25 janeiro 2023

Objetivo Final















Por Jorge Fernandes Isah

     Em recente conversa, foi-me perguntado qual o objetivo de Deus para o crente. E, concluiu: seria a salvação? Pensei alguns segundos, e respondi quase de estalo: Não!
      Mas, então, qual o propósito de Deus para as nossas vidas?
Sei que o fim de tudo é a sua glória. Ele não quer nada menos que isso, que o seu nome seja louvado por toda a criação, e em especial, pelo seu povo. Esse é o objetivo final de Deus para a sua obra, que ela o exalte, revelando-o como Senhor e Criador bendito e glorioso. Acontece que essa é a resposta para outra pergunta, não aquela.
    Na verdade, pode-se dar vários significados à pergunta, e abordá-la em múltiplas formas, e em diversos contextos. Desde a importância do cristão na igreja, como parte do corpo e sua contribuição para a obra dos santos, como a sua ação individual na família, no trabalho, na escola, na comunidade. Há aspectos e áreas em que o crente atuará: nas artes, na cultura, na política, filosofia e, sobretudo, na religião. Mas nada disso se configura o objetivo divino, antes são os meios pelos quais o Senhor nos usará para realizar a sua obra, e responder à pergunta não formulada e já respondida, sobre o fim de tudo.
    Igualmente, a redenção, salvação, santificação não são os objetivos finais para o crente. Repito: Deus usará toda a sua obra para que o fim seja alcançado: a sua glória. Da mesma forma serão usados meios para que sejamos, ao final, exatamente o que ele quer que nos tornemos. Por isso, farei um resumo da Criação e Redenção, em alguns pontos específicos apenas, sem pensar em ser exaustivo.
   Deus criou o homem à sua imagem e semelhança [Gn 1.26]. Adão era para ser o “top” da Criação, a criatura perfeita, aquela que revelaria o esplendor da glória divina. Contudo Adão foi incapaz de preservar-se a si mesmo, e caiu no Éden [Gn 3.2-8]; e com ele, toda a humanidade caiu; com ele, morremos espiritual e fisicamente, de tal forma que tivemos os olhos abertos para o pecado [v.7] e fechados para Deus. É interessante como a Bíblia revela que os olhos de Adão e Eva foram abertos, e a conseqüência foi reconhecerem-se nus, necessitando guardarem-na em vestes cozidas de folhas de figueira. Ao mesmo tempo em que seus olhos estavam fechados para a comunhão com o Senhor, o que os fez esconderem-se de diante da sua face, entre as árvores do jardim [v.8].  Dali em diante, a constatação é a de que o homem se degradou progressiva e rapidamente, ao ponto da sua maldade se multiplicar sobre a terra “e que toda a imaginação dos pensamentos de seu coração era só má continuamente” [Gn 6.5]. É o que Paulo diz, também: “Porquanto, tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças, antes em seus discursos se desvanceram, e o seu coração insensato se obscureceu” [Rm 1.21]. O restante da história, não é preciso descrever.
                Uma pausa.
   Tudo no universo tem por objetivo revelar a Deus. O homem foi criado para isso. A Lei entregue a Moisés, também. Mas somente Cristo, o Filho Amado, foi quem o revelou [Jo 1.18]. Muito antes dos céus e terra surgirem, estava determinado que o Verbo encarnaria, far-se-ia homem como nós, para que Deus nos fosse revelado. Muito antes de Adão cair, estava certo que Cristo viria ao mundo. Pois, somente assim, seria possível conhecer o Pai na plenitude do Filho, “o qual, sendo o resplendor da sua glória, e a expressa imagem da sua pessoa” [Hb 1.3] mostrou-nos a si mesmo, Deus.
Como homem perfeito, santo e imaculado, diferente do Adão terreno, Cristo, o Senhor, o Adão celestial [1Co 15.46], encarregou-se de resgatar e formar, pelo seu sacrifício, poder e vontade, filhos verdadeiros do Deus vivo, como está escrito: “mas recebestes o Espírito de adoção de filhos, pelo qual clamamos: Aba, Pai.... E, se nós somos filhos, somos logo herdeiros também, herdeiros de Deus, e co-herdeiros de Cristo: se é certo que com ele padecemos, para que também com ele sejamos glorificados” [Rm 8.15, 17].
               Novo parênteses.
  Quando Paulo diz que com Cristo padecemos para que sejamos glorificados, descreve-nos exatamente o que aconteceu ao Senhor. Era necessário que o seu sangue fosse derramado para que houvesse paz, e “por meio dele reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, tanto as que estão na terra, como as que estão nos céus” [Cl 1.20]. Primeiro, humilhando-se e sujeitando-se à vontade do Pai, o santo fazendo-se pecador; aquele que não pecou levou sobre si os pecados de muitos, para congregar em si “todas as coisas, na dispensação da plenitude dos tempos, tanto as que estão nos céus como as que estão na terra” [Ef 1.10]. Com isso, Paulo não está a afirmar que todas as coisas serão reconciliadas com Cristo, nem todos os homens, nem todos os anjos. Não há perdão para satanás e seus demônios, nem para os ímpios, os quais não serão restaurados e nem participarão do reino celestial. Há, porém, a necessidade de uma redenção cósmica, onde todo o universo entrou em colapso e desordem por causa da desobediência no Éden, e será restaurado a seu tempo, visto a criação gemer com dores de parto, e estar sujeita à vaidade de quem a sujeitou, o homem; esperando a libertação da servidão da corrupção para a liberdade da glória dos filhos de Deus [Gn 3.17, Rm 8.19-22].
    No grego, a palavra congregar é anakephalaiomai que tem o significado de ajuntar tudo sobre um mesmo princípio unificador, ou seja, reunir os eleitos, homens e anjos, debaixo da mesma cabeça, Cristo. Ele é quem nos une, e nos manterá unidos sobre a sua graça eternamente. O apóstolo não está a falar de uma redenção universal, no sentido de que todos serão expiados e salvos, mas de uma redenção particular, somente para aqueles que o Pai entregou ao Filho para que por ele o seu nome fosse manifestado aos eleitos [Jo 17.6].
  Segundo, humilhando-se a si mesmo até a morte, Deus o exaltou soberanamente, “para que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho dos que estão nos céus, e na terra, e debaixo da terra. E toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai” [Fp 2.10-11]. Todos, sem exceção, santos e ímpios, anjos e demônios, se prostarão diante dele, e proclamarão que reina sobre tudo e todos, eternamente. E assim como Cristo, devemos padecer até a morte [no espírito carnal e físico], para sermos, com ele, glorificados na vida [temporal e eterna].
              De volta à pergunta original.
   Podemos afirmar que a eleição, o chamado, a regeneração e salvação, e a santificação não são os objetivos finais de Deus, mas partes do processo que culminará no objetivo final: que todos os seus filhos se tornarão como Jesus Cristo; “porque os que dantes conheceu também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos” [Rm 8.29]. Essa foi a resposta que dei naquela ocasião; Deus nos quer e sempre nos quis como a seu Filho Amado, de forma que tudo, desde o seu início, muito antes de fazer os céus e terra, tinha por certo isso: fazer um povo que em tudo fosse semelhante a Cristo, e pudesse reconhecer-se nele, como imagem agora perfeita, santa e imaculada, assim como ele é; assim como desfruta do amor do Pai, também o desfrutamos. Somos participantes em tudo que o Senhor também participa, a fim de que ele seja tudo em todos. Nem menos, porque a perfeição e santidade somente podem ser na medida exata de Cristo; nem mais, porque é impossível qualquer variação naquele que é, e se faz conhecido como o "Eu sou". 
           E o que ele é, jamais pode não ser.

09 janeiro 2023

Doutor Fausto, de Thomas Mann: tomando o lugar do diabo

 





Jorge F. Isah


Os livros de Thomas Mann não são fáceis de ler, muito menos explicar. Estão carregados de símbolos, analogias, referências históricas, literárias, filosóficas e religiosas que fazem a cabeça de qualquer um andar em círculos, feito barata tonta ou como o camundongo na roda, sem sair do lugar. Por isso, não é uma leitura a se fazer célere, mas requer tempo, ainda mais a necessidade de meditar em seu conteúdo parcimoniosa e diligentemente. Mann é meticuloso, detalhista e parece fazer uma pesquisa rigorosa dos temas e assuntos abordados em suas obras de forma a não apenas conhecer o assunto mas conhecer o suficiente para expô-lo como um mestre. Ele não se permite vacilos ou linhas supérfluas, pois tudo tem um propósito, cada personagem, lugar, ideia e ato. Óbvio ser um autor culto, no sentido mais reverente e erudito do termo, por isso não é igualmente fácil, e até aprazível, a leitura dos seus romances, novelas, contos e ensaios. É como alguém escavar uma grande rocha utilizando-se apenas de talheres: é preciso tempo, empenho e obstinação. Conheço algumas pessoas que desanimaram antes de uma dezena de páginas, alcunhando-o de pedante. Nada é mais injusto ou desproporcional do que isso. Eu mesmo vivo a indicá-lo a amigos e conhecidos, e depois de algum tempo, quando os interrogo, sempre me deparo com as justificativas: não tive tempo ou não gostei, é por demais grandiloquente. De minha parte, apesar de todas as dificuldades, impostas mais por minha própria defasagem do que alguma eventual falha intelectual-literária dele, insisto, e me deparo, não raramente, deslumbrado e arrebatado durante a leitura.

Fiz esta introdução para alertar o leitor de que as minhas impressões a seguir não são exaustivas ou dão a dimensão do universo “manniano”; são apreensões e impressões muitas vezes insatisfatórias e limitadas, na tentativa de arrastar um e outro para esse mundo complexo (não há aqui qualquer sugestão de hermetismo; fique claro!), entretanto fascinante e irresistível.

Quase todo mundo já se deparou, ao menos uma vez na vida, com a história de Fausto, o sábio humanista que vendeu a sua alma ao diabo (Mefistófeles) em troca da satisfação dos seus desejos. Mann utiliza-se da tragédia escrita por Goethe para fazer uma alegoria entre o personagem principal, Adrian Leverkühn, e a Alemanha, mais especificamente a Alemanha Nazista. Ao contrário de Goethe, o “Dr. Fausto” de Mann é implacavelmente derrotado; se em Goethe o “Fausto” alcançava a redenção, em Mann ele é punido severamente.

Mas antes de entrar nesse aspecto, há de se ressaltar o volume assombroso de informações contidas na narrativa sobre teologia, filosofia e, especialmente, música. Thomas teve o auxílio de Theodor Adorno (filósofo, musicólogo e compositor alemão pertencente à Escola de Frankfurt), que se tornou seu conselheiro, entre outros músicos e amigos, a elaborar os inúmeros detalhes e diálogos sobre composição musical. Chega a ser asfixiante o número de informações apresentadas, que para leigos e nada iniciados na arte criativa de ritmos e harmonias de sons como eu (em um trecho encontra-se pormenores a respeito do “dodecafonismo” criado por Leverkühn; entretanto, na vida real era originalmente de Schoenberg, e levou o autor a se retratar em edições posteriores, a reconhecer a técnica como criação desse), se apresenta instigante mas ao mesmo tempo intimidadora. Mann é sempre assim, ele não deixa nada apenas na superfície; escava várias e várias camadas até atingir as profundezas da alma humana, o conhecimento e a realidade como poucos autores são capazes de alcançar.

A história versa sobre a vida e obra de Adrian Leverkühn contada pelo amigo e admirador Serenus Zeitblom. Ambos vão estudar na universidade de Wittenberg (alusão a Lutero e o protestantismo), e Adrian pretende se formar em teologia. Entretanto, ao ouvir uma palestra de um musicólogo, Kretzschmar, que não acredita na subordinação da música e cultura à religião (esteticismo), se interessa por polifonia e harmonia, e segue para Leipzig a fim de estudar com o seu novo mestre. Com o passar do tempo, ele abandona a polifonia e os princípios tradicionais da composição clássica e se aproxima dos elementos atonais e sua caótica “organização”; era a história e os valores tradicionais sendo escamoteados em favor de uma nova ordem liberal e moderna, e levou ao colapso a maior parte do mundo. Assim, quando o narrador, ao vê-lo abandonar a teologia em favor da música, e as mudanças radicais de composição, começou a temer pelo futuro do amigo, em vista da sua abrupta mudança de objetivo: o afastar de Deus e achegar-se perigosamente ao mal. Com o passar do tempo e o envolvimento com estranhas companhias, se deparou com uma personalidade demoníaca, ao isolar-se, a demonstrar uma “frieza” até mesmo com a música, algo meramente racional e pragmático, apesar da sua genialidade.

Lá pelo fim do segundo terço, ocorre o pacto entre Leverkühn e Mefistófeles (um diálogo magistralmente composto por Mann), e este concorda em dar àquele a genialidade criativa, a fama e o reconhecido talento musical. Em contrapartida, existe um senão: Adrian está impossibilitado de amar e, consequentemente, ser feliz, além de sofrer com fortes enxaquecas e dores abdominais advindas da sífilis contraída com a amante, Esmeralda. Pouco a pouco a sua personalidade se tornará cada vez mais sombria, orgulhosa, desumana, ao ponto de o devotado Serenus (a antítese do temperamento irrequieto de Adrian) introverter-se, sintoma do agastamento pelas mudanças negativas. A degradação física, moral e espiritual de Adrian tem a Alemanha como pano de fundo. A sífilis tal qual uma ideologia totalitária a desprezar os valores morais e éticos do cristianismo em prol do niilismo e do esteticismo nacionalista (uma fusão destrutiva com o fim de se sobrepor e aniquilar qualquer forma de influência moral e cultural tradicionais), levará Adrian e a Alemanha ao mesmo fim, vitimados pela própria arrogância e autonomismo, levados à loucura e delírio máximo pelo narcisismo. Adrian se confunde com a história alemã do entreguerras, e perde a noção da ruína na qual se formou. E por causa do pacto diabólico, mesmo o pouco amor e empatia que lhe restava, transformou-se em tragédia na qual se arrasta a si e a outros pela vida.

Quanto a Serenus, a sua passividade em relação à autodestruição do amigo e consequente destruição de quem está próximo (o Midas ao contrário, onde o toque do mal produz apenas mal), inspira a reflexão em relação aos negligentes diante da possibilidade de resistência, à qual rejeitaram, deixando-se entregar à enxurrada de desgraças, conformados em deslizar a favor da correnteza. Ele mantém o relacionamento com Adrian numa espécie de cumplicidade, o fazer vistas grossas, ao receber alguma dignidade pelo tratamento familiar e exclusivo dispensado por Adrian, e o orgulho de participar do seu círculo de amizades. Não havia o porquê de confrontar o amigo, bastava acompanhá-lo, o mais próximo, em seu declínio moral e espiritual.

Em tempos onde o mundo é soterrado pela própria aspereza ideológica, política, cultural e intelectual, bem aos moldes da Alemanha pré-nazista, e potencializado por ela (o mesmo vale para qualquer governo marxista, socialista ou que o valha), onde os ideias revolucionários, juntamente com as chamadas “políticas sociais” e o liberalismo, são motes para o controle, manipulação e reengenharia da sociedade, os alertas de Dr. Fausto deveriam ecoar como sirenes antiaéreas, iguais às usadas na Europa durante a I e II Grande Guerra, pois a história é cíclica, de tempos em tempos se repete, e a tragédia fáustica parece próxima de se concretizar, todavia, em caráter global. Não à toa, a obra máxima de Leverkühn, o Apocalypsis cum Figuris, afigura-se literalmente o rumo maligno que a vida de Adrian/Alemanha tomaram ao desprezar os valores ordenadores da vida (refiro-me aos princípios cristãos), substituindo-os pelo colapso mortal e inevitável de uma ilusão de autonomia e tentativa de reconstruir o homem e o mundo. Em outras palavras, ao afastar-se de Deus e de sua condução, a humanidade depara-se consigo mesma em sua pior performance.

Ao descrever o pacto diabólico ficcional, Mann expõe a realidade do inferno, a insensatez e desvario de milhões, quiçá bilhões de adãos ao entregarem-se à cilada da serpente e desejar ser como Deus.


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Avaliação: (****)

Título: Doutor Fausto - A Vida Do Compositor Alemão Adrian Leverkühn Narrada Por Um Amigo

Autor: Thomas Mann

Páginas: 624

Editora: Cia das Letras

Sinopse: Último grande romance de Thomas Mann, Doutor Fausto foi publicado em 1947. O escritor fez uma releitura moderna da lenda de Fausto, na qual a Alemanha trava um pacto com o demônio - uma brilhante alegoria à ascensão do Terceiro Reich e à renúncia do país a sua própria humanidade. O protagonista é o compositor Adrian Leverkühn, um gênio isolado da cultura alemã, que cria uma música radicalmente nova e balança as estruturas da cena artística da época. Em troca de 24 anos de verve musical sem paralelo, ele entrega sua alma e a capacidade de amar as pessoas. Mann faz uma meditação profunda sobre a identidade alemã e as terríveis responsabilidades de um artista verdadeiro.