prova da justiça; a paz que Cristo nos dará [e já nos deu] não será forçosa, muito menos enganosa, como aqueles que prometem-na enquanto seus corações estão fincados na guerra, na dor e no sangue do próximo. Eles são os que levianamente tentam curar a ferida do povo, dizendo:"Paz, paz; quando não há paz" [Jr 8.11]. Na verdade, ou são tolos por proclamarem o engano, acreditando cegamente nele, ou fraudulentos, agindo dolosamente, com má-fé, em conformidade com a malignidade daquele a quem querem satisfazer os desejos, o diabo, o qual "foi homicida desde o princípio, e não se firmou na verdade, porque não há verdade nele. Quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso, e pai da mentira" [Jo 8.44].

Creio firmemente que, como cristãos, devemos buscar reformular o mundo, a partir da Escritura, não a partir de movimentos sociais e políticos [ideologicamente antropocêntricos], ainda que devamos e tenhamos o dever de participar, como Igreja, nesses segmentos, como a luz que Cristo faz brilhar em nós. Pode parecer incoerente o que estou a dizer; mas digo que é-nos possível participar de quase todos os movimentos artisticos, sociais e políticos, a fim de salgá-los e iluminá-los, porém, sem jamais usar as lentes humanistas, mas sempre com a mente de Cristo, firmados na Palavra, sem concessões, relativizações ou associações com as forças do mal. Na verdade, estamos proibidos de agir segundo os padrões do mundo, segundo as diretrizes traçadas pelas mentes envoltas em trevas, para não sermos confundidos com eles, "porque ninguém pode pôr outro fundmento além do que já está posto, o qual é Jesus Cristo" [1Co 3.11].

Muitos entenderão que estou sendo radical, e de que as coisas não são bem assim. Dirão que o homem, por viver no mundo, pode se associar ao que não está claramente contra o Evangelho. É interessante que o argumento utilizado quase sempre justificará a cooperação com o que é flagrantemente contra o Evangelho. Ou seja, estará a justificar a carnalidade e impiedade, quando a Bíblia exorta-nos, em todo o tempo, à separação, a nos afastar e rejeitar tudo o que se oponha à verdade. Não é assim que Paulo nos alerta a agir? "Não vos prendais a um jugo desigual com os infiéis; porque, que sociedade tem a justiça com a injustiça? E que comunhão tem a luz com as trevas? E que concórdia há entre Cristo e Belial? Ou que parte tem o fiel com o infiel?" [2Co 6.14].

Há muitos que se dizem cristãos mas praticam o anticristianismo. Há muitos que se dizem discípulos de Cristo, quando estão a servir a Belial. Há os que insistem na associação de luz com trevas, quando a luz dissipa e destrói as trevas. E há ainda os que se dizem justos e estão a praticar a injustiça, em nome da justiça, movidos pelo engano e prazer na injustiça. Exemplos práticos despontam aos borbotões: "crentes" de todos os tipos a testemunhar o falso evangelho, acorrentados à dissolução, seja ideológica [os que se unem a materialistas/marxistas, p. ex.], seja física [entregues à prostituição, embriaguez, pornografia], seja moral [aqueles que furtam, corrompem, estorquem, fraudam, lesam, matam]; e mesmo os que não as praticam,  pecam quando "também consentem aos que as fazem" [Rm 1.32].

A sabedoria do mundo tenta nos enrodilhar, nos atrair com palavras doces e aparentemente inofensivas, quando o objetivo é nada mais do que nos destruir, e fazer-nos alinhar aos esquadrões do mal, e assim tornar-nos loucos para Deus. E o que isso quer dizer? Que daremos mais importância para aquilo que Deus tornou loucura, e desprezaremos o que Deus fez sabiamente: salvar os crentes pela loucura da pregação [1Co 1.21].

Não há evangelho sem Cristo crucificado. Não há evangelho sem arrependimento. Nem sem confessar pecados; sem remissão. Sem novo-nascimento. Sem nos revestir de Cristo. Não há evangelho sem morte; nem ressurreição. Não há evangelho sem tristeza, nem vergonha pelo que somos. Mas também não há sem a alegria e esperança do que seremos. E o que querem nos dar é um evangelho caquético, que nos lançará, como naúfragos, do mar de enxofre para o lago de fogo; um evangelho que, de tropeço em tropeço, levará inevitavelmente à queda definitiva, a rejeitar a verdade, permanecendo incrédulos, e soberbos na tolice inflexível. Porque acreditam possível enganar a Deus; creem nas suas espertezas, e na possibilidade de dissimularem seus intentos, ao ponto em que os manterão secretos, como a conservar intactos seus disfarces; contudo, esquecem-se de que o Senhor vê tudo, nada escapa-lhe, como sentenciou: "Ai dos que querem esconder profundamente o seu propósito do Senhor, e fazem as suas obras às escuras, e dizem: Quem nos vê? E quem nos conhece? Vós tudo perverteis, como se o oleiro fosse igual ao barro, e a obra dissesse do seu artífice: não me fez; e o vaso formado dissesse do seu oleiro: Nada sabe" [Is 29.15-16].

A escuridão é densa, e não podem realmente reconhecer a verdade, "porque o Senhor derramou sobre vós um espírito de profundo sono, e fechou os vossos olhos, vendou os profetas, e os vossos principais videntes... Porque o Senhor disse: Pois que este povo se aproxima de mim, e com a sua boca, e com os seus lábios me honra, mas o seu coração se afasta para longe de mim e o seu temor para comigo consiste só em mandamentos de homens, em que foi instruído" [Is 29.10,13].

Mas nós podemos, porque nos foi dado alcançar a graça e a fé pela pregação da Palavra; e recebemos o Espírito de Deus, para conhecer o que nos foi dado gratuitamente por Ele, uma vez que o homem  espiritual "discerne bem tudo, e ele de ninguém é discernido. Porque, quem conheceu a mente do Senhor, para que possa instruí-lo? Mas nós temos a mente de Cristo" [1Co 2.15.16].

Sobre o vídeo, não sei dizer se haverá animais na eternidade. A Bíblia, em várias passagens proféticas, nos mostra a imagem de animais convivendo com os homens. Não sei dizer se são apenas simbólicas ou efetivamente acontecerão. Ao meu ver, talvez por gostar de animais e pensar limitadamente, creio que haverá nos novos céus e terra, o convívio pacífico entre os homens, e entre eles e os animais. O que me dá essa certeza é o trecho em que Paulo fala da esperança de que também a criatura será libertada da servidão da corrupção, para a mesma liberdade da glória que temos, como filhos de Deus. Para concluir que "toda a criação geme e está juntamente com dores de parto até agora" [Rm 8.22], e de que espera, como nós, a adoção, a saber, a redençao. 

Então, temos uma prévia do que poderá ser a eternidade, como nos diz o profeta no início deste texto. 

Não sei se o Kevin Richardson é cristão. Se não for, mais do que rolar, acariciar e ser "afagado" pelas feras, deveria desejar sê-lo para participar de todas as bênçãos em Cristo, as quais Deus fez abundar nos filhos da adoção, revelando-nos o mistério da sua vontade, para congregar todas as coisas em Cristo, "na dispensação da plenitude dos tempos, tanto as que estão nos céus como as que estão na terra... com o fim de sermos para louvor da sua glória, nós o que primeiros esperamos em Cristo" [Ef 1.10, 12].

Richardson talvez esteja experimentando o que faremos em plenitude na eternidade. Certamente com a alegria e perfeição que jamais alguém alcançará neste mundo, pois lá, o faremos no amor de Cristo, e para a glória dAquele que primeiro nos amou.


19 julho 2010

Pecado, a tragédia!















Por Jorge Fernandes Isah

Nos últimos anos, temos lido e ouvido uma avalanche de justificativas para as tragédias que têm acometido o mundo: tsunamis, terremotos, enchentes, seca, e muitas outras catástrofes que nos têm deixado atônitos. A pergunta que não quer se calar é: qual a relação entre essas tragédias e o pecado?


Muitos apelarão para o deus que se surpreende com um tsunami ou um terremoto. Outros dirão que ele abriu mão da sua onipotência e onisciência para sentir e sofrer como nós, logo, estando impotente para agir diante das desgraças, e mesmo da vontade do homem; um pobre-coitado preso na própria armadilha, sem chance de se libertar. Outros, ainda, alegarão que deus não está nem aí para este mundo. Haverá os que defendem a soberania da natureza, a eco-divindade, a deusa Gaya dos tempos modernos, que está a se revoltar contra as agressões perpetradas pelo homem. Porém, o fato é que:


1) Deus é soberano; e nada acontece alheio ou contra a sua vontade: “Eu sou o Senhor, e não há outro. Eu formo a luz, e crio as trevas; eu faço a paz, e crio o mal; eu, o Senhor, faço todas estas coisas” [Is 45.6-7]; “Tocar-se-á a trombeta na cidade, e o povo não estremecerá? Sucederá algum mal na cidade, sem que o Senhor o tenha feito?” [Amós 3.6].


2) Deus controla e coordena todas as coisas, inclusive as mais insignificantes e desprezadas; ao ponto em que muitos se perguntam: Por que Deus se importaria com isso?... Ele tem mais o que fazer!


Acontece que Ele é Deus, o Criador de todas as coisas; e se foram criadas, foram-no com um propósito definido, irrevogável, ultimado, a produzir eficazmente os resultados que determinou antes da fundação do mundo; portanto, por que o Senhor deixaria ao léu a criação? À própria sorte? Como está escrito: “E todos os moradores da terra são reputados em nada, e segundo a sua vontade ele opera com o exército do céu e os moradores da terra; não há quem possa estorvar a sua mão, e lhe diga: Que fazes?” [Dn 4.35].


3) O cerne da questão é: até que ponto o Deus bíblico pode deixar de ser Deus? Até que ponto Ele pode abandonar a sua criação e continuar Deus? E se existe alguma autonomia nas coisas, seja na natureza ou no homem, Deus permaneceria Deus, o Todo-Poderoso, o Soberano, Senhor de tudo? Não, porque Ele mesmo diz de Si mesmo: “Como pensei, assim sucederá, e como determinei, assim se efetuará... Porque o Senhor dos Exércitos o determinou; quem o invalidará? E a sua mão está estendida; quem pois a fará voltar atrás?” [Is 14.24, 27].


Algo que o crente jamais poderá duvidar é na completa, plena, irreversível e inexorável soberania divina, com o risco de se comprometer a fé bíblica e ser achado entre os que rejeitando a fé e a boa consciência “fizeram naufrágio na fé”[1Tm 1.19]. Então, sejam os tsunamis, os terremotos, incêndios, pestes, ou um tiro desferido ao “acaso” e que vitimou alguém, ou uma doença incurável, tudo estará magistralmente sob o domínio do Senhor, sem que um mísero fio de cabelo caia por indiferença, ao contrário, ele cairá sempre e infalivelmente segundo a autoridade dAquele que decretou eternamente que caísse: “Não se vendem dois passarinhos por um ceitil? E nenhum deles cairá em terra sem a vontade de vosso Pai. E até mesmo os cabelos da vossa cabeça estão todos contados” [Mt 10.29-30].


Assim, dizer que Deus não quis que milhões de pessoas morressem desgraçadamente, vitimadas por calamidades naturais é, para dizer pouco, uma blasfêmia; quando não, o reflexo do ceticismo, da autoidolatria, da não-conversão, em que muitos, por não aceitar a verdade, refestelam-se na mentira. Pois como Ele diz: “Eu sou o Senhor, e não há outro; fora de mim não há Deus” [Is 45.5]. Se alguém está a crer em outra coisa, seja o homem, a ciência, ou em outro deus qualquer, jamais a fé estará depositada no Deus bíblico, o Deus de Abraão, Isaque e Jacó, e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. 


Acreditar que o "acaso" ou forças impessoais dirigem o universo, e de que Deus é um mero espectador, impassível ou angustiado em sua impossibilidade de ação, é estar imerso na mais falsa e espúria corrupção, ao ponto em que Deus é desfigurado de tal maneira que não guarda nada em sua essência que seja verdadeiro. Resta aos defensores dessas doutrinas assumirem as consequências de não terem a mente de Cristo; e urge voltarem à Palavra, sob pena de serem por ela declarados culpados [Jo 12.48].


Voltando à pergunta inicial, qual a relação entre as tragédias e o pecado? É certo afirmar que o pecado não tem nada a ver com as catástrofes pessoais ou coletivas? Errado! Porque não entender que todas as coisas acontecem pelo vontade ativa do Senhor torna o homem num tolo, já que "na sua mão está a alma de tudo quanto vive, e o espírito de toda a carne humana" [Jó 12.9-10]


A primeira conseqüência do pecado foi a morte do homem. Não a morte física, mas a morte espiritual. O homem foi separado de Deus. E pode haver conseqüência pior, mais danosa? Foi o Senhor quem disse a Adão: “Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás” [Gn 2.17]; o que também foi confirmado pelo profeta: “Cada um morrerá pela sua iniqüidade” [Jr 31.30]. A pior morte não é a corrupção da carne, sendo ela também reflexo do pecado, mas a separação profunda e intensamente letal de Deus.


Em Gênesis, após o pecado de Adão e Eva, Deus os amaldiçoou, bem como a serpente; e lê-se: “maldita é a terra por causa de ti [Adão]; com dor comerás dela todos os dias da tua vida... No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que te tornes à terra; porque és pó e em pó te tornarás” [Gn 3.17, 19]. Ou seja, o pecado do homem afetou não somente a sua condição, mas a condição de toda a criação, que clama pelo dia em que será redimida também: “Porque sabemos que toda a criação geme e está juntamente com dores de parto até agora. E não só ela, mas nós mesmos que temos as primícias do Espírito, também gememos em nós mesmos, esperando a adoção, a saber, a redenção do nosso corpo” [Rm 8.22-23]. O pecado é o maior de todos os males, a desgraça potencialmente destrutiva e que, se minimizado, representará a completa destruição daquele que negligencia sua nocividade, sendo indulgente para com ele.


Paulo diz: “Mortificai, pois, os vossos membros, que estão sobre a terra: a fornicação, a impureza, a afeição desordenada, a vil concupiscência, e a avareza, que é idolatria; pelas quais coisas vem a ira de Deus sobre os filhos da desobediência” [Cl 3.5-6].


Podemos afirmar, seguramente, que as tragédias não têm nada a ver com o pecado? E que não acontecem como manifestação da ira divina? Em quais bases os “apologistas” desta doutrina se firmam para garanti-la?


Será, porventura, no Salmo 78.31? “Ainda lhes estava a comida na boca, quando a ira de Deus desceu sobre eles, e matou os mais robustos deles, e feriu os escolhidos de Israel”.


Ou será em Atos 5.1-10? Quando Ananias e sua mulher venderam uma propriedade, retiveram parte do dinheiro, e depositaram o restante aos pés dos apóstolos? “Disse então Pedro: Ananias, por que encheu Satanás o teu coração, para que mentisses ao Espírito Santo, e retivesses parte do preço da herdade? Guardando-a não ficava para ti? E, vendida, não estava em teu poder? Por que formaste este desígnio em teu coração? Não mentiste aos homens, mas a Deus. E Ananias, ouvindo estas palavras, caiu e expirou” [v. 3-5].


Pode ser Atos 13.8-12? Em que Elimas, o encantador, resistia a Paulo e Barnabé, diante do Procônsul Sérgio Paulo, procurando afastá-lo da fé? Ao que Paulo disse: “Ó filho do diabo, cheio de todo o engano e de toda a malícia, inimigo de toda a justiça, não cessarás de perturbar os retos caminhos do Senhor? Eis aí, pois, agora contra ti a mão do Senhor, e ficarás cego, sem ver o sol por algum tempo. E no mesmo instante a escuridão e as trevas caíram sobre ele e, andando à roda, buscava a quem o guiasse pela mão” [v.10-11].


Porventura seria 1 Samuel 5? Em que os filisteus tomaram a arca de Deus, colocando-a na casa de Dagom? “Porém a mão do Senhor se agravou sobre os de Asdode, e os assolou; e os feriu com hemorróidas, em Asdode e nos seus termos”[v.6].


A arca foi passada de mão em mão, e a peste se alastrou sobre aqueles que retinham a arca de Deus: “A arca do Deus de Israel será levada até Gade... E sucedeu que, assim que a levaram, a mão do Senhor veio contra aquela cidade, com mui grande vexame” [v. 8.9]. “E os homens que não morriam eram tão atacados com hemorróidas que o clamor da cidade subia até o céu” [v.12].


Quem sabe em Levítico 10? “E os filhos de Arão, Nadabe e Abiú, tomaram cada um o seu incensário e puseram neles fogo, e colocaram incenso sobre ele, e ofereceram fogo estranho perante o Senhor, o que não lhes ordenara. Então saiu fogo de diante do Senhor e os consumiu; e morreram perante o Senhor” [v.1-2].


Ou ainda, em 2 Samuel 6? “E, chegando à eira de Nacom, estendeu Uzá a mão à arca de Deus, e pegou nela; porque os bois a deixavam pender. Então a ira do Senhor se acendeu contra Uzá, e Deus o feriu ali por esta imprudência; e morreu ali junto à arca de Deus” [v. 6-7].


Acho que não...


Assim como esses versos, há uma profusão de outros versos na Escritura que revelam o castigo divino sobre os rebeldes, sejam castigos físicos ou espirituais, ou ambos. Dizer que Deus não castiga o pecador é um grande engano. Da mesma forma, muitos querem humanizá-lo a partir de falsos pressupostos, como se o crente não devesse se utilizar dos pressupostos bíblicos. Por isso, muitos desprezam a Escritura, querem desacreditá-la, reescrevê-la, reinterpretá-la, a fim de atender aos objetivos mais vis e desprezíveis que a alma humana pode conceber. Há uma legião de falsos crentes que estão sistematicamente a deflagrar em outros o seu ceticismo, ao ponto de acreditarem apenas na própria tolice. Estão a entoar uma canção fúnebre, marchando em direção ao abismo, evitando qualquer contato com a sabedoria que vem do alto [Ecl 7.5].


Um dos argumentos mais usados para defender o não-castigo para o pecado é o trecho em que Cristo fala sobre os galileus, presente em Lucas 13. Segundo o argumento deles, diga-se de passagem distorcido, se Cristo diz: “Cuidais vós que esses galileus foram mais pecadores do que todos os galileus, por terem padecido tais coisas? Não, vos digo; antes, se não vos arrependerdes, todos de igual modo perecereis” [v. 2-3], é sinal de que não foi pelo pecado que aqueles homens padeceram a tragédia [esses galileus foram mortos e tiveram o sangue misturado com os seus sacrifícios no templo, por Pilatos]. Porém, não é isso que o Senhor afirma, pois, o que está a dizer é: todos são pecadores, e não foi porque alguns pecaram mais que sofreram mais; contudo, mesmo não pecando tanto como aqueles, se não se arrependerem perecerão de igual modo. O Senhor está chamando a atenção não para o grau de pecado, se maior ou menor, mas para o fato de que pecando, seja em qual nível for, sem arrependimento estarão todos condenados à morte. Ou seja, o pecado será sempre punido, de uma forma ou de outra.


Outro trecho muito utilizado é o de João 9. Ali, os discípulos ao verem um cego de nascença, perguntam: “Rabi, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego? Jesus respondeu: Nem ele pecou nem seus pais; mas foi assim para que se manifestem nele as obras de Deus” [v.2-3]. Apressadamente, muitos dirão: "Viu! O mal não sobrevém por causa do pecado. O cego não fez nada para merecer a cegueira, coitadinho! Senão, como explicar que ele nasceu cego? E por que eu não nasci cego?".


Especificamente, nesta questão, Cristo disse que a cegueira daquele homem era para que a obra de Deus fosse manifestada nele. Cristo o curaria diante dos olhos incrédulos dos judeus, ao ponto em que o cego daria testemunho não somente diante da assistência atônica [“desde o princípio do mundo nunca se ouviu que alguém abrisse os olhos a um cego de nascença” v. 32], mas também diante dos fariseus, da incredulidade e hipocrisia deles, que consideravam transgressão Cristo curar no Sábado. Aquele homem foi instrumento para revelar ao mundo que em Cristo está manifestada a glória de Deus, pelas obras que Ele faz em nome do Pai; “a fim de que os que não vêem veja, e os que vêem sejam cegos” [v.39]; mas mais do que isso, para revelar que era Deus, e não estava sujeito à Lei, ainda que a cumprisse integralmente. Há também uma referência explícita à cegueira espiritual em que o homem natural está imerso, e somente Cristo pode tirá-lo da sepultura, das trevas em que se encontra, trazendo-o para a luz, salvando-o da condenação. Logo, não há argumento aqui a isentar o homem de sofrer pelo pecado; pelo contrário, todos sofrerão por causa dele, de um jeito ou de outro. Mesmo nós, os remidos pelo sangue de Cristo na cruz, não estamos livres dos seus efeitos, o que acontecerá somente na eternidade, quando seremos impossibilitados por Deus de pecar, feitos santos como santo é o seu Filho Amado.


Em outra passagem, Jesus curou um homem que se achava enfermo trinta e oito anos. O Senhor se aproximou dele sabendo que estava doente há muito. Depois de algum tempo, eles se encontraram novamente no templo, e Jesus disse-lhe: “Eis que já estás são; não peques mais, para que não te suceda alguma coisa pior” [Jo 5.14]. Ao meu ver, o Senhor está a falar de um pecado específico cometido por aquele homem no passado e que motivou a enfermidade, ou simplesmente de pecados genéricos. De qualquer forma, o aspecto geral de sua exortação era para que ele evitasse o pecado a todo custo, resistindo-lhe.


Como nos exemplos anteriores, vemos que existe a punição física pelo pecado também aqui, tanto no aspecto individual como coletivo. Com isso, não quero dizer que devamos sair à caça dos pecados alheios, apontando-os e usando-os como justificativa para a tragédia na vida humana. Porém, Deus em sua soberania, pode dispor de cada um de nós da forma como quiser, como melhor lhe convém, sem que possamos, com isso, acusá-lo de qualquer delito ou desvio de caráter. Deus é santo, perfeito, justo e Senhor. Cabe-nos reconhecê-lo como tal, e a Ele dar honra e glória, para sempre. Sem nos esquecer de que o pecado será punido, de que o infrator, ao rejeitar o nome de Cristo como Senhor e Salvador, estará irremediavelmente perdido. Porque a verdade não pode ser desfeita, nem alterada, mas permanece imutável, garantida pelo próprio Deus: “Eis que todas as almas são minhas; como o é a alma do pai, assim também a alma do filho é minha: a alma que pecar, essa morrerá” [Ez 18.4].


Deixar-se iludir pelo pecado, ainda que ele tenha uma aparência atrativa,  representará a morte; pois ele é fatal, e cobrará o seu salário no tempo devido [Rm 6.23].

13 julho 2010

A vontade de Cristo














Por Jorge Fernandes Isah

Dando continuidade ao tema do último post, e tratando de um assunto tão ou mais complexo do que aquele, ousarei falar sobre as vontades de Cristo. Primeiro, um esclarecimento:

Não tenho pretensão de ser a última palavra em nada. Reconheço minhas muitas limitações e incapacidades, mas se estou a tratar de alguns assuntos quase “tabus” entre os cristãos, com uma perspectiva diferente da adotado por Concílios, Sínodos e Confissões, deve-se ao fato de não concordar completamente com suas declarações, percebendo erros e distorções em relação ao texto bíblico. O que não quer dizer desprezá-las, nem quem as professa integralmente. Há, contudo, posições que me são inconciliáveis, originárias da má-conclusão das declarações ou decorrente da minha incapacidade de compreendê-las adequadamente.

De qualquer forma, tanto elas, quanto eu, somos feitos da mesma matéria: a imperfeição; portanto, não há infalibilidade em nenhum de nós. Por isso, exorto que o meu texto e outros materiais sejam lidos, mas, sobretudo, que a Escritura tenha preeminência sobre qualquer decisão que se vá tomar, sendo ela a última e definitiva palavra final. Oro para que Deus nos ilumine e capacite a compreender e buscar sempre a verdade.

Mais do que a simples polêmica, o meu objetivo é fazer com que meditemos sobre assuntos praticamente “mortos” entre nós, que têm sido negligenciados, e que abandoná-los significa comprometer o conhecimento de Deus. Além de serem assuntos que têm me instigado e me levado a estudá-los, os quais são fundamentais para a Igreja se manter firmemente fundada no Evangelho; sem outra pretensão a não ser expor o meu pensamento.

Então, vamos ao tema propriamente dito: a vontade de Cristo.

Não farei um apanhado histórico, por motivos óbvios. Mas definirei dois termos que serão importantes no decorrer da exposição, e que suscitou muitas disputas no passado, e ainda hoje é alvo de má-interpretação:
1) Monotelismo: doutrina que admite em Cristo duas naturezas, a humana e a divina, e uma única vontade. 
2) Duotelismo: doutrina que defende a existência de duas naturezas e duas vontades naturais em Cristo.

Resumo de alguns conceitos cristológicos:
1) Cristo é plenamente Deus e plenamente homem, contudo, sem pecado.
2) Cristo, portanto, tem duas naturezas: a divina e a humana, bem como duas vontades perfeitas e não-contrárias, sem que Ele seja duas pessoas, mas uma unipersonalidade.
3) As duas vontades de Cristo não se conflitam, coexistindo harmoniosamente; em que a vontade humana está sempre sujeita ou subordinada à vontade divina.
4) Cristo é o sujeito pessoal único e indivisível, cujas ações humanas e divinas são atribuídas a apenas um agente, que é o Deus-homem.

O dilema é: como duas vontades distintas podem subsistir em uma mesma pessoa? Não parecem necessárias duas pessoas para se ter duas naturezas e duas vontades? Acontece que há um princípio governante supremo entre as duas vontades: Deus.

“Afinal de contas, como também crêem os da ortodoxia histórica, o controle da personalidade do Redentor é dependente de sua natureza divina, portanto, com vontade divina. A vontade humana de Cristo sempre esteve submissa à vontade divina”[1].

Como alguns querem entender, não vemos nenhuma alusão de que a natureza humana de Cristo seja independente da divina, como se fosse algo além ou um acréscimo ao Logos; ao ponto em que é impossível distinguir-se nas ações do Senhor quem operou o quê, se a parte humana ou a parte divina, tendo-se em vista que Ele é Um, unio personalis.

Ao se fazer qualquer distinção e, por isso, a impossibilidade de Deus deixar de ser Deus e ainda continuar a sê-lo [o esvaziamento a que muitos se referem], estar-se-á invariavelmente comprometendo a sua unipersonalidade. Desta forma, o communicatio idiomatum ou comunicação de propriedades, na qual ambas as naturezas, divina e humana, passaram a ser propriedades da pessoa de Cristo, e a ela são atribuídas, remetem-me ao Logos. Em outros termos, o que estou a dizer é que ambas as naturezas do Redentor procedem do Logos, o Verbo, de tal forma que a natureza humana procede de uma única hypostasis [existência pessoal]: o Verbo eterno! Afinal, o Logos é o sujeito da encarnação.

Há uma única personalidade, a do Deus-Filho, o que não quer dizer que a humanidade de Cristo seja impessoal ou anipostática, a qual afirma que a natureza humana do Filho não constitui pessoa. A personalidade do Filho, ou seja, a sua natureza, suas propriedades essenciais, sempre existiram, são eternas, a despeito da encarnação. De tal forma que, “se o Filho não tivesse se encarnado, seria uma pessoa da mesma maneira... A natureza humana de Jesus Cristo existe somente em união com o Logos e pela união com ele, não tendo existência própria à parte dele. Essa natureza humana não tem subsistência independente”[2].

Uma outra forma de dizer o mesmo é que “a natureza humana de Cristo não ficou sem hipóstase, mas se tornou hipostática [personalizada] na Pessoa do Logos”[3].

Se voltarmos à minha afirmação na postagem anterior, veremos que disse o seguinte: 

"Apenas para não deixar a pergunta sem resposta, a qual poderei esmiuçar em 
outra postagem, acredito [sem me aprofundar no assunto], que o Cristo-homem é 
eterno, ainda que assumisse a natureza corpórea no tempo, pela encarnação, mas 
desde sempre foi o Verbo, Deus e homem, como os apóstolos dizem:
"O segundo homem, o Senhor é do céu" [1Co 15.47]
"Como também diz, noutro lugar: Tu és sacerdote eternamente, segundo a ordem 
de Melquisedeque" [Hb 5.6]
"O qual, na verdade, em outro tempo foi conhecido, ainda antes da fundação do mundo, mas manifestado nestes últimos tempos por amor de vós" [1Pe 1.20]
"No princípio era o Verbo, e o verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus" [Jo 1.1]"


Mas o que isso tem a ver com hypostasis e anipostasis?

A questão é que, rudimentarmente, afirmei uma posição que se pode chamar de “união enipostática” [ainda que ela não esteja completa e corretamente definida no que escrevi], ou seja, Cristo sempre foi a eterna segunda pessoa da Trindade, o Verbo, o Filho de Deus, “com uma natureza humana e sua própria natureza divina, e é a “pessoa” das duas naturezas”[4]. Em outra palavras, Cristo é o Logos que se fez homem, carne, e a ele pertencem tanto a natureza divina como a natureza humana, e de quem a Escritura trata em sua inteireza, totalidade, não compartimentado. 

Do ponto de vista lógico, pergunto: Cristo é santo? Cristo é perfeito? Cristo é puro? Cristo é justo? Cristo é sábio? Cristo é impecável? Se afirmamos que estes e outros atributos divinos estão presentes em Cristo, teremos de aceitar também a sua eternidade e imutabilidade. Não dá para dissociar Cristo Deus do Cristo homem, pois as duas naturezas é que o tornam o Cristo, o Filho de Deus. 

Senão, de qual forma entenderemos a sentença: “Jesus Cristo é o mesmo, ontem, e hoje, e eternamente” [Hb 13.8]? Vejam bem a relação desta afirmação de Paulo[5] com os versos de Apocalipse: “Graça e paz seja convosco da parte daquele que é, e que era, e que há de vir, e da dos sete espíritos que estão diante do seu trono... Eu sou o Alfa, e o Ômega, o princípio e o fim, diz o Senhor, que é, e que era, e que há de vir, o Todo-Poderoso... E eu, quando o vi, caí a seus pés como morto; e ele pôs sobre mim a sua destra, dizendo-me: Não temas; Eu sou o primeiro e o último” [v. 4, 8, 17].

Como já disse outras vezes, é impossível se adicionar alguma coisa ao Perfeito, seja muito ou pouco; é-se impossível adicionar ou aumentar algo à Pessoa, sem que a Pessoa deixe de sê-lo, portanto, afirmar que Cristo é, sempre, mas, de alguma forma, passou a ter, após a encarnação, algo acrescido à sua essência, parece-me insensato e irracional. Falar de Deus, o Verbo, Cristo e Jesus, separadamente, como se estivesse a distinguir uma porção ou parte divina e uma porção ou parte humana, é indicativo de que se está a falar de duas pessoas, não de uma, a qual é o Senhor Jesus Cristo, a segunda Pessoa da Trindade.

Paulo diz que fomos eleitos em Cristo com todas as sortes de bênçãos espirituais antes da fundação do mundo e predestinados para filhos da adoção nEle [Ef 1.4-5]. Se cremos no eterno decreto, como é possível Deus nos eleger eternamente através de algo temporal? E se a natureza humana de Cristo está na carne, e se ela é limitadora da sua natureza divina, ao ponto de se crer possível Deus esvaziar-se de Si mesmo, como explicar a imutabilidade, onisciência, onipotência de Deus? Pode Cristo deixar de ser Deus em algum aspecto e momento? Pode Cristo deixar de ser humano em algum aspecto e momento? Se pode, não estamos falando do ser imutável e perfeito, mas de um ser mutável e imperfeito.

Por isso, dissociar Cristo de Cristo, seja em qual condição ou por qualquer justificativa, não me parece bíblico, nem lógico.

Seguindo este padrão, entramos na questão da vontade do Senhor. Como definido nos termos iniciais, desde os primórdios da Igreja debatia-se se Cristo tinha uma ou duas naturezas, se era uma ou duas pessoas, se possuía uma ou duas vontades. A questão é: seria possível Cristo ter uma vontade, mesmo que seja um simples desejo, uma expectativa ou probabilidade, contrária à vontade de Deus? É concebível Cristo, como Deus e homem, ter duas vontades conflitantes, antagônicas, discrepantes? Até que ponto Ele pode querer algo que se choque com o divino?

O Senhor disse: “Porque eu desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou” [Jo 6.38]. Neste versículo é possível conceber dois ensinos:

1) O de que Cristo, Deus e homem, tem apenas uma vontade, que é a vontade da Pessoa, Cristo, resultando em um ato como conseqüência de uma decisão tomada [monotelismo]. Assim, há uma vontade, a de Cristo, que é a mesma daquele que o enviou, o Pai. Cristo tem uma vontade, que o levou a decidir fazer a vontade do Pai.

2) O de que Cristo, Deus e homem, tem duas vontades, as quais não são conflitantes mas consoantes, ambas colaborando harmonicamente, como duas energias em operação, por causa da suas duas naturezas, resultando na ação da Pessoa, Cristo, sem que a natureza humana seja um mero instrumento da vontade divina, sendo parte essencial da pessoa completa de Cristo [duotelismo]. Assim, há duas vontades que têm o mesmo propósito e se comunicam, levando Cristo a decidir fazer a vontade daquele que o enviou, o Pai.

Do ponto de vista soteriológico, a natureza humana de Cristo tem de ter uma vontade, não independente, não autônoma da sua natureza divina, mas concorrendo juntamente com ela para que Ele decida-se e aja unanimemente de acordo com elas, pois, de outra maneira, não haveria possibilidade dEle ser verdadeiramente humano, não podendo ser o Salvador.

Como Deus controla todas as coisas, inclusive as vontades, pensamentos, desejos e ações humanas, por mais que se possa intelectualmente dividir as vontades de Cristo em duas, elas serão sempre uma: aquela decretada por Deus. Por onde se raciocine, especule ou filosofe, no fim das contas, o que vale mesmo é aquilo que foi decretado na eternidade. Por isso, as vontades, mesmo de Cristo, não podem estar sujeitas a variações, não podem ser mutáveis, nem díspares, nem se indisporem. E a sua vontade humana estará sujeita e condicionada àquilo que a natureza divina estabeleceu para sempre, porque "Deus é o que opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade" [Fp 2.13]. 

Do ponto de vista ontológico, o ser de Cristo tem duas vontades, contudo a vontade humana não pode, em nenhum aspecto, anular ou reformular a vontade divina, alterando-a; e se são duas vontades com um único propósito perfeito e santo, onde todos os seus elementos são idênticos e concorrem para o mesmo objetivo, não há porque falar em dupla vontade, mas numa única vontade, coesa, indissolúvel, inseparável. De tal forma que Paulo chegou à seguinte conclusão: de que Deus opera em nós o que “perante ele é agradável por Cristo Jesus, ao qual seja glória para todo o sempre. Amém.” [Hb 13.21].  Ou seja, a vontade de Cristo é a vontade Deus, de tal forma que ele a quer operada em nós, “porque dele e por ele, e para ele, são todas as coisas; glória, pois a ele eternamente. Amém.” [Rm 11.36].

De outra forma, não teria o Senhor dupla personalidade? Não seria Ele ambíguo, esquizofrênico, indistinguível e não-real? De maneira nenhuma; pois nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade [Cl 2.9], logo, a perfeição.

Porque Cristo é um. E sua vontade, única; irretocável.

Notas: [1] “A União das Naturezas do Redentor”, Heber Carlos Campos, Ed. Cultura Cristã, pg. 47.
[2] Idem. Pg. 55
[3] História da Teologia Cristã, Roger Olson, Ed. Vida, pg. 250
[4]  Idem, pg 251
[5] Já disse anteriormente que não considero Hebreus um livro anônimo, mas, conforme a tradição histórica da Igreja, parte dos escritos do apóstolo Paulo; e, porque a minha Bíblia, ACF, da Sociedade Bíblica Trinitariana, considera-o como de sua autoria.