21 fevereiro 2022

O Idiota, de Dostoievski: A rejeição do bem

 



Jorge F. Isah


A primeira vez que li “O Idiota” foi antes de completar meus dezoito anos; um exemplar emprestado à Biblioteca Pública de Minas Gerais, quando os livros eram realmente caros (ainda o são, mas não tanto como antes) e a possibilidade de tê-los, mesmo por um par de semanas, era através dos poucos e imprescindíveis acervos públicos, aos quais incluo o Sesc, Sesi, etc. Porém, em BH, nenhum deles tinha o conjunto de obras tão vasto e diverso quanto a B.P.E.M.G. Foi lá que tomei conhecimento de autores nunca citados, sequer ouvidos, como André Gide, Sinclair Lewis, Salinger, Dos Passos, Maupassant, Prost e Camus, entre outros. Boa parte da minha adolescência gastei-a em tardes vasculhando as estantes e a folhear quase todos os livros ao alcance dos olhos e das mãos. Podia-se levar apenas dois exemplares para casa, o que significava a ida duas ou mais vezes por semana a fim de devolver e pegar outros volumes. Com o tempo, e a experiência, comecei a tomar livros cada vez mais grossos, no intuito de ir não mais de uma vez por semana. Há de se entender que as condições de se arcar com o custo das passagens de ônibus, de casa ao centro, era algo oneroso para um ginasiano morador da periferia. Minha mãe se esforçava em custeá-las, mas não era justo expô-la a um sacrifício desnecessário. Por mais de vinte anos fui habitué daquela casa, ao lado do antigo Palácio do governo, na Praça da Liberdade. Posto isso, não o escrevo para me vitimar ou coisa que o valha, mas fazer o leitor entender a importância da literatura em minha vida; não fui o melhor leitor, com certeza, e nem sei se sou um bom leitor hoje, entretanto era-me, assim como é, algo indispensável.

Acalentava, havia algum tempo, o desejo de reler “O Idiota”, e apagar algumas das impressões absorvidas e que me fizeram, de certa forma, odiar o protagonista, príncipe Liév Míchkin. Vou explicar: naquele tempo, talvez a imaturidade ou arrogância, sei lá, o herói tinha de ser alguém capaz o suficiente de ser dono do próprio nariz, não quanto à sabedoria ou capacidade de escolhas lógicas e virtuosas, mas à rebeldia, a quebra dos padrões morais e institucionais (sim, a mentalidade revolucionária estava presente e atuante), e nem mesmo o amor poderia ser sacrificial, auto negador e cordial. Talvez a leitura de o “Apanhador no campo de centeio”, poucos dias antes, influenciou na aversão ao príncipe; pois, para mim, era impossível existir uma alma tão pura, benigna, tolerante e pacificadora como a dele... Haveria alguém assim no mundo? Dostoievski não estaria a construir um indivíduo utópico, insólito e extravagante? Quem se disporia a ser assim? Se angustiar e punir por não ser ainda melhor?... Em nada se parecia com o mimado e rebelde Holden, de Salinger. E isso pode ter pesado muito no meu desagravo.

         Havia ainda o fato de Míchkin ser uma personagem completamente despojada de vaidade, orgulho e, pode-se dizer, amor-próprio. A alcunha de “idiota” parecia cair-lhe bem demais, e a isso acabou por acostumar-se e, algumas vezes, reconhecer publicamente. Nem pessoas definitivamente asquerosas e perversas como Rogójin, Ippolit, Liébediev eram afastadas do seu convívio, tratando-as generosa e fraternalmente, perdoando-as mesmo sem que pedissem, enquanto tramavam às suas costas. Para mim, o pior de tudo era o príncipe saber quem eram e seus feitos, de não estar iludido quanto a qualquer um deles, e mesmo assim reservar-lhes clemência, misericórdia, compreensão. Se ao menos estivesse enganado ou desconhecesse suas índoles, ambições e condutas, eu entenderia; mas não era o caso, parecia que quanto mais íntimo de suas indignidades, mais permitia estarem à sua volta, rodeando-o à espreita.

         Pois bem, parte dessas sensações persistiram na segunda leitura, a diferença é que, tendo hoje uma cosmovisão cristã que não tinha à época, consigo entender os motivos pelos quais Dostoievski criou um personagem tão abnegado e altruísta. Ele é o molde, o exemplo de Cristo, e de muitos santos a permear a história. Nitidamente é padrão de santidade que o autor imprime, num momento histórico no qual as pessoas são cada vez mais interesseiras, egoístas e dispostas aos conflitos e vinganças. O príncipe Míchkin é um puro, de uma pureza quase ingênua mas sábia, incapaz de julgamentos apressados, de sentenças imediatas, de rancor e desforra. E assim, aos olhos dos homens comuns, não passa de idiota, incapaz de compreender as pessoas e suas ações, disposto a sacrificar-se pelos pecados alheios, sem qualquer esperança de ser reconhecido em seu esforço. Ele o faz por si mesmo, a sua ética e moral não estão associadas aos favores de outrem, mas exclusivamente pela sua incapacidade de aspirar o mal e ser incompreensível; como se ao presenciar a inaptidão das pessoas em decifrá-lo, em penetrar-lhe o íntimo, o insuflasse a entendê-los em suas desordem. Neste sentido, eles são os idiotas, em seus rompantes e desejos primitivos... Há de se lembrar também o fato do príncipe ter características do Dom Quixote de Cervantes, e até mesmo uma explícita alusão, apelidado por Aglaia, ao compará-lo com o “Cavaleiro Andante”; acabando por ser mais um motivo de zombaria e desprezo no seu círculo (a intenção de Aglaia não é de pilhéria, mas realçar características a tornarem o príncipe tão simpático e, talvez, romântico, aos seus olhos; entretanto, ninguém considera-o dessa forma).

Toda essa ligação religiosa com o cristianismo tem a finalidade de combater o niilismo, sendo aquele o antídoto para este. Em vários momentos, o príncipe discorre sobre o assunto postulando ao cristianismo a superioridade em relação a outros sistemas, em especial a única maneira de combater e erradicar o niilismo das terras russas. Talvez, por isso, em um mundo onde as correntes apontavam para uma existência sem sentido, onde tudo era infundado e reduzido ao materialismo imediato, ele defendia valores incompreendidos e impossíveis numa sociedade viciada pelas aparências e a confusão dos sentidos. Para ele, nada podia ser meramente aparente; nada poderia ser desconectado da essência humana que, em não poucos sentidos se ligava a Deus. Atacado por todos os lados, tentou resistir, mas até mesmo alguém desprendido e generoso se perde em suas dúvidas; não que elas se relacionassem à corrupção ou imperfeição do bem, mas se ele era capaz de consegui-la pelos seus próprios meios e esforços, se não havia nada mais que pudesse fazer a fim de colaborar para a manifestação das mais sublimes virtudes. Ele desejava ser bom não porque isso traria benefícios a si mesmo, mas os direcionava ao próximo, e era o fundamento da natureza humana.

A cena final do livro, em que ele afaga piedosamente a cabeleira de Rogójin, após este cometer desatino movido por vingança e orgulho, demonstra o quanto o príncipe se compadecia, e até certo ponto entendia, o sofrimento e as consequências de vidas tresloucadas, firmadas no individualismo, no egoísmo, na crença de nada ser importante, de não haver fundamentos, se não se pode alcançar... E se o alcança, qual a razão para se tê-lo? Resta, no fim, a loucura, os pecados, a transformar semelhantes em explícitos inimigos. E Míchkin enlouquece, não por si mesmo, mas pela incompreensão que, via de regra, leva-o a não entender a si; e os seus “sacrifícios” são mistérios, quando não ignorados são tratados com preconceito e violência.

Reler, portanto, O Idiota, fez-me encontrar elementos e pontos não identificáveis ou esquecidos nos longínquos anos da primeira leitura. Não é um livro fácil. Suas mais de 700 páginas não devem, contudo, tornar-se empecilho ou entrave para o leitor se privar de um livro magistralmente escrito, onde não se encontra o homem ideal, aos moldes ideológicos e comportamentais planejado neste tempo, como um quebra-cabeças planificado, montado com apenas um modelo de peças, sem se encaixar em nenhuma outra e produzir a imagem geral da humanidade. Dostoievski não produz mentes seriais, clones de um mesmo doador, mas destrincha, investiga, extrai o de mais verdadeiro, e também falso, a habitar este ser dual: indivíduos e suas gentes. Por isso, e o deleite de ver-se, de alguma forma e em alguma proporção, nas personagens  do velho e bom Fiodor somente pode trazer o conhecimento, a intimidade, da qual as gerações posteriores a ele se especializaram em negar, a privar-se; e, assim, como muitos se especializaram, criar um arquétipo de si mesmo, confundir-se e ignorar quem seja e o que seja.

Leitura imprescindível.   

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Avaliação: (*****)

Título: O Idiota

Autor: Fiodor Dostoievski

Tradutor: José Geraldo Vieira

No. Páginas: 712 

Editora: Martin Claret

Sinopse: "O idiota é uma das obras mais comoventes de Fiódor Dostoiévski. Abstrusa para os contemporâneos do escritor, mas atual e compreensível para quem a conhecer em nossos dias, ela conta a história de um jovem aristocrata russo que se atreve a defender o sublime ideal humanista numa sociedade regida pelas leis do livre comércio. Ovelha negra da alta-roda de São Petersburgo, o príncipe Míchkin é tachado de idiota em virtude das suas qualidades morais e acaba perdendo de fato o juízo."




15 fevereiro 2022

Sermão em 2Coríntios 1.3-10: O Deus que consola!

 



Jorge F. Isah


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INTRODUÇÃO


“1. PAULO, apóstolo de Jesus Cristo, pela vontade de Deus, e o irmão Timóteo, à igreja de Deus, que está em Corinto, com todos os santos que estão em toda a Acaia.”


Paulo afirma três coisas:

- Ele é apóstolo de Jesus Cristo, pela vontade de Deus; ou seja, foi chamado por Cristo especificamente para o apostolado. A palavra apóstolo, do grego απόστολος (apóstolos), significa enviado, aquele escolhido diretamente por Jesus e encarregado de levar as “boas novas” aos perdidos. Portanto, não é possível haver apóstolos nominados como tais em nossos dias, já que nenhum deles foi “diretamente” chamado a esse ministério pelo Filho. Qualquer um que se autodenomine “apóstolo” está usurpando o direito exclusivo do nosso Senhor, ferindo a sua autoridade.

- Ele nomeia como testemunha de tudo o que relatará na carga a Timóteo, a quem se refere como irmão;

- E a carta se destina à Igreja de Deus que está em Corinto, mas não somente lá, na cidade, mas em toda a região da Acaia. Para situar os irmãos, Acaia era uma província romana onde hoje é a Grécia Central, e Corinto era a segunda cidade em importância da região, perdendo apenas para Atenas. Havia em Corinto dois portos movimentadíssimos, fazendo dela uma cidade rica, próspera e de intenso comércio.

- Paulo escreveu esta carta por volta do ano 55 ou 56 D.C.


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“2. Graça a vós e paz da parte de Deus nosso Pai, e da do Senhor Jesus Cristo.”

- Paulo saúda os irmãos a expressão equivalente a do A.T., quando os autores se referiam ao Senhor como o “Deus de Abraão, Isaque e Jacó”. Assim, no N.T. temos os autores felicitando os irmãos com a expressão “Deus nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo”, ressaltando a divindade de Cristo e a sua geração eterna pelo Pai.


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“3. Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai das misericórdias e o Deus de toda a consolação;”

- Paulo louva, glorifica a Deus, utilizando-se da expressão “bendito” que significa “aquele que só faz o bem; aquele que é todo o bem”.

- Antes de relatar as tribulações e lutas, ele exalta a Deus, ao nomeá-lo o Pai das misericórdias ou misericordioso, indicando que Deus não é somente cheio de misericórdia, mas ele é a fonte, a origem de toda a misericórdia.

- Igualmente ele é o Deus de toda a consolação; não há nada nem alguém a suplantá-lo no conforto, na paz e alegria concedidas.



DESENVOLVIMENTO


“4. Que nos consola em toda a nossa tribulação, para que também possamos consolar os que estiverem em alguma tribulação, com a consolação com que nós mesmos somos consolados por Deus.”

- Entramos agora no cerne da nossa meditação: o Deus que consola.

- Primeiro, somos consolado porque somos afligidos, atribulados, entristecidos, perseguidos, torturados. Só haverá consolo se houver tristeza e dor; do contrário, qual o motivo da conforto?

- Segundo, a relação é sempre de Deus para os seus filhos. Assim como amamos porque Deus nos amou primeiro, somos capazes de consolar porque ele nos consola. E neste sentido, sendo o Senhor governante de toda a Criação, podemos compreender que o sofrimento faz parte do plano divino, sendo nós quem infligimos a dor ao nosso próximo.

- Com isso, não estou a dizer que cada um de nós, em sã consciência, batalhamos para fazer os outros sofrerem, não é isso.

- Entretanto, não podemos descartar as consequências da Queda, da desobediência a Deus, e da qual participamos juntamente com Adão, sendo prometido a ele e a nós os efeitos e resultados das nossas transgressões.

(Ler Gênesis 3:11-19 – Discorrer rapidamente sobre o resultado do pecado)

- Ou seja, o mal e todas as suas sequelas são oriundas do pecado, e somente podem ser produzidos pela criaturas caídas, homens e demônios. E essa é a única e verdadeira explicação para o mal, as tristezas, as tribulações neste mundo. E não devemos esquecê-las, no sentido de não florear ou escorregar para desculpas e falsas definições: o mal e a dor são responsabilidade nossa, e imputá-las a Deus é elevar-nos a nossa injustiça ao mais alto nível de pecado e iniquidade.

- Por isso Paulo, em momento algum, reputa a Deus a origem dos males que o assolaram, o sofrimento ao qual foi exposto como mensageiro das boas novas do evangelho de Cristo.

- Podíamos vê-lo se rebelar, lamuriar, maldizer aos céus contra as adversidades e reveses da vida, mas não. Ele não somente glorifica a Deus, mas reputa a ele toda a bondade e misericórdia e consolo com que foi agraciado, fortalecido, e sustentado.

- Veja bem, o apóstolo nos fala de graça sobre graça, algo não merecido e recebido apenas como favor e bondade divinas. Nada mais. Nenhum mérito de Paulo. Nenhum arranjo de Paulo. Nenhum sacrifício de Paulo. Apenas o amor infinito com Deus o amou desde antes da fundação do mundo. Graça imerecida, e por isso, graça apenas, mas também graça completa e plena emanada do bom Deus.

- Nos fala ainda de sermos consolados somos capazes de consolar. Aqui existe claramente a lição de ser o consolo aprendido, algo experimentado e então possível de ser distribuído. Entretanto, não é um consolo fracionado, imperfeito, mas um dom concedido a Deus para cada um disposto a aprender e se submeter ao ensino divino, e, então, levar exatamente o que recebeu; entregar ao próximo aquilo com que foi presenteado, gratuita e amigavelmente, como nos foi dado.



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“5.Porque, como as aflições de Cristo são abundantes em nós, assim também é abundante a nossa consolação por meio de Cristo. 6. Mas, se somos atribulados, é para vossa consolação e salvação; ou, se somos consolados, para vossa consolação e salvação é, a qual se opera suportando com paciência as mesmas aflições que nós também padecemos; ”

- Vivemos um mundo hedonista, em que se busca o máximo de prazer em coisas fugazes, seja o sexo, os vícios, o dinheiro, aventuras, ou qualquer outra coisa. O homem moderno busca incessantemente o prazer a qualquer preço, e por isso, por não conseguir se satisfazer plenamente apesar de buscar de todas as formas o gozo, temos milhares, senão milhões de pessoas afogadas nos vícios, em salas de terapeutas que pouco ou nada podem fazer para ajudá-los, entupindo-se com antidepressivos, ansiolíticos, e tantas outras coisas para aplacar, de alguma forma, as frustrações da vida.

- Outra prova de aceitação do conceito hedonista é a Teologia da Prosperidade, a defender propagar o equívoco de que o cristão não sofre, e se sofre é porque não tem fé, pois a tendo, ele viverá neste mundo quase como um Midas, a tornar ouro tudo o que toca. Esse é um grande erro, pois distorce e nega os princípios entregues por Cristo e os apóstolos, ao afirmarem exatamente o contrário:

- Aos cristãos, o Senhor disse que seríamos afligidos, mas jamais derrotados, porque ele venceu o mundo: “Mas não estou só, porque o Pai está comigo. Tenho-vos dito isto, para que em mim tenhais paz; no mundo tereis aflições, mas tende bom ânimo; eu venci o mundo” — João 16.32-33

- O que o Senhor está a dizer? Que ele e o Pai são um, e de que o Pai está sempre com ele, consolando-o e confortando-o, mesmo quando todos fugiram e o abandonaram, ele jamais esteve só. Da mesma forma, Cristo estará sempre conosco, independente de sermos abandonados ou estarmos solitários; porque, se estamos nele jamais nos faltará paz, mesmo nas piores batalhas, nas lutas mais cruéis.

- E isto não pode ser apenas um conceito ou dogma, algo apenas intelectual pois, desta maneira, não seríamos capazes de auxiliar e confortar os aflitos. É algo real, a mover a nossa alma na direção de Deus e por ele ser amparado, protegido.

- Claro que, nenhum de nós quer sofrer, sentir dores ou ser afligido por castigos e perseguições. É óbvio que em nossa humanidade a angustia e lágrimas não deveriam fazer parte da vida. O Cristianismo não defende o masoquismo ou o sadismo, distúrbios psicológicos nos quais o homem sente prazer com o suplício e o martírio de si próprio ou do próximo. Não é isso.

- Mas, certamente, você já se deparou com doenças, a morte, a destruição de pessoas e lares pelo vício, a perseguição no trabalho, o desemprego, a fome ou qualquer ou desgosto e tragédia. Podemos simplesmente lamentar e rebelar quando for pessoal; podemos ignorar ou evitar quando for o próximo; mas esta seria a realidade a qual Deus nos chamou?

- Sendo sal e luz neste mundo, devemos propagar o sabor e o brilho de Cristo. E a mensagem dele não é um placebo, como os céticos afirmam, mas factual, efetiva e terapêutica, no sentido de ser o único remédio eficaz para a dor e o sofrimento.

- Se somos participantes das aflições de Cristo também o seremos da consolação.

- Se o próprio Senhor sofreu, por que não sofreríamos também? Ele, justo, santo e perfeito, em sua humanidade passou por inúmeras dores e aflições, seria justo não passarmos também?

- Aqui encontramos o princípio de Cristo ter padecido para ser capaz, também, de consolar. Como está escrito:

“Assim também Cristo não se glorificou a si mesmo, para se fazer sumo sacerdote, mas aquele que lhe disse: Tu és meu Filho, Hoje te gerei. Como também diz, noutro lugar: Tu és sacerdote eternamente, Segundo a ordem de Melquisedeque. O qual, nos dias da sua carne, oferecendo, com grande clamor e lágrimas, orações e súplicas ao que o podia livrar da morte, foi ouvido quanto ao que temia. Ainda que era Filho, aprendeu a obediência, por aquilo que padeceu. E, sendo ele consumado, veio a ser a causa da eterna salvação para todos os que lhe obedecem”(Hb 5.5-9)



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“8. Porque não queremos, irmãos, que ignoreis a nossa tribulação que nos sobreveio na Ásia, pois que fomos sobremaneira agravados mais do que podíamos suportar, de modo tal que até da vida desesperamos. 9. Mas já em nós mesmos tínhamos a sentença de morte, para que não confiássemos em nós, mas em Deus, que ressuscita os mortos. 10. O qual nos livrou de tão grande morte, e livra; em quem esperamos que também nos livrará ainda”

- O apóstolo então começa a descrever os infortúnios e ameaças sofridas na Ásia. Para ele, Ásia significava a Ásia Menor ou Turquia, local onde ficavam as sete igrejas das cartas do Senhor Jesus no livro de Apocalipse, cuja capital era Éfeso.

- Paulo relata aos irmãos ter passado por grande tribulação. A ideia não é se vitimar ou queixar-se e chamar sobre si a atenção da igreja, a se vangloriar dos sofrimentos infligidos.

- A ideia é antes de tudo mostrar que sendo apóstolo de Cristo sofria como Cristo sofreu, e se ele era capaz de suportar, pela graça de Deus, tamanho sofrimento, também os crentes não estavam isentos da dor e angústia.

- Poucos homens passaram por tantas provações em seu ministério como o apóstolo. Um pouco mais à frente, neste livro, ele relata:

“22. São hebreus? Também eu. São israelitas? Também eu. São descendência de Abraão? Também eu. 23. São ministros de Cristo? (Falo como fora de mim) Eu ainda mais: em trabalhos, muito mais; em açoites, mais do que eles; em prisões, muito mais; em perigo de morte, muitas vezes. 24. Recebi dos judeus cinco quarentenas de açoites menos um. 25. Três vezes fui açoitado com varas, uma vez fui apedrejado, três vezes sofri naufrágio, uma noite e um dia passei no abismo; 26. Em viagens muitas vezes, em perigos de rios, em perigos de salteadores, em perigos dos da minha nação, em perigos dos gentios, em perigos na cidade, em perigos no deserto, em perigos no mar, em perigos entre os falsos irmãos; 27. Em trabalhos e fadiga, em vigílias muitas vezes, em fome e sede, em jejum muitas vezes, em frio e nudez. 28. Além das coisas exteriores, me oprime cada dia o cuidado de todas as igrejas. 29. Quem enfraquece, que eu também não enfraqueça? Quem se escandaliza, que eu me não abrase? 30. Se convém gloriar-me, gloriar-me-ei no que diz respeito à minha fraqueza.”

- Além dos perigos físicos, perseguições, torturas, atentados e tantos outros perigos, Paulo se afligia com o cuidado da Igreja, com as lutas dos irmãos, a fim de cumprir completamente o ministério recebido do nosso Senhor, sabendo que ele era quem o sustentava.

- Ele entendia que o sofrimento era parte da vida cristã; E que Deus usava-o com dois objetivos:

a) Disciplinar, conforme nos diz o próprio apóstolo:

“E já vos esquecestes da exortação que argumenta convosco como filhos: Filho meu, não desprezes a correção do Senhor, E não desmaies quando por ele fores repreendido; Porque o Senhor corrige o que ama, E açoita a qualquer que recebe por filho. Se suportais a correção, Deus vos trata como filhos; porque, que filho há a quem o pai não corrija? (Hb 12.5-7)


b) Ensino, aprendizado; e este é o teor deste capítulo da epístola, revelar que somente aquele que sofre e é consolado pode consolar o próximo em seu sofrimento.

- Paulo diz que ele sofreu de maneira insuportável, na Ásia. Quanto a isso, não existe consenso entre os eruditos. A maioria aponta para o incidente descrito no livro de Atos 19.23-41, quando, insuflados por Demétrio, um ourives, toda a cidade de Éfeso se levantou contra Paulo, por causa da deusa Diana.

- O apóstolo não foi específico quanto ao incidente, podendo ser esse ou outro, mas talvez a reunião de todos eles, como descreveu no capítulo 11.

- E ele fala de “sentença de morte” contra ele, de maneira que a vida se lhe tornou desgostosa. E uma sentença tão terrível, quase as portas da morte, que ele compara o livramento, a libertação de Deus daquele sofrimento, como a ressurreição dos mortos. Ele não está a falar na ressurreição no fim dos tempos, quando todos seremos renovados, ganharemos novos corpos, e seremos santos e perfeitos como é o Senhor Jesus. Mas ele equipara a “salvação” divina daquela morte como a ressurreição, tala forma como ela se apresentava para ele, inexorável, inevitável.

- Mas havia uma razão, e sempre existe, para nos sentirmos frágeis e incapazes diante das contingências da vida: porque não somos nada sem a graça de Deus.

- Sim, é a graça divina operando em nós que nos torna fortes e capazes de vencer as lutas; na verdade, vencemos porque, como o Senhor Jesus disse, ele venceu e nos deu a vitória a nós. A vitória é sempre dele, e é por ele que alcançamos êxito nos piores momentos, nas piores crises, para não depositarmos a confiança em algo indeciso e hesitante: nós!

- Por isso, a ordem é para confiar em Deus, e somente nele depositarmos todas as nossas esperanças, porque ele prometeu cuidar de nós, como Pai zeloso; ele nos prometeu jamais nos abandonar, e de sermos um com ele; e descansarmos, repousarmos em sua segurança e poder e amor.

- Paulo, certa vez, pediu ao Senhor para tirar-lhe um espinho na carne, e por três vezes orou; qual foi a resposta de Deus? “A minha graça te basta!” (2 Co 12.7-9).

- Entendamos isso de uma vez por todas, a graça de Deus é tudo, e ela não somente deve mas tem de nos bastar, mesmo que afligidos, como o apóstolo por um incômodo, doloroso e vergonhoso espinho na carne. E Deus usou esse flagelo para aperfeiçoar, para fortalecer Paulo, fazendo com que o poder de Cristo habitasse nele.


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10. "O qual nos livrou de tão grande morte, e livra; em quem esperamos que também nos livrará ainda"

- Por fim, para concluir este estudo, é-nos dito pelo apóstolo, na esperança e certeza das promessas divinas, que o livrou, no passado, aquela morte líquida e certa de que foi salvo; e livra, significando que no presente, naquele momento em que Paulo escrevia a epístola, Deus o estava libertando de outros perigos, de novas ameaças; e ainda de futuras, pois havia a certa de que Deus o livrará novamente.


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CONCLUSÃO

- Evidente que, em certo momento, as perseguições e perigos alcançaram o apóstolo de tal maneira que Deus não o livrou. O preço do pecado é a morte; e mesmo santificado, resgatado e expiado pelo sacrifício de Cristo, Paulo morreria, como morreu. Preso pelos romanos, foi a julgamento e condenado à decapitação, como a História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia, relatou.

- Mas, certamente, a morte definitiva não o alcançou. A separação eterna de Deus havia sido anulada pela graça e o sacrifício de Cristo; e a promessa de estar com ele por toda a eternidade se cumpriu fielmente naquele dia, quando teve o pescoço decepado. Já não mais haveria sofrimento, ou dor, ou ameaças contra ele. Usando as palavras do Senhor Jesus, Paulo poderia dizer: está consumado, pelo amor e graça do meu Senhor.

- Foi ele pois, um homem de dores como era também Cristo, que escreveu:

“33. Quem intentará acusação contra os escolhidos de Deus? É Deus quem os justifica. 34. Quem é que condena? Pois é Cristo quem morreu, ou antes quem ressuscitou dentre os mortos, o qual está à direita de Deus, e o que também intercede por nós. 35. Quem nos separará do amor de Cristo? A tribulação, ou a angústia, ou a perseguição, ou a fome, ou a nudez, ou o perigo, ou a espada? 36. Como está escrito: Por amor de ti somos entregues à morte todo o dia; somos reputados como ovelhas para o matadouro. 37. Mas em todas estas coisas somos mais do que vencedores, por aquele que nos amou. 38. Porque estou certo de que, nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as potestades, nem o presente, nem o porvir, 39. Nem a altura, nem a profundidade, nem alguma outra criatura nos poderá separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor.” (Rm 8.33-39)

- Para o próprio Paulo concluir com mais outro escrito:

“55.Onde está, ó morte, o teu aguilhão? Onde está, ó inferno, a tua vitória?... 57. Mas graças a Deus que nos dá a vitória por nosso Senhor Jesus Cristo.” (1Co 15.55; 57)

- Honra, glória e louvor ao nosso Senhor Jesus Cristo!

- Que ele nos fortaleça e capacite a, assim como somos consolados em nossas tribulações, também consolemos aqueles que estão sofrendo, sempre com a verdade e boas novas e promessas do Evangelho de nosso Senhor!

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Notas: 1 - Sermão ministrado no Tabernaculo Batista Bíblico

2- Para ouvir o áudio da pregação, clique no link   

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