31 agosto 2022

Deus não tem escolhas

Farei algo que nunca fiz por aqui antes, nestes mais de cinco anos. Republicarei um texto. O que é inédito. Se o texto não é, ao menos a iniciativa será. Os motivos são vários, desde o cansaço [são mais de dez anos sem férias], um pouco de preguiça e, principalmente, por considerar este um dos meus melhores textos [ao menos um dos que mais gosto], e ele está meio que negligenciado pelos leitores. Deveria estar no "Top Ten" do Kálamos e não sei se está entre os 20 ou 30 mais lidos. Acalento esta idéia há algum tempo, e o momento parece-me propício. Mesmo aos que já o leram, seria bom uma nova leitura. E aos que ainda não leram, leiam... Ah, e não se esqueçam de ler os comentários, também, na postagem original, que podem ser acessados AQUI
Sem mais delongas, vamos a ele!


Deus não tem escolhas

       














Por Jorge F. Isah

Algo complexo e de difícil definição é o conceito de liberdade. Ela pode representar várias perspectivas, de vários pontos de vista diferentes, e serem completamente antagônicos entre si. Daremos uma olhada em como o Priberam define-a:

liberdade
(latim libertas, -atis)
s. f.1. Direito de proceder conforme nos pareça, contanto que esse direito não vá contra o direito de outrem.2. Condição do homem ou da nação que goza de liberdade.3. Conjunto das ideias liberais ou dos direitos garantidos ao cidadão.4.Fig. Ousadia.5. Franqueza.6. Licença.7. Desassombro.8. Demasiada familiaridade.

A definição parece restringir-se ao relacionamento entre homens, seja individual ou coletivamente, mas afeita exclusivamente a eles. É basicamente sociológica, menos filosófica, não-metafísica, pouco abrangente.

Uma definição mais ampla é encontrada no Michaelis:

liberdade
li.ber.da.de
sf (lat libertate) 1. Estado de pessoa livre e isenta de restrição externa ou coação física ou moral. 2. Poder de exercer livremente a sua vontade. 3. Condição de não ser sujeito, como indivíduo ou comunidade, a controle ou arbitrariedades políticas estrangeiras. 4. Condição do ser que não vive em cativeiro. 5. Condição de pessoa não sujeita a escravidão ou servidão. 6. Dir Isenção de todas as restrições, exceto as prescritas pelos direitos legais de outrem. 7. Independência, autonomia. 8 Ousadia. 9 Permissão. 10 Imunidade.

Aqui há uma gama de descrições que se aplicam diretamente ao homem, mas que têm também conotações filosóficas como a definir, por exemplo, o livre-arbítrio, o qual é, entre outras coisas, o “estado de pessoa livre e isenta de restrição externa ou coação física ou moral”; e, ainda que seja apenas uma proposição improvável, “exercer livremente a sua vontade”.Porém, o assunto deste texto não é discutir o famigerado livre-arbítrio e sua impossibilidade de garantir a liberdade da indiferença ou o indeterminismo, mas apenas demonstrar a dificuldade e o campo minado em que se entra quando a questão é demarcar e, especialmente, aplicar o conceito de liberdade.

Se definir liberdade é algo complexo, em se tratando da condição humana, o que se poderá dizer de Deus? Os cristãos bíblicos concordarão que Ele é livre; e a Criação resultou de Sua decisão livre, ao decretar que tudo criado, seja material e espiritual, viesse a existir a partir do nada. É o relato bíblico: “No princípio criou Deus o céu e a terra” [Gn 1.1]. Mas isso significa dizer que Deus teve escolhas? Que num leque de possibilidades escolheu uma delas? Ou até mesmo a hipótese de não escolher criar absolutamente nada era provável? Seria possível para Ele pensar em modelos ineficazes e falhos? Para, então, descartá-los? E ficar com o mais aceitável ou perfeito? Pode Deus cogitar algo imperfeito? E o que garante a escolha certa? Em quais bases, escolheu? Quais foram os critérios que o levaram à Criação? Era-lhe possível não criar? E qual a certeza de que o plano daria certo? E efetivamente escolhera o correto? Não parecem variáveis de um pensamento imperfeito, e não provindos de uma mente perfeita?

Talvez o grande problema aqui não sejam as respostas nem as perguntas, mas o fundamento através do qual elas são formuladas. Em linhas gerais, tentamos entender Deus a partir do padrão humano, como se fosse um de nós, e estivesse sujeito à mesma imperfeição que resultará na maioria das vezes em distorções, em inadequações da realidade. Se acredito que o Senhor é capaz de ter escolhas, no sentido de dar a Si mesmo opções do que escolher, havendo em princípio boas e más opções, ao descartar-se uma em detrimento de outra resultará na deficiência do conjunto daquela, como uma obra “menos perfeita”, não-ideal, enquanto esta demonstrará ser “mais perfeita”. Mesmo que todas as opções fossem“integralmente” perfeitas, o ato de escolha indicaria que, em algum aspecto, haveria imperfeição em um ou mais modelos. E se há imperfeição, pode provir de Deus? A mente absoluta, incomparável, única, e que reúne todas as qualidades concebíveis, um padrão irrepreensível, impecável e insuperável em sua própria essência, poderia imaginar o mais remoto e inverossímil plano? Pode-se imaginá-lo a arquitetar o inacreditável? Algo que contradiz a Sua natureza? O ser eterno, infinito, perfeito e santo cogitaria [como a mais improvável conjectura] o que não estivesse em conformidade com a Sua divindade?

Veja bem, estamos falando do decreto eterno, o qual é santo e perfeito, e não das contingências e particularidades dele. Não há como negar que, por exemplo, o mal seja mal, o pecado seja pecado, a Queda seja a Queda, a corrupção seja corrupção, o imoral seja imoral, mas eles são partes de um todo que não pode ser superado em seu aspecto determinado como a expressão da vontade santa, excelente, completa e irretocável de Deus. Como conseqüência e resultado de Sua mente absoluta.

O que estou a dizer é que escolhas pressupõem a superioridade de uma em relação à outra, ou a superioridade do nosso conhecimento ou perspectiva em relação a elas. Para que Deus escolhesse entre algumas ou muitas opções seria necessário não deterem o mesmo nível de perfeição. Em maior ou menor grau, haveria variáveis, e variáveis levarão inevitavelmente à mutabilidade. O próprio fato de Deus cogitar principiar duas ou mais coisas, ainda que no campo imaginário, apontaria para sua mutabilidade ao exercer o seu direito de escolha, e ao fazê-lo, não se terá a certeza do decreto acabado, mas sujeito às transformações durante o seu desenvolvimento no tempo.

Entendo que há muitos atributos divinos ligados à questão, e caso decida-se pelas “possibilidades de Deus”, estar-se-á comprometendo cada um deles, ao ponto em que, tanto a imutabilidade, a onisciência, a sabedoria, a perfeição, especialmente, estarão prejudicados.

Hipóteses existem para nós, seres corrompidos. Ainda que escolhamos aquela decretada por Deus. Essa forma de pensamento define muito bem a nossa imperfeição, conjecturamos o que Deus poderia fazer [do ponto de vista racional e lógico], mas Ele não teve escolhas, senão o eterno decreto poderia não ter sido a melhor delas, e nem seria eterno. O próprio fato das escolhas em si mesmas revelará uma mente insegura, instável, mutável, não-perfeita. Deus não se ateve a opções, nem as analisou, nem as estudou, nem as cogitou. Isso daria margem para a hipótese de haver algo que não pensasse, e que pudesse ser melhor do que o pensado. Quantas opções a sua mente infinita teria? Porém a infinitude da mente divina não implicaria na infinitude de proposições, em múltiplos planos, em possibilidades de contradição, de se cogitar algo que contrariaria a Sua própria natureza, de implicar na mínima chance de que Ele pudesse errar, ou seja, levá-lo a enganar-se.

Alguém pode dizer que a santidade e a perfeição o conduziriam a optar pelo melhor plano sempre, mas a própria idéia de um plano A, B, C ou D, resultará na inadequação de ao menos três deles. E tanto a santidade como a perfeição seriam postas de lado por não se enquadrarem ao padrão do Seu pensamento. Se levarmos esse conceito de hipóteses para Deus, ele representará que Deus é capaz de pensar imperfeitamente, e até mesmo de criar imperfeitamente, pois o cogitá-los, por si só, já preanunciaria um estado não-perfeito e não-santo. E, convenhamos, o que a Bíblia afirma é a exata e inquestionável perfeição e santidade divinas. Quanto a isso, não há sombra de dúvidas. O problema nunca está em Deus, mas em nós que não assumimos nossa porção de equívocos e distorções diante de Sua majestade e glória refletidas na revelação especial [e perceptíveis na Criação].

Deus, como o Ser, como o Absoluto, não teve escolhas. Ele pensou uma única vez, um único plano, perfeito, acabado, irretocável, infalível, imutável, assim como Ele é. Este plano já era antes da fundação do mundo, assim como Deus é. O que me leva a concluir que Ele é livre, mas não de uma espécie de sub-liberdade que o condicionaria a equívocos possíveis nas escolhas, ou mesmo a exigüidade delas.

Deus pensou o certo desde o princípio. Pensou o perfeito desde sempre. O imutável. Determinou todas as coisas uma única vez, sem a chance de errar. O que está diante dos nossos olhos e o que não está, o que ouvimos e não ouvimos, o que sentimos e não sentimos, o que existe e o não existe, simplesmente é e não pode deixar de ser. O que não é não veio a existência porque Deus não quis, mas porque não poderia vir [como algo insofismável]; já que não há nEle o cogitar, mas o inapelável, o determinado, o absoluto, não o indeterminado, o provável, o dedutível.

Por isso, Ele é Deus. O Criador. Porque Ele simplesmente é o “eu sou” [Ex 3.14, Jo 8.58].
                                                                                      
                                                  






16 agosto 2022

O desconhecido e Mãos vazias, de Lúcio Cardoso: a tragédia inevitável!

 


 






Jorge F. Isah


O Desconhecido é a primeira novela do livro, publicada originalmente em 1940.

Lúcio Cardoso é mais conhecido por seu romance "Crônica da Casa Assassinada", mas foi um escritor prolífico, de livros densos e linguagem invasiva, para poucos amigos.

Nas primeiras páginas, temos o relato intimista, subjetivo, em que não se vê traços de bondade e beleza nos personagens, os quais são descritos em toda a sua feiura e imperfeição.

Da mesma forma, os ambientes aos quais o protagonista, o "desconhecido", apelidado de José Roberto por sua patroa (demonstrando o desinteresse com as pessoas), são pobres, feios, desumanos, ou excessivamente humanos, naquilo que de pior o homem possui ou faz.

Ainda que não saibamos muito ou quase nada dos personagens, a construção narrativa é perpassada por uma "dor", como uma ferida que não quer se cicatrizar. Lúcio deixa claro que eles são incapazes de ser felizes, de que, provavelmente, a felicidade não é algo que lhes foi destinada pela sorte. Por isso a amargura, por isso a tristeza, por isso a mesquinhez, por isso a indiferença, por isso a desilusão, e ainda mais a solidão... há apenas a disputa, e nenhuma possibilidade de afeto. Podem ser comparsas, jamais amigos. Podem relacionar-se, mas quase sempre em um estado de malquerença e ressentimento.

O texto é poético, em tons poéticos, o que pode dificultar um pouco os leitores menos acostumados a uma linguagem pouco coloquial e direta.

Cardoso descreve o homem como se não houvesse culpados pelo que são ou fazem. O destino os tornou feios e cruéis, não podem evitar sê-los, não há o que ser feito para transformá-los.

Na verdade, o homem é culpado pelo que ele é e pelo que constrói ou destrói, e deixado à sua própria natureza, certamente perpetrará o mal. Pena que Cardoso não tenha entendido a mensagem de Cristo, se não saberia que para o homem impossível e impossibilitado, Deus o possibilita e o torna possível no seu amor.

Há traços religiosos ou, pelo menos, o que se pode chamar de religiosidade no livro. A pergunta é: pode o homem livrar-se do pecado e de si mesmo? Ou é refém da sua natureza e das armadilhas do mundo?

Para Lúcio, o homem é o que é, e nada pode impedi-lo de sê-lo. Parte disso esconde a verdade de que Deus controla o mundo, as pessoas e os seus pensamentos, a fim de que o seu eterno propósito se cumpra.

Mas o que Deus tem a ver com literatura? Tudo. E o que quero dizer de Deus num livro sobre o homem e a humanidade?

Bem, se não posso visualizar o maravilhoso e santo projeto de Deus em tudo o que faço, leio, vejo e penso, o que me vale a fé? Tenho de ser capaz de perceber nos mínimos detalhes a mão soberana e justa do bom Deus.

Portanto, o "Desconhecido" tem tudo a ver com Deus.

Lúcio criou um personagem que não se adapta, ao mesmo tempo em que se conforma com a sua condição. Ele delineia traços nitidamente homossexuais ao seu "José Roberto", que nutre uma admiração por Paulo, o jovem másculo com cara infantil (o platonismo do protagonista, antes de ser um alívio é uma perene dor), e uma aversão a Miguel, o protótipo do "bronco", o homem rude que o persegue, e que funciona como uma metáfora à sociedade que rejeita o estigmatizado gay.

Da mesma forma, Aurélia é uma "ode" ao feminismo, ainda que seja uma mulher perversa, odiosa e vingativa. Mas ela é dona do seu nariz, e faz quase tudo o que ele (o nariz) permite fazer.

Elisa, a empregada, pode ser o símbolo do homem/mulher oprimido(a), preso à infalibilidade de sua condição submissa, incapaz de se libertar das amarras sociais/afetivas às quais está atrelado(a).

No fim das contas, pode ser isso, mas sobretudo o autor fala da impossibilidade humana, da incapacidade dele se livrar daquilo que foi previamente traçado pelo destino. Portanto, ele não é culpado, mas uma vítima de algo maior. É prisioneiro em si mesmo.

O desconhecido é um homem solitário, que busca um refúgio, algo que aplaque a dor insidiosa que o aflige. Para ele, não há alívio, nem como se curar. A sua vida está definitivamente marcada, e nada que faça poderá alterá-la.

Há o fatalismo, sem qualquer solução (o fatalismo por si só é indiferente e, portanto, não se preocupa em solucionar nada, apenas o de acrescentar mais sofrimento). Nem para a solidão, nem para a homossexualidade, nem a maldade. O pecado aflige, porém, é inevitável, insolúvel.

Há apenas o desabafo, ou o choro fugidio por entre as sombras.

O homem perdido somente pode se encontrar em Cristo; firmado na Rocha, o pouso é seguro, a paz reina, há esperança, e a certeza de a dor, as lágrimas e o pecado serem destruídos, assim como a morte.

Para Lúcio a morte é parte da solução. Mas creio que, em algum tempo, ele não pensou mais assim.

Para o autor, não há limites à dor e ao sofrimento. A natureza humana é a própria fonte do mal, inesgotável, e por ele é que se vive ou morre.

O protagonista é um homem desiludido consigo e com o mundo. Apesar de ser um homem do campo (parece que era de uma classe social elevada; ao menos recebeu uma boa educação, evidenciada pelos livros que transportava em sua maleta), ele cultiva um certo niilismo, e a própria impossibilidade de ser feliz, ao conviver com uma "doença" (a qual não é citada mas indicada subliminarmente como o homossexualismo) que o consome, não restando qualquer significado para a vida.
Da mesma forma, os demais personagens se agarram a pequenas esperanças, de domínio, de riqueza, de liberdade e de amor, e um a um veem-nas frustradas.

A morte parece a solução encontrada por Lúcio para tanta dor e maldade, mas é apenas o final de um ciclo, e outro se inicia imediatamente, para terminar em destruição.

O mundo de Lúcio Cardoso é um mundo sem esperança, fadado ao fim em si mesmo, onde as pessoas são atormentadas por seus pecados, condenadas a jamais obterem o perdão. É um círculo infindável onde o mal nunca será derrotado.

Uma pena que a visão de Lúcio o coloque em um beco-sem-saída; mas é assim para àqueles que buscam solução em si próprios, como Lúcio (católico praticante) desejou encontrar, e vislumbrou-se e aos demais em suas condições de homens caídos e irregeneráveis. Pois somente em Cristo, e por Ele, o homem se encontra na perfeita imagem de Deus.

*****

Há significado nas coisas? As pessoas podem dirigir seus atos? Ou eles são inevitáveis armadilhas do destino? E a vida não tem nenhum significado pessoal? E não passa de uma avalanche ininterrupta a soterrá-los? Existe esperança? Ou tudo se encaminha para o mais doloroso e prolongado desespero?

Mãos Vazias é a segunda novela do livro, escrita em 1938, em que se aponta, ou melhor, estão presentes os ingredientes que seriam melhor trabalhados em "O Desconhecido", o qual foi escrito num clima menos opressivo e denso, porém, encontram-se ali o mesmo subjetivismo e niilismo do autor.

A narrativa é um esgar doloroso, onde as mulheres (neste caso, Ida) são dominadoras e cruéis, onde os homens são tolos e ingênuos; onde o vazio e o distanciamento da realidade remete-nos a uma narrativa esquizofrênica, a existência a contemplar sarcasticamente a irrealidade incurável.

Então, para se libertar de toda a angústia, sofrimento, solidão e vazio, não lhes resta outra saída senão impor o sofrimento aos outros, distribui-los generosamente, e esperar que esse desejo anelado se realize através do pecado, como se o mal fosse capaz de livrá-las do bem inalcançável, e tocá-lo fizessem-nas esquecer a impossibilidade de se ter o bem.

A vida não é para ser vivida, mas sofrida.

Ida vive o egoísmo, o isolamento e o desprezo aos outros em si mesma, onde a impossibilidade de afeto, carinho e bondade é o sangue que corre nas veias dos mortos: os vivos contam os minutos para serem abatidos.

É como o choro convulsivo sem lágrimas a se derramar inutilmente por elas e pelo mundo condenado e perdido, fatalmente arruinado. Não há culpa nem culpados, simplesmente é-se inevitável viver o fim.

A solução para um mundo suicida é a fuga, mesmo que seja ao encontro da própria morte.

Lúcio não parece tão à vontade nesse livro como em o "Desconhecido"; talvez por causa da protagonista Ida, e do seu pouco contato com o universo feminino (no sentido de entendê-lo).

Isso torna a narrativa mais impessoal, fria (talvez tenha sido o seu propósito), onde as emoções acabam por delinearem-se pela própria ausência de significância (e não insignificância), e pela visão de um mundo desajustado, em que nada tem significado (olha o niilismo aí, novamente). As reações se sucedem como uma bola de neve morro abaixo, sem a objetividade da bola de neve. São acontecimentos irracionais a seguirem fatos igualmente irracionais, que redundarão em sequências igualmente irracionais, num clima de realismo absurdo, bem ao gosto dos existencialistas, onde o subjetivismo torna o existencialista o único designativo da ação, no qual o mundo se molda, numa espécie de esquizofrenia coletiva; onde a desordem individual é a desordem do mundo, e a falta de lógica e razão permeiam a desilusão.

Todos os elementos da prosa de Lúcio estão presentes em "Mãos Vazias" (pelo menos a maioria), mas a novela pode fazer o leitor sentir-se assim, como o título indica, ainda que o livro esteja diante dos olhos e mesmo à mão.

Fica clara a impossibilidade de Lúcio apresentar alguma solução para os seus dilemas¹, o que torna a sua escrita mais desesperadora, encaminhando o desfecho para um final alucinantemente trágico, inevitavelmente trágico, onde a morte não é capaz de esconder a dor, num mundo sujo, estupidamente previsível em sua loucura.

Lúcio retrata bem o cotidiano, onde o pecado, o individualismo e o isolamento só aproximam mais o homem do seu final sórdido, triste, em que resta manter-se cativo à condenação eterna; e a liberdade impossível de encontrar em si mesmo e no mundo, configura-se cada vez mais disposta a capturá-lo.


Nota: 1- Não existe a necessidade dos autores de ficção apresentarem soluções para os dilemas propostos, para as dúvidas e questionamentos; não é isso que estou a exigir. O autor pode, simplesmente, propô-los, indagar, sem a ambição de solucioná-los. É o que Lúcio Cardoso faz nessas duas novelas: revelar os nós sem desatá-los.

_____________________________________ 

Avaliação: (***)

Título: O desconhecido e Mãos vazias (esgotado)

Autor: Lúcio Cardoso

Páginas: 320

Editora: Civilização Brasileira

Sinopse: 
Da vasta obra de Lúcio Cardoso, Mãos vazias (1938) e O desconhecido (1940) são novelas hoje quase esquecidas e, no entanto, das mais felizes e significativas. Sim, se foi a partir de A luz do subsolo, em 1936, que Lúcio se afirmou definitivamente como ficcionista, é, sobretudo, com Mãos vazias e O desconhecido que ele, além de conquistar a sua verdadeira fisionomia de escritor, chegou ao seu mot juste. Da primeira fase de sua obra, talvez sejam os mais instigantes sob o ponto de vista da concepção e da realização artística, tornando evidente a maturidade do criador de estados de alma, entre a razão e a loucura, traços até então bem raros no romance brasileiro. Seus personagens espelham a desconformidade do autor diante dos seus limites, a sua obcecada e torturada busca de redenção como homem e como artista. Demasiadamente humano, demasiadamente Lúcio"

















08 agosto 2022

O Suicidio do Homem Moderno



Jorge F. Isah



Em um mundo no qual diariamente ouvimos falar de crimes, catástrofes, imoralidades e desprezo aos fundamentos mais caros à vida humana, perguntamo-nos: por que, e de quem é a culpa?

Nos últimos séculos, tem-se difundido uma culpa coletiva por algo que o indivíduo pratica, como se todos aqueles que nunca cometeram algum crime tornassem-se responsáveis ou coautores daquele que o cometeu uma, duas ou mais vezes. Essa é uma maneira do homem esquivar-se da responsabilidade que cabe, exclusivamente, a si mesmo. Conceitos sociológicos, antropológicos e psicológicos, cada vez mais tiram do indivíduo a culpa por algo somente cometido por ele, e do qual é o único responsável, transferindo-o a um "ente" coletivo, a uma criação teórica, fruto apenas e tão somente da imaginação deficiente de quem a propõe. E esta não pode ser uma verdade, não pode ser comprovada pela realidade; mas há uma insistência quase psicótica em se designar um culpado sem culpa (pode ser a sociedade, o capitalismo, a igreja, etc) tirando-a do verdadeiro artífice, o indivíduo.

O homem tem a possibilidade de escolher entre o bem e o mal, entre o certo e o errado, e se opta pelo delito ou crime, qualquer que seja o seu motivo, ninguém o fez por ele, mas ele decidiu fazê-lo por si mesmo. A fraqueza, ignorância, ou a coação, não são argumentos para isentá-lo, quanto mais alegar uma indução coletiva sobre a pessoa, como se um ser metafísico simbolizasse a mente e a razão de multidões sobre a ação e vontade de uma única alma. Ninguém é obrigado a nada, ainda que forçado, ainda que sem aparente saída, pois sempre a recusa é uma opção em qualquer situação, e ninguém está autorizado a não aceitá-la como legítima. De forma que o objetivo central é a prevalência da suposta inocência sobre a responsabilidade, sendo que alguém somente pode se considerar inocente quando usa o predicado de ser responsável; o leviano não pode apelar à ingenuidade por defesa. Não há ausência de culpa sem o exercício da sensatez; pelo contrário,  a ilicitude do ato praticado é que o torna em crime, e quem o realiza em condenado. Se até mesmo os animais sabem quando incorrem em um erro... 

Por exemplo, a minha cachorra, uma labradora, quando apronta alguma traquinagem, ao ouvir os meus passos, coloca-se em uma posição submissa, na defensiva, preparando-se para receber uma repreensão, olhando-me como se estivesse a pedir desculpas. Se até mesmo os débeis mentais têm noção dos seus erros, e muitos deles têm sincero arrependimento por tê-los cometido, por que o homem saudável não o pode ter?

Quanto ao impenitente, aquele que comete um crime com a cara mais limpa do mundo, o arrependimento não é uma palavra a se considerar em seu dicionário, mas está ausente, porque é-lhe mais conveniente praticar livremente o desejo mais íntimo do seu coração: o mal como o anseio máximo da alma, o delito por ofício. Ele certamente dirá que fez e fará de novo, se a oportunidade surgir, e não tem de se arrepender por nada. Porque o pensamento "humanista" absolve-o, ao diz-lhe não haver motivos para arrependimento, pois a culpa não é dele, mas da sociedade, que em sua maioria desconhece-o, mas foi capaz de levá-lo, induzi-lo, a cometer o pecado contra si mesma. Em linhas gerais, a sociedade ou um grupo (como os cristãos, por exemplo) é capaz de fomentar criminosos para o seu próprio prejuízo e dano; e, convenhamos, é uma ideia insana e absurda. A mensagem passada é a pior possível: indivíduos não são responsáveis por seus atos, mas sim um ente coletivo que sequer o desejava, e em nada colaborou para a sua prática. O humanismo moderno resume-se ao ódio ao homem e ao amor a uma ideia deficiente e postiça, travestida com uma roupagem de bondade e piedade, surrupiadas do Cristianismo.

A própria noção de culpa encontra-se destituída de significado, pois ela repousa sobre um entidade presumível, contudo, não tem uma mente, um corpo ou alma, a sintetizá-la, incorporá-la ou defini-la. Em uma sociedade, encontraremos indivíduos díspares, ainda que seja possível alguns, ou muitos deles, envolverem-se em projetos e grupos com objetivos comuns. A igreja, por exemplo, é um ajuntamento de crentes com o intuito de glorificar a Deus e realizar a obra que lhe foi dada a fazer. Ainda que retratada na Escritura como "Corpo", não se quer anuir com a exclusão das individualidades em prol de um coletivismo bovino, mas de que cada indivíduo, motivado pelo Espírito e pensando de per si, trabalhará e laborará para um intento comum. Nesse percurso, podem haver divergências, contrariedades, erros, confrontações, e uma série de eventos distintos a fortalecerem ou enfraquecerem o resultado final, implicando mesmo na saída de um ou outro daquele grupo específico de trabalho. E isso acontece exatamente por conta da individualidade e da responsabilidade assumida, pessoal e única.

Assim, cada vez mais é difícil encontrar, na igreja, pessoas comprometidas com a responsabilidade, seja dos seus líderes ou dos demais membros, negando, em muitos casos, qualquer possibilidade de se aplicar a disciplina eclesiástica, como uma afronta ao indivíduo, já que ele se considera imune a qualquer sentido de organização, com o discurso enganoso de dever apenas satisfação a Deus, um Deus que ele não vê nem conhece ou obedece, a quem subjaz apenas como artifício para se manter em rebeldia e insubmissão à autoridade do "Corpo". Em sua mente, acredita possível viver nele estando amputado ou extirpado, como se uma mão conservada em um vidro de formol na prateleira de um museu de anatomia ainda estivesse ligada ao organismo original.

Segue-se, também, o não reconhecimento do conceito de "pecado" e "arrependimento", levando o homem inicialmente à estagnação e, posteriormente à degradação do seu ser e do próximo. Quando não se reconhece os erros, e sua existência passa a ser algo meramente relativa, sem um caráter absoluto, o homem não somente não se corrige a si mesmo, mas torna-se incapaz de aperfeiçoar-se, de aprender com suas falhas. Há pessoas convictas afirmando não se arrependerem de nada, pois o arrependimento não existe, ao que as interrogo, dizendo: como, então, você aprende?

Na maioria das vezes, elas dizem não se arrependerem, mas são as mais exigentes e impiedosas com os erros alheios, e as mais prontamente dispostas a cobrar uma retratação e uma punição por crimes muito menores do que o cometido por elas mesmas. O que vale para elas não vale igualmente para o próximo e vice-versa. Na mesma linha de pensamento e aplicação dos fariseus, elas, em sua hipocrisia, não conseguem perceber a incoerência de suas vidas, obstinadas em punir qualquer um que se levante contra o seu senso particular de justiça. O que se vê, com maior frequência, são pessoas com o seu senso privado de justiça impondo-a a outras sem que haja a contrapartida. Para ela e seu diminuto grupo, tudo; para os outros, nada. Se a ideia de democracia indica um governo da maioria sobre a minoria (uma minoria ainda que numericamente significativa), temos hoje a supremacia de um governo da minoria (esta significativamente diminuta) sobre a maioria, e ainda querem apregoá-la como a "verdadeira" democracia, quando, em seu bojo, constitui-se em autoritarismo ditatorial. Para isso, a supressão da verdade, a transgressão da linguagem e do seu sentido, a propagação da mentira, o discurso farsesco, e o fingimento, são implementados com ardis,  sutilezas, um apelo à piedade e ao bem-comum ignorados, ridicularizando a ordem para salvaguardar o caos. E o caos é benéfico para a manutenção ou a tomada do poder, mantendo pessoas ignorantes e alienadas a circundá-lo.

Ao contrário de toda a lenga-lenga modernosa de não culpabilidade do homem, a Bíblia afirma ser ele responsável por seus atos, e por eles será julgado. Quando a humanidade se considera a si mesma detentora da verdade, da sabedoria e da justiça, temos um mundo cada vez mais eivado na mentira, na estultice e na injustiça. A soberba levou-nos ao rompante de cogitarmos um mundo sem Deus, mas ainda mais, um coração onde Deus não pode habitar, pois é prescindível. A ideia da descartabilidade divina somente ganhou contornos de veracidade a partir do momento em que o homem considerou-se superior ao ponto de negá-lo, odiá-lo com todas as forças, e, em um acesso tresloucado, considerou-se autossuficiente e autônomo, rejeitando tanto a sua bondade como a sua santidade, de onde deriva a moral e justiça. Coincidentemente, foi a mesma pretensão de Satanás; em sua vaidade e orgulho, considerou-se "livre" de Deus, querendo usurpar-lhe o trono celeste e tomá-lo para si. Ele, ao menos, sabia o que desejava, enquanto o homem busca apenas satisfazer-se a si mesmo em sua natureza caída, sem almejar trono ou coroa, muitas vezes apenas chafurdando na lama como um porco.

Por isso a tradição judaico-cristã é vista como inimiga da humanidade, ao colocar freios e coibir a vazão dos instintos mais vis e sórdidos ansiados pela alma enferma e fraca do homem sem Deus. Acontece, contudo, não haver homem sem Deus, no sentindo do simples fato do homem não o reconhecê-lo e abandoná-lo significar não estar sujeito à sua autoridade e juízo. Esta é a  tolice máxima, pois eu posso, por exemplo, não acreditar na Lua como um satélite terrestre, e pensar ser uma miragem, fruto talvez de uma psicopatia coletiva e sugestiva infundida por um gene defeituoso a levar todas as pessoas e, inclusive, eu, a acreditarem na existência lunar. A verdade é: independente do que eu pense, a Lua continuará existindo, mesmo se a humanidade decidir ou optar, sabe-se lá por qual motivo, por sua inexistência.

Isto posto, não há como duvidar do lugar onde esse caminho, trilhado pelo homem moderno, descambará: injustiça, mortes, desolação, e um poder ainda mais concentrado nas mãos de poucos a decidirem o destino de muitos. Parece-me que Satanás e seus servos estão ganhando a batalha, iniciada no Éden, contra o homem. Ao insuflá-lo à autonomia, a desordem interior, como consequência da rebelião, tornou-se evidente, e a motriz de uma existência desgraçada e permeada pela autodestruição, pelo aniquilamento do supremo bem, a solidificação da ofensa e das feridas a permear-lhe a alma, a abater a consciência, a afastá-lo da verdade. Enquanto tem a corda em volta do pescoço, espera paciente a árvore crescer para servir-lhe de forca.

Ao afastar-se de Deus, o homem entregou-se a si mesmo, como o pior dos  inimigos com o qual se mantém uma amizade descuidada, suicida. Especialmente por considerar-se autossuficiente, quando não o é; bondoso, quando não o é; generoso e fraternal, quando não o é; ainda que manifestações gerais dessas virtudes se deem exclusivamente pela "imago dei" existente no homem, mesmo no pior espécime. Se há resquícios de benignidade e de longanimidade no homem, existe somente pelo que ainda lhe resta de Deus no coração, e não pelo que é, a partir da negação de Deus, mas pelo que ainda não pode ou não conseguiu rejeitar dele.

Até o dia em que a rejeição o levará à morte definitiva; a eterna separação de Deus. E cada um será justamente condenado por seu pecado. 


Nota: Este é apenas um esboço, de uma introdução para um futuro estudo sobre a doutrina da depravação total do homem.