22 abril 2022

A Humilhação, de Philip Roth

 





Jorge F. Isah



Um artista renomado, uma lenda viva do teatro, o último dos grandes atores, a figura emblemática, lendária e consagrada, este é Simon Axler, a história viva dos palcos americanos. O que poderia acontecer-lhe de pior? Perder o talento, a capacidade de interpretar? O sentido da vida? A própria vida? A saúde? O controle? O fracasso é inevitável? Ou seria possível suportar as perdas e reconstruir-se?... Já no primeiro parágrafo é possível se fazer essas e outras tantas perguntas, ao se ler:

“Ele perdera a magia. O impulso se esgotara. Ele nunca havia fracassado no teatro, tudo o que fizera sempre fora vigoroso e bem-sucedido, e então aconteceu esta coisa terrível: ele não conseguia representar. Subir ao palco tornou-se uma agonia.”

Philip Roth nos apresenta o principal dilema na vida do herói, um homem em declínio, nocauteado, a beijar a lona sem forças para se erguer, fustigado pelo passado glorioso, enquanto a encará-lo está o presente e futuro indignos.

“Humilhação” nos agarra inesperadamente, quase à força, e nos arrasta por suas páginas a conhecer o declínio, o crepúsculo do ícone entregue à própria incapacidade de se soerguer, de retomar o caminho ou, talvez, convergir a outro não tão glamoroso, mas ainda assim capaz de trazer-lhe a esperança de dias menos brilhantes mas viçosos e alentadores. Simon é um fatalista, niilista e, portanto, pessimista quanto ao seu destino. E não existem fatores externos a produzir desânimo e tristeza, pois a fonte das suas dores está em si mesmo, na negação, na autossabotagem, impedindo-o de recriar-se, de estabelecer novos vínculos e projetá-los para o amanhã. Resta-lhe então perder-se no passado, e colocar-se nele como fraude, embuste, nada do que viveu foi real, verdadeiro; e se sua vida constituiu-se de ensaios, atuações e prêmios, além de fama e reconhecimento, ele não viveu, não se realizou. A amargura assoma-o de tal maneira que não existe espaço para mais nada além da frustração de ter sido um “malogrado sucesso”.

Axler é um homem velho, solitário, e recusa qualquer ajuda, como um naufrago submergindo às ondas ciclópicas, nega-se ao socorro, afogado em seu orgulho, imerso em queixas, desprezo e autoestima, ainda que esta lhe traga vergonha e desgraça. É exatamente por não ser mais aquele grande homem do passado que está a negá-lo e a si mesmo. Teria a sua vida se misturado às dos seus personagens, em tantas tragédias, dramas, paródias e comédias? A torná-lo inábil, incapaz de se distinguir além das técnicas e arte? Aos sessenta e cinco anos, dores terríveis nas costas, chegando a imobilizar uma das pernas, sem família, sem amigos, não estaria em um palco, monólogo em curso, diante de uma plateia de cadeiras vazias? Permanentemente abandonado?... Esta foi a sua escolha, dentre tantos movimentos explícitos e furtivos de subjazer-se ao aparente, o seu adequado personagem valer-se do homem. Porém, o homem se rebela contra o personagem, e leva Simon ao sofrimento, à tristeza, ao desamparo, à quase loucura, a internar-se em uma clínica psiquiátrica; e para tanto é necessário o homem morrer e pôr fim às mentiras impostas pelo personagem.

No segundo ato, ele se reencontra com Peggeen, filha de amigos que viu nascer, e agora, aos quarenta anos, surge em sua vida como a tábua de salvação. Aqui, neste ponto, Axler tenta desesperadamente a redenção, ao mesmo tempo em que Peggeen também procura o recomeço, após viver uma relação homossexual frustrada, em que sua parceira decide, à sua revelia, transformar-se em um “homem” heterossexual, por meio de hormônios e cirurgias (digo, amputações: ou arrancar os seios seria o quê?). Duas personalidades erráticas se encontram, e nada pareceria mais improvável, ao mesmo tempo possível, do que a cooperação de almas aflitas e desconectadas da realidade, ou melhor, em um estado de hipérbole realista, onde parecem lançar-se para baixo, uma curva onde os focos são diferentes mas se vislumbra apenas a autodestruição. Se havia a confluência de escolhas e desejos, a aparentar solução dos dilemas, ele se mostrou frágil e efêmero, como um fio podre e quebradiço a conduzir as suas almas sobre o abismo. Enquanto Peggeen deixou-se modelar, reconstruir-se pelas mãos inseguras de Simon, este imaginou redimir-se no papel de “Criador”, ao transformar a amante, de homossexual no estilo “Joãozinho”, a uma heterossexual feminina e sedutora. A momentânea submissão de Peggeen se releva desesperadora, forçosa e débil, quase pantomímica; e a obstinação de Axler em reconduzi-la à naturalidade deixou-o inebriado com a sensação de controle, da situação exterior se refletir em equilíbrio ao seu interior arrasado pela descrença e ceticismo. Por um tempo, a esperança pareceu real, a expectativa vindoura de nova vida, novos rumos, a promessa de realização presumível.

A ideia do sexo e os necessários malabarismos e esquisitices a fim de sustentar o relacionamento provou-se frágil, enganosa, cuja escolha tornou-se ainda mais dolorosa, devastadora, quando extinguiu-se em si mesma, após alguns meses. Aqui temos o terceiro e último ato. Interessante que, no primeiro momento, o que se afigurava apenas apelativo e pretensioso (a narrativa de vários momentos de volúpia irrefreada) configurou-se em crítica, de Roth, ao vazio e insano valor que as pessoas dão aos desejos, ao irracionalismo, o verdadeiro “carrossel de emoções”, onde a gangorra da insegurança e desatinos não preenche as lacunas deixadas na alma, antes as põe a ferros, impenetráveis, sem a menor possibilidade de serem completadas ou satisfeitas. Constrói-se camadas e camadas de insatisfação e desgosto, ao ponto em que fugir, seja voltar-se à vida pregressa, no caso de Peggeen, ou aos planos interrompidos de Axler, tornam-se a única saída. O homem moderno, tão cheio de si, autossuficiente, a proclamar em bom som a sua autonomia, é presa fácil para o mundo cada vez mais pálido, inseguro, cinza e sem qualquer piedade aos maneirismos e vaidade, mais especificamente com aqueles dispostos a erguer um altar a si mesmos, e, no fim das contas, tornarem também a imolação, o sacrifício voluntário ao domínio da vontade; quando o preço a ser pago é a supressão da consciência, do fundamento, da vida. Então, restou a Simon ver suas forças exaurirem-se, e, por fim, ser completamente humilhado.

Ao final, até mesmo o personagem apagou-se. O esplendor fátuo entregou-o às sombras do tempo... no encerrar do último ato.

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Avaliação: (***)

Título: A Humilhação

Autor: Philip Roth


Páginas: 104