21 fevereiro 2022

O Idiota, de Dostoievski: A rejeição do bem

 



Jorge F. Isah


A primeira vez que li “O Idiota” foi antes de completar meus dezoito anos; um exemplar emprestado à Biblioteca Pública de Minas Gerais, quando os livros eram realmente caros (ainda o são, mas não tanto como antes) e a possibilidade de tê-los, mesmo por um par de semanas, era através dos poucos e imprescindíveis acervos públicos, aos quais incluo o Sesc, Sesi, etc. Porém, em BH, nenhum deles tinha o conjunto de obras tão vasto e diverso quanto a B.P.E.M.G. Foi lá que tomei conhecimento de autores nunca citados, sequer ouvidos, como André Gide, Sinclair Lewis, Salinger, Dos Passos, Maupassant, Prost e Camus, entre outros. Boa parte da minha adolescência gastei-a em tardes vasculhando as estantes e a folhear quase todos os livros ao alcance dos olhos e das mãos. Podia-se levar apenas dois exemplares para casa, o que significava a ida duas ou mais vezes por semana a fim de devolver e pegar outros volumes. Com o tempo, e a experiência, comecei a tomar livros cada vez mais grossos, no intuito de ir não mais de uma vez por semana. Há de se entender que as condições de se arcar com o custo das passagens de ônibus, de casa ao centro, era algo oneroso para um ginasiano morador da periferia. Minha mãe se esforçava em custeá-las, mas não era justo expô-la a um sacrifício desnecessário. Por mais de vinte anos fui habitué daquela casa, ao lado do antigo Palácio do governo, na Praça da Liberdade. Posto isso, não o escrevo para me vitimar ou coisa que o valha, mas fazer o leitor entender a importância da literatura em minha vida; não fui o melhor leitor, com certeza, e nem sei se sou um bom leitor hoje, entretanto era-me, assim como é, algo indispensável.

Acalentava, havia algum tempo, o desejo de reler “O Idiota”, e apagar algumas das impressões absorvidas e que me fizeram, de certa forma, odiar o protagonista, príncipe Liév Míchkin. Vou explicar: naquele tempo, talvez a imaturidade ou arrogância, sei lá, o herói tinha de ser alguém capaz o suficiente de ser dono do próprio nariz, não quanto à sabedoria ou capacidade de escolhas lógicas e virtuosas, mas à rebeldia, a quebra dos padrões morais e institucionais (sim, a mentalidade revolucionária estava presente e atuante), e nem mesmo o amor poderia ser sacrificial, auto negador e cordial. Talvez a leitura de o “Apanhador no campo de centeio”, poucos dias antes, influenciou na aversão ao príncipe; pois, para mim, era impossível existir uma alma tão pura, benigna, tolerante e pacificadora como a dele... Haveria alguém assim no mundo? Dostoievski não estaria a construir um indivíduo utópico, insólito e extravagante? Quem se disporia a ser assim? Se angustiar e punir por não ser ainda melhor?... Em nada se parecia com o mimado e rebelde Holden, de Salinger. E isso pode ter pesado muito no meu desagravo.

         Havia ainda o fato de Míchkin ser uma personagem completamente despojada de vaidade, orgulho e, pode-se dizer, amor-próprio. A alcunha de “idiota” parecia cair-lhe bem demais, e a isso acabou por acostumar-se e, algumas vezes, reconhecer publicamente. Nem pessoas definitivamente asquerosas e perversas como Rogójin, Ippolit, Liébediev eram afastadas do seu convívio, tratando-as generosa e fraternalmente, perdoando-as mesmo sem que pedissem, enquanto tramavam às suas costas. Para mim, o pior de tudo era o príncipe saber quem eram e seus feitos, de não estar iludido quanto a qualquer um deles, e mesmo assim reservar-lhes clemência, misericórdia, compreensão. Se ao menos estivesse enganado ou desconhecesse suas índoles, ambições e condutas, eu entenderia; mas não era o caso, parecia que quanto mais íntimo de suas indignidades, mais permitia estarem à sua volta, rodeando-o à espreita.

         Pois bem, parte dessas sensações persistiram na segunda leitura, a diferença é que, tendo hoje uma cosmovisão cristã que não tinha à época, consigo entender os motivos pelos quais Dostoievski criou um personagem tão abnegado e altruísta. Ele é o molde, o exemplo de Cristo, e de muitos santos a permear a história. Nitidamente é padrão de santidade que o autor imprime, num momento histórico no qual as pessoas são cada vez mais interesseiras, egoístas e dispostas aos conflitos e vinganças. O príncipe Míchkin é um puro, de uma pureza quase ingênua mas sábia, incapaz de julgamentos apressados, de sentenças imediatas, de rancor e desforra. E assim, aos olhos dos homens comuns, não passa de idiota, incapaz de compreender as pessoas e suas ações, disposto a sacrificar-se pelos pecados alheios, sem qualquer esperança de ser reconhecido em seu esforço. Ele o faz por si mesmo, a sua ética e moral não estão associadas aos favores de outrem, mas exclusivamente pela sua incapacidade de aspirar o mal e ser incompreensível; como se ao presenciar a inaptidão das pessoas em decifrá-lo, em penetrar-lhe o íntimo, o insuflasse a entendê-los em suas desordem. Neste sentido, eles são os idiotas, em seus rompantes e desejos primitivos... Há de se lembrar também o fato do príncipe ter características do Dom Quixote de Cervantes, e até mesmo uma explícita alusão, apelidado por Aglaia, ao compará-lo com o “Cavaleiro Andante”; acabando por ser mais um motivo de zombaria e desprezo no seu círculo (a intenção de Aglaia não é de pilhéria, mas realçar características a tornarem o príncipe tão simpático e, talvez, romântico, aos seus olhos; entretanto, ninguém considera-o dessa forma).

Toda essa ligação religiosa com o cristianismo tem a finalidade de combater o niilismo, sendo aquele o antídoto para este. Em vários momentos, o príncipe discorre sobre o assunto postulando ao cristianismo a superioridade em relação a outros sistemas, em especial a única maneira de combater e erradicar o niilismo das terras russas. Talvez, por isso, em um mundo onde as correntes apontavam para uma existência sem sentido, onde tudo era infundado e reduzido ao materialismo imediato, ele defendia valores incompreendidos e impossíveis numa sociedade viciada pelas aparências e a confusão dos sentidos. Para ele, nada podia ser meramente aparente; nada poderia ser desconectado da essência humana que, em não poucos sentidos se ligava a Deus. Atacado por todos os lados, tentou resistir, mas até mesmo alguém desprendido e generoso se perde em suas dúvidas; não que elas se relacionassem à corrupção ou imperfeição do bem, mas se ele era capaz de consegui-la pelos seus próprios meios e esforços, se não havia nada mais que pudesse fazer a fim de colaborar para a manifestação das mais sublimes virtudes. Ele desejava ser bom não porque isso traria benefícios a si mesmo, mas os direcionava ao próximo, e era o fundamento da natureza humana.

A cena final do livro, em que ele afaga piedosamente a cabeleira de Rogójin, após este cometer desatino movido por vingança e orgulho, demonstra o quanto o príncipe se compadecia, e até certo ponto entendia, o sofrimento e as consequências de vidas tresloucadas, firmadas no individualismo, no egoísmo, na crença de nada ser importante, de não haver fundamentos, se não se pode alcançar... E se o alcança, qual a razão para se tê-lo? Resta, no fim, a loucura, os pecados, a transformar semelhantes em explícitos inimigos. E Míchkin enlouquece, não por si mesmo, mas pela incompreensão que, via de regra, leva-o a não entender a si; e os seus “sacrifícios” são mistérios, quando não ignorados são tratados com preconceito e violência.

Reler, portanto, O Idiota, fez-me encontrar elementos e pontos não identificáveis ou esquecidos nos longínquos anos da primeira leitura. Não é um livro fácil. Suas mais de 700 páginas não devem, contudo, tornar-se empecilho ou entrave para o leitor se privar de um livro magistralmente escrito, onde não se encontra o homem ideal, aos moldes ideológicos e comportamentais planejado neste tempo, como um quebra-cabeças planificado, montado com apenas um modelo de peças, sem se encaixar em nenhuma outra e produzir a imagem geral da humanidade. Dostoievski não produz mentes seriais, clones de um mesmo doador, mas destrincha, investiga, extrai o de mais verdadeiro, e também falso, a habitar este ser dual: indivíduos e suas gentes. Por isso, e o deleite de ver-se, de alguma forma e em alguma proporção, nas personagens  do velho e bom Fiodor somente pode trazer o conhecimento, a intimidade, da qual as gerações posteriores a ele se especializaram em negar, a privar-se; e, assim, como muitos se especializaram, criar um arquétipo de si mesmo, confundir-se e ignorar quem seja e o que seja.

Leitura imprescindível.   

______________________________ 

Avaliação: (*****)

Título: O Idiota

Autor: Fiodor Dostoievski

Tradutor: José Geraldo Vieira

No. Páginas: 712 

Editora: Martin Claret

Sinopse: "O idiota é uma das obras mais comoventes de Fiódor Dostoiévski. Abstrusa para os contemporâneos do escritor, mas atual e compreensível para quem a conhecer em nossos dias, ela conta a história de um jovem aristocrata russo que se atreve a defender o sublime ideal humanista numa sociedade regida pelas leis do livre comércio. Ovelha negra da alta-roda de São Petersburgo, o príncipe Míchkin é tachado de idiota em virtude das suas qualidades morais e acaba perdendo de fato o juízo."




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