Jorge F. Isah
A primeira vez que li “O Idiota” foi antes de completar meus dezoito
anos; um exemplar emprestado à Biblioteca Pública de Minas Gerais, quando os
livros eram realmente caros (ainda o são, mas não tanto como antes) e a
possibilidade de tê-los, mesmo por um par de semanas, era através dos poucos e
imprescindíveis acervos públicos, aos quais incluo o Sesc, Sesi, etc. Porém, em
BH, nenhum deles tinha o conjunto de obras tão vasto e diverso quanto a
B.P.E.M.G. Foi lá que tomei conhecimento de autores nunca citados, sequer
ouvidos, como André Gide, Sinclair Lewis, Salinger, Dos Passos, Maupassant,
Prost e Camus, entre outros. Boa parte da minha adolescência gastei-a em tardes
vasculhando as estantes e a folhear quase todos os livros ao alcance dos olhos
e das mãos. Podia-se levar apenas dois exemplares para casa, o que significava
a ida duas ou mais vezes por semana a fim de devolver e pegar outros volumes.
Com o tempo, e a experiência, comecei a tomar livros cada vez mais grossos, no
intuito de ir não mais de uma vez por semana. Há de se entender que as
condições de se arcar com o custo das passagens de ônibus, de casa ao centro,
era algo oneroso para um ginasiano morador da periferia. Minha mãe se esforçava
em custeá-las, mas não era justo expô-la a um sacrifício desnecessário. Por
mais de vinte anos fui habitué daquela casa, ao lado do antigo Palácio do
governo, na Praça da Liberdade. Posto isso, não o escrevo para me vitimar ou
coisa que o valha, mas fazer o leitor entender a importância da literatura em minha
vida; não fui o melhor leitor, com certeza, e nem sei se sou um bom leitor
hoje, entretanto era-me, assim como é, algo indispensável.
Acalentava, havia algum tempo, o desejo de reler “O Idiota”, e
apagar algumas das impressões absorvidas e que me fizeram, de certa forma,
odiar o protagonista, príncipe Liév Míchkin. Vou explicar: naquele tempo,
talvez a imaturidade ou arrogância, sei lá, o herói tinha de ser alguém capaz o
suficiente de ser dono do próprio nariz, não quanto à sabedoria ou capacidade
de escolhas lógicas e virtuosas, mas à rebeldia, a quebra dos padrões morais e
institucionais (sim, a mentalidade revolucionária estava presente e atuante), e
nem mesmo o amor poderia ser sacrificial, auto negador e cordial. Talvez a
leitura de o “Apanhador no campo de centeio”, poucos dias antes, influenciou na
aversão ao príncipe; pois, para mim, era impossível existir uma alma tão pura,
benigna, tolerante e pacificadora como a dele... Haveria alguém assim no mundo?
Dostoievski não estaria a construir um indivíduo utópico, insólito e
extravagante? Quem se disporia a ser assim? Se angustiar e punir por não ser
ainda melhor?... Em nada se parecia com o mimado e rebelde Holden, de Salinger.
E isso pode ter pesado muito no meu desagravo.
Toda essa ligação religiosa com o cristianismo tem a finalidade de
combater o niilismo, sendo aquele o antídoto para este. Em vários momentos, o
príncipe discorre sobre o assunto postulando ao cristianismo a superioridade em
relação a outros sistemas, em especial a única maneira de combater e erradicar
o niilismo das terras russas. Talvez, por isso, em um mundo onde as correntes
apontavam para uma existência sem sentido, onde tudo era infundado e reduzido
ao materialismo imediato, ele defendia valores incompreendidos e impossíveis
numa sociedade viciada pelas aparências e a confusão dos sentidos. Para ele,
nada podia ser meramente aparente; nada poderia ser desconectado da essência
humana que, em não poucos sentidos se ligava a Deus. Atacado por todos os
lados, tentou resistir, mas até mesmo alguém desprendido e generoso se perde em
suas dúvidas; não que elas se relacionassem à corrupção ou imperfeição do bem,
mas se ele era capaz de consegui-la pelos seus próprios meios e esforços, se
não havia nada mais que pudesse fazer a fim de colaborar para a manifestação
das mais sublimes virtudes. Ele desejava ser bom não porque isso traria
benefícios a si mesmo, mas os direcionava ao próximo, e era o fundamento da
natureza humana.
A cena final do livro, em que ele afaga piedosamente a cabeleira
de Rogójin, após este cometer desatino movido por vingança e orgulho, demonstra
o quanto o príncipe se compadecia, e até certo ponto entendia, o sofrimento e
as consequências de vidas tresloucadas, firmadas no individualismo, no egoísmo,
na crença de nada ser importante, de não haver fundamentos, se não se pode
alcançar... E se o alcança, qual a razão para se tê-lo? Resta, no fim, a
loucura, os pecados, a transformar semelhantes em explícitos inimigos. E
Míchkin enlouquece, não por si mesmo, mas pela incompreensão que, via de regra,
leva-o a não entender a si; e os seus “sacrifícios” são mistérios, quando não
ignorados são tratados com preconceito e violência.
Reler, portanto, O Idiota, fez-me encontrar elementos e pontos não
identificáveis ou esquecidos nos longínquos anos da primeira leitura. Não é um
livro fácil. Suas mais de 700 páginas não devem, contudo, tornar-se empecilho
ou entrave para o leitor se privar de um livro magistralmente escrito, onde não
se encontra o homem ideal, aos moldes ideológicos e comportamentais planejado neste
tempo, como um quebra-cabeças planificado, montado com apenas um modelo de
peças, sem se encaixar em nenhuma outra e produzir a imagem geral da
humanidade. Dostoievski não produz mentes seriais, clones de um mesmo doador,
mas destrincha, investiga, extrai o de mais verdadeiro, e também falso, a
habitar este ser dual: indivíduos e suas gentes. Por isso, e o deleite de
ver-se, de alguma forma e em alguma proporção, nas personagens do velho e bom Fiodor somente pode trazer o
conhecimento, a intimidade, da qual as gerações posteriores a ele se
especializaram em negar, a privar-se; e, assim, como muitos se especializaram,
criar um arquétipo de si mesmo, confundir-se e ignorar quem seja e o que seja.
Leitura imprescindível.
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Avaliação: (*****)
Título: O Idiota
Autor: Fiodor Dostoievski
Tradutor: José Geraldo Vieira
No. Páginas: 712
Sinopse: "O idiota é uma das obras mais comoventes de Fiódor Dostoiévski. Abstrusa para os contemporâneos do escritor, mas atual e compreensível para quem a conhecer em nossos dias, ela conta a história de um jovem aristocrata russo que se atreve a defender o sublime ideal humanista numa sociedade regida pelas leis do livre comércio. Ovelha negra da alta-roda de São Petersburgo, o príncipe Míchkin é tachado de idiota em virtude das suas qualidades morais e acaba perdendo de fato o juízo."
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