31 maio 2008

DUREZ





Por Jorge Fernandes


Por quantas vezes,
Ouvirei aquela palavra,
E me sentirei morto,
Como um corpo conservado no gelo,
A alma intacta não se alui,
Insensível como ouvidos moucos,
Ao troar da lima no metal?

Quantas vezes ainda,
A espada me ferirá,
O sangue a jorrar anêmico,
Jaz-se em poça, se esvanece,
E nem mancha forja?

A quantas vezes,
Irei tropegar,
Qual velho a mover-se no pântano,
A resvalar a ponta do dedo,
Em algo que julga bálsamo,
Mas sequer pode-se entrever?

Dores a fustigar;
Entre golpes acolhidos,
A pasmar a consciência suína,
Não é ainda o nocaute...
Nem o espírito sepultado.

26 maio 2008

IRMÃO X IRMÃO














Por Jorge Fernandes

Recentemente travei um “embate” com um irmão a respeito do constante julgamento que nós, crentes, fazemos uns dos outros. E nos demos mal, ambos. Não que não haja nada a se discutir; nem que se deva mascarar os erros doutrinários e contemporizar com os falsos ensinos e testemunhos de muitos “evangélicos”. Mas é que, enquanto travamos uma batalha entre denominações, a guerra vai sendo vencida pelas forças inimigas. O apóstolo Pedro nos adverte de que “já é tempo que comece o julgamento pela casa de Deus; e, se primeiro começa por nós, qual será o fim daqueles que são desobedientes ao evangelho de Deus?”.
Mas o que se vê são reformados acusando batistas de heréticos por não batizarem crianças, que, em contrapartida, acusam os reformados de heréticos por realizarem o pedobatismo. Calvinistas não toleram arminianos, que consideram os calvinistas “filhos das trevas”. Pré-milenistas repelem pós-milenistas, que, por sua vez, desejam exorcizá-los. Então, a denominação a qual pertenço é a melhor, tanto na doutrina, como na pregação, como no serviço a Deus. Ando com um “neon” preso à testa com os dizeres “batista”, ou “presbiteriano”, ou “metodista”, ou o de outra congregação. As igrejas acabam parecidas com clubes de futebol, com agremiações esportivas, onde torcer e distorcer é o que importa:
“No domingo, vamos à 21a igreja?”.
“Que isso, mano! Eles não tão com nada! Vamo lá na 58a ! Eles são da hora!”.
E assim é só organizar a charanga, as teenleader, o mestre-de-cerimônias, os comes-e-bebes, e se tem um grande evento. Uma festa de arromba. E Cristo nosso Senhor? Onde Ele entra?... Nesse clube, o Santo de Deus não tem lugar; apenas a idolatria.
A carne grita tão desesperamente em nós, que a despeito de uma suposta espiritualidade e zelo para com as coisas de Deus, desprezamos irmãos que igualmente foram levados a Cristo pelo Pai (Jo 17.24), e com os quais passaremos toda a eternidade. No fundo, há muitos cristãos que se consideram melhores do que outros. Há muitos de nós que não querem se misturar; que em sua soberba e vaidade se julgam os únicos salvos pelo nosso Senhor, e vislumbram em si méritos suficientes para que Deus os escolha, ainda que não assumam, ainda que digam que são salvos apenas pela graça do Senhor. Muitas vezes, em nossa arrogância, pecamos, odiando e desprezando homens, lançando-os no fogo do inferno (se possível fosse), investidos de uma autoridade que não possuímos, nem nos foi dada. Como Paulo disse aos coríntios: “Todavia, a mim mui pouco se me dá de ser julgado por vós, ou por algum juízo humano; nem eu tampouco a mim mesmo me julgo. Porque em nada me sinto culpado; mas nem por isso me considero justificado, pois quem me julga é o Senhor. Portanto, nada julgueis antes de tempo, até que o Senhor venha, o qual também trará à luz as coisas ocultas das trevas, e manifestará os desígnios dos corações; e então cada um receberá de Deus o louvor... Já estais fartos! já estais ricos! sem nós reinais! e quisera reinásseis para que também nós viéssemos a reinar convosco!” (1Co 4.3-5;8).
O Senhor Jesus, porém, nos diz: “Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem; para que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus”(Mt 5.44); e se devo amar aos meus inimigos quanto mais aos irmãos na fé; e não cometer a ofensa de me sentar em um trono de santidade e dignidade para falar mal de quem quer que seja, e viver dessa forma dissoluta; “porque para mim, o viver é Cristo”(Fil. 1.21).
Enquanto discutimos qual de nós é o melhor, caindo no mesmo pecado que os discípulos do Senhor cairam, indignamo-nos mutuamente (Mt 20.20-24), copiando-os naquilo que havia de pior. Em contrapartida, negligenciamos a exortação que o nosso Senhor nos deu: “E, qualquer que entre vós quiser ser o primeiro, seja vosso servo”(Mt 20.27). Por que é sempre mais fácil imitarmos o erro dos filhos de Zebedeu do que imitarmos a Jesus Cristo, o qual veio servir e não ser servido? Ainda que as Escrituras nos alertem, ainda que o Espírito Santo nos oriente, sempre tendemos a assumir o orgulho e a soberba diante de Deus e dos homens. Alguém se candidata a servo? A serviçal do seu irmão? “Todo aquele que quiser entre vós fazer-se grande seja vosso serviçal”(Mt 20.26). Pouquíssimos de nós anseiam esse posto, antes queremos manter a dignidade, a pompa de distinção, amando “os primeiros lugares nas ceias e as primeiras cadeiras nas sinagogas”(Mt 23.6). O holofote não é para o crente. Nem honrarias. Nem aplausos. Nem tapetes vermelhos. Aqui neste mundo, o qual nos odeia como odiou ao nosso Senhor (Jo 15.18), não buscamos nem esperamos honras, “porque a vós vos foi concedido, em relação a Cristo, não somente crer nele, como também padecer por ele”(Fp 1.29). Mas muitos se enganam com os tapinhas nas costas, com os títulos beneméritos, com as placas, medalhas, comendas e distinções insignes, e, sendo ilustres, estão no topo do Reino de Deus, assegurando-lhes o direito de tripudiarem sobre os ossos e carnes humanas, escarnecendo, ridicularizando e detratando-os, sem que aja qualquer amor, pois não há arrependimento. É como no boxe, onde os lutadores desejam, cada um a “desgraça” do outro, subjugando-o, impondo-se. Pelo menos, ao fim da luta, se cumprimentam... se um deles não for à UTI ou ao necrotério.
Não era para ser assim...
A Bíblia nos exorta a sermos santos, como é santo o nosso Pai que está nos céus (1Pe 1.15-16); a amarmos cordialmente uns aos outros com amor fraternal (Rm 12.10); a amarmos ardentemente uns aos outros com o coração puro(1Pe 1.22); unidos em um mesmo pensamento e em um mesmo parecer (1Co 1.10); e admoestando-nos uns aos outros, certos de que estamos cheios de bondade e de conhecimento (Rm 15.14); mas nós mesmos fazemos a injustiça e o dano, e isto a irmãos (1Co 6.8).
Se ainda estivéssemos na Idade Média, certamente muitos de nós condenariam à fogueira outros irmãos. Apenas porque ele não é batista, ou presbiteriano, ou metodista, ou assembléiano. Fica a parecer que não foi Cristo quem morreu por mim, que não foi Ele quem me redimiu e salvou-me da condenação, à qual eu merecia completa e justamente. Parece que foi uma denominação que padeceu na cruz por meus pecados.
Não será a hora de se parar com esta guerra estúpida de egos, de partidarismo religioso, e nos propormos a saber senão a Cristo, e este crucificado? (1Co 2.2). Foi o Senhor Jesus quem tomou o meu lugar, levando sobre Si a minha iniquidade, morrendo, ressuscitando, me salvou. A Ele prestarei contas, inclusive, do tempo mal gasto aqui, perdido em nulidades, vaidades, que em nada glorificam o santo nome de Deus.
Não proponho um neo-ecumenismo ou coisa parecida; nem é isso o que faço aqui. Muito menos que nos unamos debaixo de uma “bandeira”, de uma proposta ou meta, a fim de exercitar o pragmatismo. Nem mesmo a idéia de convenções, concílios, me agrada. Mas se cada um se preocupar em proclamar o Evangelho, em defender a fé, em honrar e glorificar o nome do Senhor ao invés de disputas inócuas de poder e do ser [“tende sal em vós mesmos, e paz uns com os outros”(Mc 9.50)]; o mundo não será insípido mas temperado, para a glória de Deus.
Enquanto isso, o movimento GLBT se une aos SEM-TERRA, que associa-se aos PRÓ-ABORTO, e aos PEDÓFILOS, à DASPU, aos MATERIALISTAS, à PESQUISA COM EMBRIÕES, aos IMORAIS, aos CORRUPTOS, aos ESQUERDISTAS, à MAFIA, aos LEGALISTAS, à PORNOGRAFIA, aos POLITICAMENTE CORRETOS, aos LIBERAIS, aos HIPÓCRITAS, às FEMINISTAS, aos MACHISTAS, aos LADRÕES, aos ASSASSINOS, aos TRAFICANTES, a PAIS que não educam SEUS FILHOS, a FILHOS que não respeitam SEUS PAIS...
O que esperamos? Que eles desistam? Que se unam a nós, e lutemos juntamente pelos princípios cristãos? Ou aguardamos o melhor momento para unir-nos a eles, e assim, desobedecer ao nosso bom Deus? Ou desistimos nós?
Assim evidencia-se o mal, o qual age livremente, enquanto viro a cara e torço o beiço ao irmão de Bíblia em punho.
Somente quando se vislumbra a cruz e a mensagem de Cristo, crendo que também é necessário que se morra para si mesmo, vive-se para Deus; e não se é mais instrumento de injustiça, mas justo como o nosso Senhor; e se é capaz de amar como Ele ama.

17 maio 2008

FUNERAL











Por Jorge Fernandes


Hoje chorei a morte dela,
Chorei por seus filhos,
Chorei a sua juventude carcomida pelo mal,
Chorei a vontade que ela tinha de viver,
Hoje seus lamentos e súplicas calaram-se,
Chorei a maligna doença a definhá-la,
Chorei a esperança posta na santa,
Chorei a TV ligada ao pé da cama.


O céu azul difuso,
A grama pálida,
O vermelho da terra surde do chão,
Há risadas,
Há lágrimas,
A sapiência dos silenciosos,
A tolice vulgar e infame dos tagarelas,
O desacato no olhar indiferente,
O alívio amparado nas colunas e paredes.


Quis o abraço fraterno,
Quis que me sentissem em dor,
Quis vê-los, e visto,
Quis o melhor que não dei,
Quis o afeto, o afago simples,
Quis, sem poder.


Achei que precisavam de mim,
De algo que não conjeturava,
Sem persuadir-me do meu papel,
O seu Nome exaltado,
Ainda que sem O proclamar.



Ali estava o desamparo,
A indulgência,
O amor desertor,
Qual cego numa ilha deserta,
A espera da noite chegar,
Para não se defrontar com a luz.


Em meio ao murmurio orei,
E seguiu um hino,
Errei dois ou três versos,
Esqueci mais alguns,
Encontrei-me no refrão:
“Entregarei tudo a Ti”, diz.
Era o certo, e único a fazer.


Quando a cova se abre,
O esquife desce,
Entoa-se um cântico à Maria,
A dor é insuportável,
Em vê-Lo desprezado.
E não sei se amá-Lo é suficiente,
Ou o amor é que não o é,
Não sei se os amo na dor,
Nem na alegria ou hora qualquer.
Numa prova, passaria?
Qual sacrifício disporia?
O corpo, a alma...
Algumas lágrimas a sobrevir.


Não para Ele,
Nem para eles.
No que sou, é que me guardo,
Para o dia em que revelado O veja,
Aos Seus pés me arrependa,
E chore por não pregar as Boas Novas;
E nos túmulos,
Muitos ficaram sem tê-las.


Onde está o sal?
E a luz?
Não passo de trevas,
E insosso.


A resposta,
Debaixo da cama,
Jaz oculta,
Porquanto Cristo,
Não passa de digressão,
E contento em me ver,
Como sepulcro caiado.


E chorei,
Também por mim.

10 maio 2008

O CÉU REINA












Por Jorge Fernandes


“...entregando para a morte, quem é para a morte; e quem é para o cativeiro, para o cativeiro; e quem é para a espada, para a espada” (Jr.43.11)

Deus é soberano! Certamente, a maioria dos crentes concordará com esta afirmação. Mas de que forma Ele exerce esse poder? Muito se tem discutido até que ponto Deus é soberano, ou como a Sua soberania se manifesta. E em grande parte, a doutrina bíblica se mistura à filosofia, à cultura e tradições, prejudicando ainda mais o seu entendimento, e porque não, o seu real significado; ainda que, aparentemente, tudo pareça mais fácil e digerível para o homem e seu humanismo, ao não desejar abrir mão da sua liberdade, mesmo que ele não a possua no sentido de sê-la livre de influências, e o livre-arbítrio não passe de uma utopia proveniente do nosso coração rebelde.
Há uma enorme diferença entre o que acreditamos possuir e o que verdadeiramente temos; geralmente, fica mais fácil aceitar prontamente o que nos parece verdade (ainda que suspeita), o que se molda melhor com os nossos conceitos, se acomoda ao nosso ego, e nos traz alívio mesmo que apenas momentaneamente; fruto da indolência e desleixo com que tratamos a nossa relação com Deus (sobre o assunto da liberdade humana, ver o post
Senhor ou Escravo? ).
A Bíblia afirma, categórica e extensamente, que Deus é soberano, e de que, nada, mas absolutamente nada afasta-se do Seu propósito e vontade (Ef 1.11). Deus domina sobre todas as coisas, e todas as coisas estão sujeitas a Ele (1Tm6.15; Dn 4.35; Jó1.12; Sl 89.9; Mc 4.39); nada pode frustá-lO e a Sua vontade, sendo ela a causa final de tudo (veja bem: tudo! E não uma parte ou alguns itens).
No livro de Daniel, o Rei Nabucodonosor tem um sonho, e pede ao profeta para interpretá-lo: “Esta é a interpretação, ó rei; e este é o decreto do Altíssimo, que virá sobre o rei, meu senhor: Serás tirado dentre os homens, e a tua morada será com os animais do campo, e te farão comer erva como os bois, e serás molhado do orvalho do céu; e passar-se-ão sete tempos por cima de ti; até que conheças que o Altíssimo tem domínio sobre o reino dos homens, e o dá a quem quer. E quanto ao que foi falado, que deixassem o tronco com as raízes da árvore, o teu reino voltará para ti, depois que tiveres conhecido que o céu reina (Dn 4.24-26). E todas estas coisas vieram sobre ele, pois se cumpriu a palavra de Deus, a qual havia determinado acontecer ao rei Nabucodonosor, transcorridos 12 meses (Dn 4.28-33).
No Salmo 33, o salmista proclama a glória e a soberania de Deus como o criador de todas as coisas, como Aquele que controla e subjuga todas as coisas; mas também Aquele através do qual o crente alegra-se em esperar e confiar, pois é o seu auxílio, escudo e refúgio (v.20-22).
O domínio do Senhor antes de ser o motivo para o pânico (semelhante ao de uma ameaça terrorista), deve ser a causa do nosso júbilo(v.1-3; 12; 21), sabendo que somos sustentados por Ele, protegidos pela Sua misericórdia (v.18), guardados em Sua sabedoria, santidade e perfeição; O qual zela por nós, e nos mantém firmados na Rocha que é Cristo. Como o profeta Jeremias afirmou judiciosamente: “Bendito o homem que confia no Senhor, e cuja confiança é o Senhor... meu refúgio és tu no dia do mal” (Jr.17.7;17); e Paulo, extasiado, proclamou um cântico de louvor a Deus: “Ó profundidade das riquezas, tanto da sabedoria, como da ciência de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis os seus caminhos!” (Rm 11.33).
Ainda que não entendamos tudo sobre a vontade divina, e em muitos aspectos os Seus desígnios sejam inescrutáveis, não há como não aceitá-la, e reconhecer que os caminhos do Senhor são muito mais altos do que o nosso, e os Seus pensamentos mais altos do que os nossos, e que Ele fará o que lhe apraz (Is.55.8-11).
Há questões que vão além da nossa mente finita e corrompida, das quais não temos solução nem somos capazes de entender, que fogem ao nosso controle, e julgamos dissociáveis: como a soberania de Deus e a responsabilidade humana. A Bíblia afirma a existência de ambas: tanto Deus é soberano, como somos responsáveis por nossos atos. Contudo, não compreendemos como uma ação aparentemente livre, pode ser operada pela vontade de Deus e assim ser determinada. Resta-nos resignar, admitindo o quanto somos limitados; e humildemente reconhecer a nossa incapacidade para desvendar aquilo que o Senhor não quis nos revelar, contudo, estejamos confiantes, seguros e confortados com o que Ele quis nos manifestar através da Sua santa palavra, o que já é por demais grandioso e glorioso para a nossa exiquidade.
Infelizmente, parece mais fácil adequar os atributos divinos à nossa imperfeita e caída natureza do que avaliar submissa e espiritualmente os ensinamentos bíblicos, com temor e reverência, sabendo que se trata de algo muito elevado, muito além dos meros preceitos humanos, muito além do nosso juízo.
O importante é crer que as Escrituras são a fidedigna palavra de Deus, revelada ao Seu povo, e de que o Senhor é o Deus soberano e supremo de todo o universo; o que não exclui eu, você, ou qualquer outra coisa (seja mineral, vegetal, animal ou espiritual), de sujeitar-se à vontade divina, “porque falou, e foi feito; mandou, e logo apareceu” (Sl. 33.9).
Como Davi cantou, ao reconhecer sabiamente o que o Altíssimo fizera ao elegê-lo, libertá-lo e entronizá-lo como o rei de Israel:“ O Senhor é o meu rochedo, e o meu lugar forte, e o meu libertador; o meu Deus, a minha fortaleza, em quem confio; o meu escudo, a força da minha salvação, e o meu alto refúgio... Porque quem é Deus senão o Senhor?... O Senhor vive; e bendito seja o meu rochedo, e exaltado seja o Deus da minha salvação. É Deus que me vinga inteiramente, e sujeita os povos debaixo de mim” (Sl 18.2;31;46-47).

04 maio 2008

ONDE ESTÁ O SEU TESOURO?











Por Jorge Fernandes


“E tinha esta uma irmã chamada Maria, a qual, assentando-se também aos pés de Jesus, ouvia a sua palavra. Marta, porém, andava distraída em muitos serviços; e, aproximando-se, disse: Senhor, não se te dá de que minha irmã me deixe servir só? Dize-lhe que me ajude. E respondendo Jesus, disse-lhe: Marta, Marta, estás ansiosa e afadigada com muitas coisas, mas uma só é necessária; e Maria escolheu a boa parte, a qual não lhe será tirada”(Lc 10.39-42)

A Bíblia afirma que o crente é um ser separado. Separado para Deus, e do mundo. Estamos no mundo, mas não pertencemos a ele (Jo 17.16); antes, somos de Deus, propriedade Sua, comprados por alto preço (1Co 6.20). Então, porque a maioria de nós “devota” a totalidade do seu tempo, das suas energias, dos seus dons e talentos, do seu dinheiro, da sua atenção, do seu estudo, e de tudo o mais que o cerca, a fim de satisfazer-se no mundo, pelo mundo e para o mundo?
Vejo muitos falando de Cristo. Muitos o chamam de “senhor”. Alguns choram, emocionados. Outros demonstram uma confiança parecida com a que se deposita em um talismã. Como se o nome de Cristo fosse uma ferradura ou um pé-de-coelho, ou na melhor das hipóteses, uma chave que abrirá todas as portas... as que eu quero abrir, as quais me satisfarão. Crêem que o nome de Jesus tem um poder imanente, bastando proclamá-lo para que, num passe de mágica, tudo ao nosso redor se transforme em satisfação pessoal. E isso é mais do que o suficiente para elas. Falar de Cristo vez ou outra, sem compromisso. Pensar Nele como um “gênio da lâmpada”, pronto a realizar todos os nosso caprichos, como se nós fóssemos deuses, e Ele, criatura. Será isso conhecê-lO verdadeiramente?
Jó entendeu que o conhecimento de Deus é muito mais do que ouvir falar Dele, e repetir aos quatro cantos, como um papagaio, o que ouviu: “Por isso relatei o que não entendia; coisas que para mim eram inescrutáveis, e que eu não entendia. Escuta-me, pois, e eu falarei; eu te perguntarei, e tu me ensinarás. Com o ouvir dos meus ouvidos ouvi, mas agora te vêem os meus olhos” (Jó 42.3-5). Reconhecendo a dimensão do seu erro, ele concluiu: “Por isso me abomino e me arrependo no pó e na cinza” (Jó 42.6).
Estar no mundo não é pertencer a ele. Nem ao menos se agradar com ele, quanto mais viver em função dele. Essa não é a nossa glória. Nem a nossa atribuição. O nosso dever é o de obedecer ao nosso Senhor, proclamar o Seu Evangelho e glorificá-lO. Parece simples, e talvez por isso, negligenciamos tanto essa incumbência dada-nos por Cristo. Em muitos casos, desprezamo-la, em favor da nossa glória pessoal. Quantos não se empenham até o sangue por um diploma? Pelo cargo de executivo? Pelo carro novo, viagem, ou pelo novo desejo que se seguirá a outro desejo realizado? É um círculo vicioso, que nos domina, nos consome, e tira-nos do privilégio supremo de servir ao nosso bom Deus.
Quantos de nós não se encontram “encantados” pela tv, pelo sexo, pelo futebol, pelas festas e shows, que não têm um momento sequer para ler, ouvir e meditar na Palavra de Deus? Quantos de nós oram numa fração de segundo, enquanto passam horas e mais horas diante da tela do computador ou da tv envenenando-se, repetida e maciçamente, com as toxinas do mundo? Não ficam um dia sem eles, mas podem ficar semanas, meses e até anos sem ouvir uma pregação, sem comunhão com os santos, sem confortar um irmão, sem contribuir para a obra de Deus, sem interceder pelos que sofrem, pelos que morrem, e pelos condenados eternamente.
Pelo contrário, como luzes que deveriam iluminar o mundo, não o fazemos (Mt 5.14), antes nos misturamos às trevas, tornando-nos participantes dela (Lc 11.35). Seduzidos como o marido infiel pela amante (na verdade, seduzidos pelo nosso pecado, pela nossa rebeldia, pelo desprezo a Deus), voltamo-nos para o mundo, como se jamais tivéssemos saído dele.
No texto acima, Marta era uma discípula do Senhor. O amava, reconhecendo-O como o Cristo (Jo 11.27), queria agradá-lO naquele momento em que O recebia em casa. Estava atarefada, preocupada com os seus afazeres, distraída em muitos serviços; provavelmente, suas intenções eram as melhores, queria servir correta e adequadamente ao Senhor, queria que Ele se sentisse confortável e que desfrutasse da sua hospitalidade; inebriada em seu trabalho não percebeu como estava errada, e de como desperdiçava não somente o seu tempo, mas a sua energia, em ansiedade e cansaço. Marta, certamente, seria uma “workaholic” dos nossos dias, uma viciada no que faz, vivendo para o que faz, e não pelo que faz; ela seria uma das vítimas do stress, da estafa, talvez até mesmo da depressão pós-moderna. Por isso, o Senhor nos adverte: “Mas os cuidados deste mundo, e os enganos das riquezas e as ambições de outras coisas, entrando, sufocam a palavra, e fica infrutífera... Pois, que aproveitaria ao homem ganhar todo o mundo e perder a sua alma?” (Mc 4.19; 8.36). Paulo exorta-nos a não sermos conformados com este mundo, mas sermos transformados pela renovação do nosso entendimento, para que experimentemos qual seja a boa, agradável, e perfeita vontade de Deus (Rm 12.2).
Marta não compreendeu o mesmo que sua irmã Maria, de que, ao invés de proporcionar conforto ao Senhor, era ela quem deveria desfrutar do Seu consolo. Como alguém que não vê além do próprio nariz, queixou-se a Jesus por “reter” a Maria que O ouvia, enquanto ela, pobre-coitada, se desdobrava em servi-lO. Foi, sem dúvida, um atrevimento da parte de Marta, uma repreensão tola e mal-educada (especialmente porque ela parecia querer agradar ao Senhor... ou queria mostrar a sua eficiência?), peculiar às mentes dominadas e minadas pelo pecado do individualismo, do egocentrismo. Marta, literalmente, “pisou na bola”. Em sua agitação despropositada, interessada em ser uma boa anfitriã, em atingir suas metas e obter os resultados pelos quais se esforçava, ela se esqueceu do mais importante: adorar ao Deus vivo. O seu erro foi agravado ainda mais pelo fato de considerá-lO um insensível: “Senhor, não se te dá de que minha irmã me deixe servir só?”. E a aflição e a insensatez da sua alma, levaram-na a julgá-lO equivocado na forma em que agia: “Dize-lhe que me ajude”.
Quantas vezes ignoramos, ou somos tentados a duvidar de Deus? E em outras a censurá-lO? Com qual direito agimos assim? “Ó homem, quem és tu, que a Deus replicas? Porventura a coisa formada dirá ao que a formou: Por que me fizeste assim?” (Rm 9.20).
Mas a Cristo coube uma advertência amorosa, pacífica, repleta de compaixão e misericórdia; contudo, imperativa, reveladora o suficiente para que ela pudesse aperceber-se de seu grave erro: “Maria escolheu a boa parte, a qual não lhe será tirada”.
A comunhão com Deus é a única indispensável a nossas vidas. Devemos buscar sempre, e em primeiro lugar, o Seu reino e a Sua justiça (Mt 6.33). O mundo e tudo o que nele há, passará. O que plantamos agora, daqui a pouco, de nada servirá, tornando-se inútil. E muito do que nos esforçamos em alcançar continuamente é irrelevante, supérfluo; “porque, onde estiver o vosso tesouro, ali estará também o vosso coração” (Lc 12.34).
Pois, se alguém ama a Deus, é conhecido dele (1Co 8.3); e para os filhos de Deus, somente isso é necessário... Como Maria entendeu gloriosamente, ao deleitar-se em conhecer o seu Senhor.