Jorge F. Isah
Leio Santo Agostinho já há algum tempo, e muitas vezes não o compreendi adequadamente. Em especial, quando confrontava o “meu calvinismo” às afirmações equilibradas e bíblicas do bispo de Hipona. Demorou um tempo para eu entender que, mesmo Calvino, mesmo Lutero, Pink, Gill ou Clark, mesmo qualquer um que se considere a si mesmo fiel à tradição cristã, ou melhor, fiel ao Evangelho de Cristo, não existiria sem as reflexões, meditações e ensino de Agostinho. Veja bem, não estou a afirmar que eles não existiram, ou que não existiriam como existiram, mas de que haveria uma certa dificuldade para ser o que foram. Por isso, penso claramente que o mestre africano foi instrumento de Deus não somente na edificação desses homens, mas na de muitas e muitas gerações e multidões com os seus escritos.
Isso posto, não estou afirmando também concordar com tudo o que ele se propõe. Na verdade, não li nem 1/10 da sua vasta obra. Gastarei um bom tempo em fazê-lo, se assim o bom Senhor permitir. E tenciono fazê-lo, dada a riqueza espiritual e literária a emanar dos seus textos. O fato, contudo, de haver divergências em alguns pontos, não significa dizer que ele não deva ser lido, não preste, ou simplesmente não tem nada a ensinar. Esses, certamente, seriam erros indesculpáveis e do qual nenhum cristão ou leitor sairia ileso. Acima de tudo, Agostinho escreve como poucos. Chego a pensar que, entre os muitos autores lidos, ele é disparado o que mais admiro, seja pela maneira poética em que redige, seja por compreender aquilo ainda incompreendido, seja em explicar o inexplicável, a partir de uma comunhão íntima com o Espírito, de uma vida devotada a se deixar aperfeiçoar por esse relacionamento.
Entrando propriamente em “A Doutrina Cristã”, como o título pressupõe, ele disserta sobre os fundamentos da fé: a Trindade, o relacionamento com Deus, a salvação vicária e exclusiva de Cristo, as relações entre cristãos, o amor aos inimigos, etc. Terminada a leitura da obra, a profusão de temas e elementos remete-nos a uma exposição reverencial, paciente e devotada com o fim de esclarecer os princípios e enunciados do texto sagrado. Não há como não se apaixonar. E ainda descobrir como a nossa fé pode ser aprimorada e alcançar níveis de verdade aos quais não estávamos expostos.
Alguém pode dizer que estou a “idolatrar” o santo, mas nada mais longe da verdade. Reconhecer a sua capacidade de entender e interpretar as Escrituras de forma coerente, espiritual e reverente não significa idolatria, mas constatar o quanto o autor foi conduzido pelo Espírito de Cristo à compreensão, e o quanto o amor do Filho pode ser apreendido em suas linhas e nas entrelinhas. Pode existir, mas, além dos autores bíblicos, não conheço nenhum escritor que expresse tão nitidamente o seu amor pelo Pai, o Filho e o Espírito Santo. Por meio de uma beleza ímpar, outro dom concedido por Deus.
Todavia, entre tantos assuntos versados, dois me chamaram a atenção em especial. O primeiro, foi a ideia de Agostinho sobre o significado de “Pátria”. Não como um lugar onde habitaremos, o local em si, onde estaremos com Deus, o Paraíso ou Céu, mas de que Pátria tem, para ele, um sentido ainda mais amplo e veraz: pátria é o próprio Deus. Ou seja, não é apenas um lugar de destino, o destino para com quem estaremos por toda a eternidade. Nesse sentido, não é impossível dizer que, mesmo aqui neste mundo, ainda sobre os efeitos do pecado e em processo de transformação, podemos não somente almejar mas viver na “Pátria”, como se fosse celestial. Bastando o relacionamento intrínseco, verdadeiro e profuso com o Espírito de Deus. Ou seja, não iremos para a pátria, mas pelos méritos do próprio Deus, sendo pátria, já estamos inseridos e vivendo nela. Por isso a afirmação de sermos forasteiros, tanto nas Escrituras, como nos escritos de Agostinho, identificam que é possível estar neste mundo já estando no outro. Ou fazer deste, aquele. E gozar aquele, vivendo neste.
Não sei se deixei clara essa assertiva do bispo, espero que sim, mas o desdobramento dessa descoberta tem me trazido uma paz e um gozo antes não sentido, porque não entendido, ainda não havia penetrado no coração de maneira ampla e avassaladora.
Por falar em gozo, este é o segundo ponto a ser identificado. Para Santo Agostinho havia duas categorias de coisas: para fruir e usar. Não se deve fruir ou gozar das coisas que se usam. O gozo e alegria somente podem se direcionar a Deus exclusivamente (desculpe-me a redundância). E mesmo que gozemos de certas coisas do uso, elas jamais podem, ou devem, ser um fim em si mesmas, mas apontar para Aquele que é a fonte eterna e infinita do Bem. O homem sem Deus, sem a real consciência e conversão, põe sua alegria e consolo naquilo que deve estar a seu serviço, e não ao que deve servir. Inclusive, a si mesmo.
Nesse sentido, todas as coisas devem estar sujeitas a Deus, o doador final de todas elas, e por quem nos são entregues, para o bom uso, mas para que, sobretudo, nos alegremos no Senhor. Por isso, o sexo, o dinheiro, o trabalho, a diversão e tudo o mais que o homem almeja, não pode ser a fonte da alegria em si, mas entendê-las como bem-aventuranças, dádivas que nos são destinadas para atingirmos a plenitude do gozo, somente possível nEle. Ainda que nos tragam alegria, estão a apontar, direcionando-nos, para a fonte da verdadeira alegria, Aquele que tudo criou para manifestar a sua bondade, e fruirmos nEle. E assim, usando essas coisas, alcançamos o gozo e a alegria em Deus.
Outro aspecto importante é que, ao reconhecermos a suficiência apenas em Deus, temos mais dEle e crescemos em ser. Não em ser o que somos ou o que fomos, mas naquilo que seremos: a exata imagem de Cristo. É óbvio que Agostinho, e nem eu, está a falar quanto à divindade do Filho, mas quanto à sua perfeita e santa humanidade. E assim, gozando nEle seremos cada vez mais dEle e com Ele, e com Ele identificados seremos um: Senhor e servos em unidade.
Há uma gama de elementos apontados por Santo Agostinho neste livro, mas, em especial, chamou-me a atenção os pontos que abordei, que mais me impregnaram a alma até o momento, e me fizeram agradecer a Deus pela sua vida, e por desfrutar da sua sabedoria, vinda dos céus; e mesmo depois de quase dois mil anos é possível a qualquer um se deleitar nos seus ensinamentos, mas mais do que isso, aprender a viver em Deus e para Ele, assim como o mestre viveu.
__________________________________
Avaliação: (****)
Título: A Doutrina Cristã
Autor: Santo Agostinho
Páginas: 288
Sinopse:
"Esta obra é a carta magna de Santo Agostinho sobre a maneira de entender e pregar a Sagrada Escritura. Nela podemos sentir o imenso amor e conhecimento profundo de Agostinho pela Bíblia. De fato, ele deixou-se impregnar por ela, tornou-a "seu sangue, a medula de seus ossos". Ninguém como ele explorou tão a fundo e com tanto empenho e sutileza os profundos e obscuros recônditos da Bíblia, e nunca houve alguém que trouxesse de suas explorações tal abundância de preciosos achados. A doutrina cristã é um manual de exegese e formação cultural com finalidade didática e pastoral dirigido aos cristãos de sua época. As diretivas dada pelo zelo pastoral do Bispo de Hipona são originais e penetrantes, válidas ainda, em grande parte, para nosso tempo, tão ávido de estudos exegéticos e hermenêuticos"