23 outubro 2019

O "Meridiano de Sangue" sem fim, de Cormac McCarthy




Jorge F. Isah


Este é o terceiro livro de Cormac que leio. 

Em relação a "Onde os velhos não têm vez" e "A Estrada", noto grandes diferenças. Se a primeira história tinha todos os elementos presentes em "Meridiano", aquele se parecia mais com um enredo, digamos, comum (sabendo que nenhuma narrativa de Cormac pode ser considerada comum, no sentido mais... comum do termo), e  a "Estrada" é mais otimista, ainda que em um cenário apocalíptico, caótico e maligno, como gosta de ambientar os seus livros.

Em todos, contudo, temos a linguagem crua e nua, sucinta, seca, mesmo na multidão de palavras; frases inteiras sem pausa, vírgulas, escritas sem descanso; descrições de eventos e pessoas que compõem a escória da humanidade; e os que a ela não pertencem, assistem passivas, a se configurarem nos mais escabrosos e cruéis espectadores da desordem e destruição. Não raramente são estes as "vítimas", em um cenário onde o bem é a utopia mais visivelmente negligenciada. 

Cormac, no entanto, se utiliza da poesia para "atenuar", e as vezes reforçar, elementos em sua narrativa. Algo que pensei, e não sei se era a sua real intenção, é demonstrar que, mesmo na aridez da imagem (as paisagens rústicas e primitivas), ou o caráter bestial dos personagens, pode-se apreender algo de belo, natural, simplório, mas nunca inocente. Uma pureza primitiva, selvagem, mas jamais inofensiva. 

Não há psicologismos, nem se faz conhecer os personagens pelo que pensam, por suas elucubrações, mas pelos seus atos, ações, pois elas falam por si e por eles. Não se sabe de remorsos, arrependimentos, temores, dúvidas ou aflições, mas apenas aquilo que fazem, como agem, normalmente de maneira indiferente, brutal, impiedosa, quase mecânica. O fatalismo parece ser a máxima das ações, onde ninguém pode se esquivar de ser o que é, de fazer o que tem de ser feito ou foi destinado a fazer. 

Não existe espaço para a bondade ou companheirismo. Apenas a sobrevivência a qualquer custo e o poder acima de tudo, em um ajuntamento de homens sem escrúpulos, moral, não obstante, traindo-se e abandonando-se mutuamente. É como uma matilha de lobos sem alimento, onde um devora o outro; e o último morrerá de fome e à míngua. Mortes, assassinatos pelos motivos mais banais: um olhar atravessado ou uma zombaria, faz com que o sangue não seja o final, mas o meio de subsistência dos vencedores.

O enredo se passa em meados do século XIX. O cenário: o velho-oeste americano, mais especificamente na fronteira com o México, para aonde os EUA se expandiam.

Após concluir a leitura, posso garantir que este é um dos mais, senão o mais violento, que li. As atrocidades cometidas pela “criatura” de Mary Shelley, nem de longe ameaçam o pódio de Meridiano, como um livro sanguinário entre os mais bárbaros. Portanto, não poderia ser escolhido um título melhor: Blood Meridian, um meridiano banhado em cor vermelha escarlate.

O protagonista "Kid", um jovem sem destino, se vê acoplado ao bando de mercenários que foi dizimado pelos índios. Kid sobrevive e se junta ao bando de outro mercenário "Glanton", que também caça escalpos. Eles vendem seus serviços para dizimar grupos e povoados: brancos, negros, mestiços ou índios. Importa-lhes o dinheiro, nada mais, além do estigma aterrador que o nome, e a presença, desperta no ouvinte ou assistência.

A visão pessimista de Cormac, ateu, se apropria das tragédias e do mal para mostrar um mundo sem esperança, onde o bem é apenas ficção (não a sua ficção), e a maldade a própria essência humana. Não existe frescor, descanso, paz, apenas guerra, dor, morte e muitas batalhas a serem travadas. Não é o banho de sangue pelo sangue, mas a crítica por detrás do sangue. 

Por outro lado, parece reafirmar um conceito esquecido pela maioria dos cristãos, o da "depravação total do homem": de que todo o ser do homem foi contaminado pela Queda, no Éden; manchando e corrompendo o homem bom, puro, e induzindo-o  ao mal hegemônico. O autor, ao não ver bondade inerente no homem, hiperboliza a Queda, despreza o Imago Dei; e faz, em um mundo “desgovernado”, o inferno que muitos acreditam existir somente aqui. 

Não diria que ele seja um niilista clássico, mas existe uma porção niilista em sua narrativa. Não há uma "pregação" quanto à destruição das instituições e valores tradicionais, como se fossem obstáculos à vida ou liberdade humana, mas a própria ineficiência ou incapacidade delas coibirem verdadeiramente o caos e a destruição. Em muitos aspectos, elas mesmas fomentam, num tipo de transferir poderes para mercenários como Holden e Glanton (uma higienização estatal, onde a carnificina é patrocinada mas nunca é tocada diretamente), o mal que dizem combater.

Em tempo: sobre Holden, um personagem cínico, culto/erudito, carismático mas temível; capaz de esmagar um crânio com as mãos, mas também de dançar como um hábil bailarino; temos o "grande" personagem central. Ainda que possamos afirmar a centralidade da guerra como a protagonista (ao menos uma delas), Holden transpõe as páginas como um Quixote às avessas, sem os ideais heroicos deste, entretanto, de alguma maneira, vivendo uma vida de versos e canções clássicas, na pluralidade das línguas originais, na dissertação de cânones e meditações tracionais, como um alívio para a própria alma, e a afirmação da sua autoridade (diga-se, superioridade) para com os demais do bando, fazendo-se herói de si mesmo. Não raro, ainda que fosse o mais aterrorizante dentre os facínoras, era descrito como louco ou diletante; uma personalidade fascinante, irresistível, que trazia terror, admiração e, por que não, algo parecido à veneração.  

Um senão, que ainda não detectei a causa, é que a narrativa, a despeito dos muitos momentos de ação, pareceu arrastar-se um pouco e, em alguns momentos, chegou mesmo a entendiar. Raros, diga-se de passagem, mas existentes, o que não vivenciei em "Onde os velhos não têm vez" e “A Estrada”.


Mas McCarthy é McCarthy! Que venham mais livros dele!


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Avaliação: (****)

Título: Meridiano de Sangue

Autor: Cormac McCarthy

Páginas: 352

Editora: Alfaguara

Sinopse: "Meridiano de sangue é um romance épico. Nele, McCarthy reinventa a mitologia do Oeste americano para criar uma obra ao mesmo tempo grandiosa e arrebatadora sobre uma terra sem lei, em que o absurdo e a alucinação se sobrepõem à realidade. Desde as primeiras páginas, o leitor acompanha um rapaz sem nome e sem família, abandonado à própria sorte num mundo brutal em que, para sobreviver, precisa ser tão ou mais violento que seus inimigos. Recrutado por uma companhia de mercenários a serviço de governantes locais, atravessa regiões desérticas entre o México e o Texas com a missão de matar o maior número possível de índios e trazer de volta seus escalpos. McCarthy parte de fatos reais - a caçada aos índios, o destacamento de assassinos liderado pelo sanguinário John Joel Glanton - para compor uma obra que transcende a mera ficção histórica. Conduzidos por Glanton e o juiz Holden - uma figura quase sobrenatural, e um dos grandes personagens da literatura americana no século XX -, esses homens, que julgam já terem visto todos os horrores possíveis, irão aos poucos se aprofundar no verdadeiro inferno."

18 outubro 2019

O Voo linear de um Corvo





Jorge F. Isah



Este livro conta a história, ou a saga, de Charles Trumper, um garoto pobre do subúrbio de Whitechapel, em Londres, onde aprende o ofício de quitandeiro com o avô, e ganha o mundo com o seu obstinado empreendedorismo. Do início até o final das mais de seiscentas páginas, ele passa por uma série de infortúnios, desencontros, vitórias, perdas, sucesso e a megalomania de se tornar, “o maior carrinho do mundo”, a glória mercantil da Inglaterra.

Transcorre-se sete décadas na vida do protagonista.

Há de tudo um pouco: amor, traição, perfídia, vingança, amizades, alianças, conchavos, cobiça, morte, manipulação. É um daqueles “dramalhões” clássicos, com todos os seus ingredientes. Ah, e tem, sim, um vilão!

História e narrativa simples, sem nada de extraordinário, sem rebuscamentos, em linguagem coloquial, mas que manteve a minha atenção e interesse até o fim.

Tenho de convir que, em muitos momentos, vi-me cansado e meio enfadado com descrições pormenorizadas de eventos que pouco, ou nada, importavam à trama. Um detalhamento excessivo, como se o autor tivesse de fazê-lo a fim de cumprir um determinado número de páginas. E elas sempre aconteciam a qualquer mudança de situação, lugar ou personagem, deixando o fluxo um pouco arrastado, truncado, às vezes. Talvez umas cinquenta páginas a menos tornassem-no mais fluído e menos moroso.

Não chega a ser uma falha grave, pois é um recurso muito utilizado para se chegar a um “clímax” na narrativa (evento que precisa de um crescente até atingir o ápice da emoção), mas em muitos casos tal recurso não resultou em qualquer impacto na trama, sendo apenas e tão somente “encheção de linguiça". Cada capítulo foi dedicado a um personagem (alguns personagens tiveram mais de um), que é a “voz” da história. Este é outro ponto no qual as repetições são várias, pois no capítulo, “Charles Trumper”, são narrados fatos que, no capítulo, “Becky Trumper”, repetem-se, agora na ótica desta personagem. É um recurso interessante, mas a repetição, caso não exista algo de surpreendente, torna-se apenas enfadonha, e desnecessária. Bola fora do autor, Jeffrey Archer, neste quesito.

No mais, é uma boa leitura para o fim-de-semana; em que o leitor pode se entregar ao voo linear do corvo, sem se preocupar em pousar em algo mais sólido e consistente.


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Avaliação: (**)

Livro: O Voo do Corvo

Autor: Jeffrey Archer

No. Páginas: 600

Editora: Bertrand Brasil


Sinopse: "O inicio dos negócios de Charlie Trumper se dá ao lado de seu avô, vendendo verduras e frutas em um carrinho de mão. A partir daí, o comerciante lutará para criar "O Maior Carrinho do Mundo", enfrentando uma guerra, encontrando o amor e descobrindo um misterioso e poderoso inimigo"

07 outubro 2019

Outra Volta do Parafuso: Muito mais que um suspense




Jorge F. Isah


Ouvira falar deste livro do James, e a euforia com que o descreviam, fez-me comprá-lo, por uma bagatela, em um supermercado de BH: R$ 5,99, capa dura. 

Sempre se referiam a ele como uma novela de suspense e terror, e, pela fama de James como romancista, achei que valia a pena iniciar a leitura, a despeito do gênero não ser o que mais me agrada.

Tudo seguia o curso natural, quanto ao que me fora dito; e, no início do livro, pareceu-me que o autor demorava um pouco a engrenar a história, mas depois de engrenada, percebi que parar de ler era uma empreitada impossível

O pano de fundo são aparições sobrenaturais (já percebíveis nas primeiras páginas) que mudam por completo a vida das pessoas que moram em Bly. Mas é o pano de fundo, pois o autor na verdade usa-o para falar de algo muito mais importante: a percepção da realidade, o que vemos, o que sentimos e imaginamos, e como reagimos diante delas, de maneira que as relações pessoais tomam um aspecto diferente à medida que a objetividade, de certa forma, é alterada pela subjetividade de um dos personagens. Pode ser que alguém esteja realmente a ver o que os outros são incapazes de fazê-lo, mas pode também ser que esse alguém esteja criando uma ilusão, como resposta ao que lhe acomete ao redor, concebendo um mundo de angústia, aflição, dúvidas, mas de cuidado, solidariedade e, também, amor.

Não farei uma sinopse porque não quero antecipar o enredo e estragar o prazer do leitor. Também não é o meu objetivo, visto que nunca gostei de ler resenhas de livros e filmes (se é para ouvir um "resumo" do livro, ou do filme, prefiro lê-lo e assisti-lo). Gosto mesmo é de tocar em pontos que eventualmente a maioria dos leitores não se apercebe (certamente existem pontos que os leitores notam e que me são imperceptíveis); detalhes que me chamam a atenção e me fazem saborear a leitura, como um deleite. 

Portanto, fica a dica: leia esta pequena novela, não como sendo apenas um livro de suspense, mas um livro em que a realidade e as relações interpessoais (suas nuances e alterações e sentimentos e percepções) são os personagens principais.


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Avaliação: (***)

Titulo: "Outra Volta do Parafuso" ou "A Volta do Parafuso" (Pode-se se encontrar os dois títulos para o mesmo livro)

Autor: Henry James

Editora: Abril

No. de páginas: 192

Sinopse: 
"Obra mais popular do renomado escritor Henry James Em uma trama perturbadora, o autor nos leva ao dia a dia de uma jovem governanta que tem a missão de cuidar de duas crianças, Miles e Flora, que vivem nos arredores de Londres. A moça é a narradora da história, e o que parece ser o trabalho dos sonhos, de um momento para outro, se torna um pesadelo. Os habitantes da casa são assombrados, ou influenciados malignamente, pelos fantasmas de Peter Quint, ex-mordomo, e da Srta. Jessel, a ex-preceptora. Neste clima de suspense, a jovem conta apenas com a ajuda da bondosa criada, Sra. Grose, para se livrar do mal que atormenta a família."



01 outubro 2019

Amor e ardor pelo ministério: George Whitefield





Jorge F. Isah


Esta é uma das muitas biografias sobre o chamado "príncipe dos pregadores", George Whitefield (antes mesmo de Charles Spurgeon ganhar, também, o apelido).

O autor, Steven Lawson, tece inicialmente uma pequena biografia de Whitefield, contando os fatos mais importantes de sua vida: nascimento, conversão, estudos, início do seu ministério, casamento, perdas, e suas "campanhas" evangelísticas no Reino Unido e na América.

Aborda também a amizade com os irmãos Wesley, e as várias disputas teológicas em que se envolveram, incapaz, contudo, de impedir-lhes a fraternidade e um relacionamento profundo de irmandade.

Aspectos gerais de sua vida, lutas, dissabores, esperança, e, sobretudo, a sua dedicação ao ministério evangelístico, de levar Cristo aos perdidos, são brevemente analisados (e as várias tentativas do inimigo, e seus asseclas, de impedir-lhe de pregar e testemunhar a Cristo).

A segunda parte, propriamente dita, trata da compreensão e defesa teológica dos pontos cruciais da fé cristã; e como Whitefield era calvinista, o autor dedica boa parte do livro em esmiuçar a doutrina e a crença que tão fortemente influenciaram o "príncipe" naquilo que foi certamente a motivação de toda a sua vida: o zelo evangelístico!

Trechos de seus sermões são pinçados a fim de validar a análise do autor, bem como depoimentos de outros autores e teólogos que viveram intensamente a época de Whitefield, ou se debruçaram sobre os seus sermões posteriormente, bem como os vários biógrafos. Sobretudo, temos revelado o grande amor de George por Deus, sua obra, a igreja, e os perdidos.

PS: Biografias têm sido o meu alvo, ainda que secundário, neste último ano. Tenho por meta ler, ao menos, duas ou três, especialmente dos santos que, no decorrer da história, dedicaram as suas vidas para a glória de Deus e a expansão do Reino de Cristo. Pois nos servem de aprendizado, estímulo e direção a seguir para, humildemente, nos sujeitarmos a Cristo, dependermos cada vez mais dele, para que ele cresça e diminuamos.


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Avaliação: (***)

Título: O Zelo Evangelístico de George Whitefield

Autor: Steven Lawson

No. Páginas: 162 

Editora: Fiel

Sinopse: "Em um período sombrio de declínio espiritual na Inglaterra do século XVll e início do século XVlll, George Whitefield, conhecido como o grande pregador itinerante por sua notável mensagem que acendeu fogo de avivamento em dois continentes,irrompeu como raios de um céu sem nuvens. Um evangelista incansável que unia teologia profunda a um zelo ardente de ver os perdidos salvos, Whitefild cruzou oceanos e viajou milhares de quilômetros para proclamar o evangelho de cristo. Ao fazê-lo, despertou um reavivamento como nenhuma igreja nunca conheceu. George Whitefiel era um homem de piedade singular e teologia profunda, cuja devoção a deus o levou a arriscar tudo o que tinha para pregar cristo"