26 fevereiro 2020

O Filósofo e a Teologia - Étienne Gilson










Jorge F. Isah



O livro escrito por Étienne é uma delícia de se ler, mesmo para um não iniciado em filosofia como eu. É quase uma confissão, por isso, a obra tem um caráter autobiográfico, de depoimento, de esclarecimento, de explicação.

É daqueles livros difícil de se largar. Dá até vontade de abandonar os outros afazeres até terminá-lo. Não somente pela fluência narrativa, mas porque tem de ares de confessionalidade, íntimo e generoso compartilhar experiências, emoções e descobertas. 

Deixemos, portanto, que o autor esclareça o significado da sua obra: "O assunto próprio do livro é a aventura de um jovem francês que, educado na religião católica, deve toda sua educação à Igreja e toda sua formação filosófica à Universidade" (pg 13).

Desta forma, tem-se o desenrolar, segundo o autor, do fio que o conduziu à filosofia e a se tornar filósofo, por meio da teologia. Como testifica, ele próprio, ao afirmar que uma vez cristão, todos os outros campos científicos têm de se curvar à fé cristã: "Ela é teologia, uma vez que se fundamenta em nossa fé naquilo que Deus pessoalmente nos diz acerca de sua natureza, de nossos deveres em relação a ele e de nosso futuro. Se a filosofia deve intervir, ela só falará quando chegar a sua vez, mais tarde, e como jamais, em nenhum caso, ela terá o poder de nada acrescentar aos artigos de fé, nem de retirar qualquer elemento que seja, pode-se dizer que, na ordem do conhecimento para nossa salvação, a filosofia virá não somente mais tarde, mas muito tarde" (Pg 19).

O que se pode ser acrescentado? 

Capítulo interessantíssimo é o que trata da "Desordem" (cap III). 

Entre outras coisas ele analisa o kantianismo e sua tentativa de anular o tomismo, e a flagrante derrota daquele. 

Étienne se declara claramente escolástico; e faz uma defesa de Tomás de Aquino diante da impossibilidade de compreensão por alguns de seus detratores. 

Mas o que mais me chamou a atenção foi uma crítica de certo padre a Tomás de Aquino, acusando-o de afirmar que "Deus é desconhecido", e mais, de que ele disse ser Deus "um sei lá o que:'Deus est ignotum'"

Naquele instante, veio-me à mente a pessoa de Cristo, e pude perceber o quanto é ridícula tal afirmação. Não me importa se está metafisicamente correta, se está epistemologicamente correta, ou em algum ponto do conhecimento humano pode estar correta. O certo é que, biblicamente, ela é falaciosa, e tem de ser rejeitada prontamente. Porque Cristo é a imagem e a plenitude de Deus. Somente por ele podemos conhecer a Deus verdadeiramente, sendo o Evangelho a sua palavra. Portanto, é possível ao homem conhecer Deus por intermédio de Cristo. Foi o que Paulo nos disse: "O qual, sendo o resplendor da sua glória e a expressa imagem da sua pessoa, e sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder" (Hb 1.3). 

Ah! que alegria ao poder olhar para o meu Senhor e Salvador reconhecendo nele o próprio Deus, não apenas uma imagem disforme, um espectro, mas a essência de tudo o que Deus é! 

Meus olhos encheram-se de lágrimas, e meu coração de viva esperança, por saber que o verei face a face, um dia, e de que honrá-lo pelo tempo que me resta neste mundo, tem de ser o meu dever e prazer. 

Não sei se o conceito de incognoscibilidade divina de Aquino chegou ao ponto em que é acusado de chegar ao "Deus est ignotus", mas o certo é que se o fez, o fez erroneamente, pois Deus é conhecido por seus filhos, na pessoa de Jesus Cristo. 

Mas entendo que há "entremeios" entre os meios filosóficos que justifiquem essa suposta afirmação, por isso, concordo com Gilson: a fé cristã virá sempre primeiro, e a filosofia depois, bem depois, é verdade. 

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A partir do ensino do catecismo católico, no transcorrer de 100 anos, aproximadamente, Étienne nos revela as influências que determinaram uma queda sensível na forma de ensinar.

Ele argumenta que "a doutrina permaneceu a mesma, a ordem ficou diferente" (pg 75). O que entendi, foi uma mudança nos pressupostos, antes firmados na razão escriturística, pela revelação do próprio Deus em se autodenominar o único Deus. Depois de algumas décadas, numa lógica evidencialista, em que se busca a razão ou razões para se crer à margem da revelação; ou seja, simplesmente, se basear a revelação nas evidências cientificas, como se essas fossem, inexoravelmente, infalíveis, inerrante e ocupassem o lugar de primazia ante a revelação divina. 

Étienne censura abertamente essa mudança no enfoque do ensino:"Cedendo nesse ponto, como em tantos outros, à ilusão de que o espírito democrático consiste em tratar os cidadãos como se eles fossem, em princípio, uns débeis mentais, decidiu-se por rebaixá-la (a teologia) ao nível das massas, ao invés de elevá-las ao nível dela" (pg 72).

É mais ou menos o mesmo processo que aconteceu e está em cristalização entre os evangélicos: a ignorância teológica quase absoluta; mas mais do que isso, o desprezo e a insignificância com que a tratam. 

A afirmação do catecismo, que o autor usa como exemplo e endossá-a (Eu creio que há um Deus porque ele mesmo nos revelou sua existência), parece-me prova do pressuposicionalismo de Étienne. Não sei se é possível um católico, escolástico, ser pressuposicionalista, já que não entendo lhufas de Escolástica; porém, suas afirmações e a defesa da revelação especial até mesmo em relação a revelação natural (aceita no seio católico como superior à Escritura) parecem garanti-lo como pressuposicionalista. Não é uma certeza, nem o autor o faz claramente, mas há indícios mínimos, diga-se, a indicar a questão. Certamente, precisaria estudar mais outros livros de Étienne para certificar-me dessa condição. 

Em suma, o autor defende a superioridade da fé sobre a filosofia, e de que a filosofia, mal aplicada e calcada em falsos fundamentos, deteriora e corrompe a teologia e, por conseguinte, a fé: "Custe o que custar, a fé possui antecipadamente toda a substância daquilo que o filósofo jamais conhecerá a respeito de Deus e algo mais... o intelecto não sabe e não crê na mesma coisa, sob o mesmo ponto de vista [filosófico e teologal], pois a filosofia nada sabe da existência do Deus da Sagrada Escritura. A filosofia sabe que existe um deus, mas nenhuma filosofia pode sugerir a existência daquele Deus específico" (pg 87-88). 

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Étienne assevera que é necessária a revelação cristã (provavelmente ele inclui aqui a autoridade da ICAR e a tradição juntamente com a Bíblia) para que se possa crer no Deus cristão, assim como é impossível e sem sentido imaginar que se possa conhecer esse mesmo Deus de outro modo que não pela fé em sua própria revelação. 

Ele baseia a fé no sacramento do batismo, e em momento algum fala sobre novo-nascimento ou regeneração, no que discordo potencialmente da sua definição de fé, contudo, no atacado, ele está correto, e desmascara os vários movimentos infiltrados na igreja e que acreditam ser possível um "cristão", que não crê na revelação cristã, ou um "cristão" sem qualquer traço de Cristianismo ortodoxo. Existem cada vez mais pessoas se autointitulando cristã sem se convencer ou defender os princípios cristãos estabelecidos nos últimos dois milênios, que vão desde a rejeição à doutrina da Trindade até as várias formas modernas de arianismo (algumas explícitas, outras nem tanto; mas todas com a mesma origem em Ario). Chega-se ao cúmulo de se desprezar ou ignorar os relatos dos evangelhos como fontes falsas ou insuficientes para se conhecer Cristo. 

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Outra afirmação interessante, e que demonstra o criticismo do autor à nova forma de catolicismo, é o fato dele dar razão a um pastor calvinista que afirmou ser a metafísica (revelação natural) "incapaz de fundar o conhecimento religioso" (pg 84). Entendo que a metafísica não cuida especificamente da revelação natural, mas da sua relação com as questões últimas da vida e do mundo, em geral. 

Étienne argumenta que se os calvinistas pensam que o catolicismo defende um deus genérico e geral, e não o Deus pessoal e bíblico, é porque, em algum momento, deixou de ser fundamental o conhecimento propriamente religioso: "Se há calvinistas acreditando que a doutrina da Igreja católica lhes proíbe reconhecer essa verdade (de que apenas pela revelação especial se conhece o Deus bíblico), ou que ela a ignora, alguns professores mal informados podem ser responsabilizados pela ilusão deles" (pg 85).

O pensamento de Gilson, quanto ao assunto, pode ser definido assim, em suas próprias palavras: "A metafísica pode apresentar à fé certos preâmbulos, mas somente a palavra de Deus pode fundamentá-los" (pg 84).

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Étienne faz uma defesa de Tomás de Aquino e da sua escolástica, apaixonadamente, o que não quer dizer de maneira desarrazoada, tola. 

Interessante que se utiliza de um filósofo, Henri Bergson, que não era cristão nem religioso (de origem judaíca) para uma defesa de Aquino a partir da defesa de Bergson.

Gilson diz que entre os filósofos gregos e os filósofos modernos houve apenas um padrão de filosofia: a escolástica ou cristã (ele, como tomista, equipara o escolasticismo com o Cristianismo). 

Porém, a filosofia cristã não produziu o Cristianismo, nem mesmo a alegação de filósofos não-cristãos de que Aristóteles é quem determinou as bases do Cristianismo, especialmente o medieval. Ele afirma que a teologia cristã precede a qualquer filosofia, inclusive a escolástica, a qual se apresenta muito mais como teologia, assim como a filosofia de Aquino está a serviço da sua teologia, e procede dela. 

Um trecho que confirma essa ideia é: "Foi de tanto tratar São Tomás como filósofo que eu pude finalmente reconhecer que ele não filosofava como os outros... Não se pode interpretar uma teologia como se fosse uma filosofia, mas a maneira de estudar em um teólogo o que ele chama de teologia é igual à maneira de estudar como um filósofo concebe a filosofia... É comum pensar, ou pelo menos dizer, que toda conclusão cujas premissas são conhecidas pela única luz da razão é necessariamente filosófica. E isso é verdade, mas logo se acrescenta que, uma vez que esse tipo de raciocínio é filosófico, ele não poderia encontrar espaço na teologia. Uma outra maneira de expressar a mesma ideia é dizer que toda conclusão teológica é tirada de um silogismo no qual pelo menos uma das premissas é amparada pela fé. 

Essa maneira de entender a teologia é verdadeira naquilo que ela afirma, mas insuficiente naquilo que ela nega. É certo que a matéria da teologia sobrenatural seja o revelado propriamente dito, ou seja, aquilo cujo conhecimento não é acessível ao homem senão pela via da revelação. Ora, o revelado como tal só pode ser recebido pela fé... Mas a questão não é só isso, pois o fato de uma conclusão de fé não poder pertencer à filosofia não implica que uma conclusão puramente racional não possa pertencer à teologia... é da essência mesma da teologia de tipo escolástica apelar com frequência e liberdade para o raciocínio filosófico. É pelo fato de recorrer à fé que ela é uma teologia escolástica, mas é pelo uso característico que faz da filosofia que ela é uma teologia escolástica" (pg 103-104). 


Ao meu ver, é clara a noção de preeminência da teologia frente à filosofia. Em muitas partes do livro (o autor gasta dois ou três capítulos nesta questão), há a certeza de que a fé cristã somente ser possível, verdadeiramente, a partir da revelação, e de que nenhuma filosofia, por melhor que seja, pode defini-la ou delineá-la. É possível que ela a interprete e explique, mas jamais seja a causa ou origem da fé. Somente a Escritura é capaz de ser essa origem, ainda que Étienne defenda a infalibilidade da ICAR e da tradição. 

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Ao defender Tomás de Aquino e a filosofia escolástica, Étienne está a rejeitar a afirmação "moderna" de que, dos gregos até Descartes, não havia filosofia, mas uma filosofia atrelada à teologia, de tal forma que a filosofia estava aprisionada na teologia cristã e se desfigurava como tal; e de que qualquer volta aos princípios cristãos de filosafar representaria uma nova escravidão intelectual. 

O que os filósofos modernos querem reivindicam é o renascimento da filosofia, por suas mãos: mas seria possível desprezar os muitos séculos em que a filosofia foi sustentada e impregnada pelo pensamento cristão? Há uma "nova" filosofia sem nenhum resquício do pensamento cristão? Completamente original e a parte dele? Ou os "novos" filósofos se apropriaram de muito da filosofia cristã e, injustamente, não lhe deram o devido crédito? Antes a desprezaram por puro preconceito? 

E, por que o pensamento moderno pode se utilizar de várias bases do pensamento humano (inclusive do pensamento cristão), e a filosofia cristã não o pode? 

O que temos é o nítido caráter de desqualificar qualquer forma de pensamento a partir da Escritura, da fé cristã, e assim criar um ineditismo que não existe, mas engana a muitos.

É o que o autor nos diz: "É evidente que inutilmente se buscariam nela (fé cristã) instruções relativas à maneira de filosofar própria a mentes estranhas à fé numa revelação sobrenatural. Que estas tirem suas conclusões, o que é legítimo, mas nada justifica sua recusa em levar em consideração as doutrinas concebidas num espírito cristão... A origem do pensamento não diminui em nada o seu valor" (pg 186).

Bem, quanto a isso, tenho sérias dúvidas, pois, ao meu ver, o pensamento cristão se baseia sobretudo na revelação divina, o que o torna superior a qualquer pensamento humano, logo, nenhum pensamento em bases não-cristãs pode ter um valor em si mesmo, a não ser o de revelar-se como engano e falácia diante da verdade, da revelação especial divina: a sua palavra.

É evidente que estou a falar como cristão, e não rejeito o fato de haver alguma verdade nos pensamentos não-cristãos, mas, de maneira alguma, acredito que essas verdades estejam alheias ou, em seus princípios e fundamentos, surjam fora do escopo cristão. Deixando mais claro, a própria ideia de um não-cristão, seja filosófica ou teologicamente, construir um pensamento ou conceito verdadeiro indica a sua origem na essência do cristianismo: a revelação do Deus bíblico. Seja por assimilação, seja por usurpação, seja porque todos os homens, em menor ou maior grau, têm fragmentos do Imago Dei. São, via de regra, os efeitos noéticos do pecado na alma humana a impedi-lo de reconhecer toda a verdade, mas não de reconhecer alguma verdade. 

Mas vale a afirmação de Gilson como uma maneira de mostrar o quanto qualquer pensamento ligado à fé cristã tem um tratamento discriminatório e injusto por parte dos não-cristãos, que sequer o reconhecem como pensamento legítimo em si mesmo, numa forma fraudulenta de autoexaltação.

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O que mais ficou evidente no livro foi a defesa que Gilson faz da supremacia da fé cristã, da revelação proposicional e especial, sobre qualquer forma de filosofia e ciência, nos seus próprios dizeres: "Por mais úteis que a ciência e a filosofia possam ser à filosofia cristã, ajudando-a a constituir-se a si mesma como ciência, nem uma nem outra jamais acrescentarão nada à verdade da fé, que as coloca a seu serviço. As partes caducas de uma teologia são precisamente aquelas que ela teve de tomar emprestadas da ciência de seu tempo. A mesma observação se aplica às filosofias" (pg 234). 

Alguém poderá dizer que ele está a falar de filosofia, não de teologia. Mas há de se entender que Étienne não considera dissociadas e conflitantes a teologia e filosofias cristãs, antes estão intrínsecas no mesmo corpo. O que ele estabelece é uma hierarquia, onde a segunda está em direta dependência da primeira, e esta da revelação divina. Senão, vejamos: "A filosofia cristã é uma historia que se desenvolve a partir de um termo imutável, situado fora do tempo e, por isso, sem história. A filosofia cristã é o desenvolvimento de um progresso a partir de uma verdade que não está, ela própria, sujeita ao progresso. Essa verdade procede da natureza de Deus, que não muda, mas o mundo por ela iluminado não pára de mudar;o mundo da invenção científica, o mundo da invenção moral, social, econômica e política, da invenção artística, enfim, tantas contribuições sem cessar renovadas e às quais a sabedoria cristã deve prestar a mais afetuosa atenção, para purificá-las e delas extrair o sentido verdadeiro, benfazejo e até mesmo, uma vez purificado, salvador" (pg. 235). 

O entendimento da fé cristã como o instrumento transformador e regenerador não somente do indivíduo, mas da própria sociedade, é algo com o qual acredito, nós, cristãos, devêssemos dar um grau de maior importância. E Gilson se dispõe a explicar detalhadamente esse pensamento, sendo, portanto, revelador, e extraindo do Evangelho sua principal mensagem: a de ser ele o único meio pelo qual Deus operará por seu Espírito na alma/mente do homem natural, trazendo-o cativo a Cristo. 

Bem, por vários aspectos, a leitura deste livro me foi surpreendente.

Primeiro, por perceber como um católico pode se aproximar tanto da verdade bíblica, ainda que, provavelmente, ela não lhe seja de valia do ponto de vista prático, no que posso estar errado; e não é um julgamento mas uma suposição. 

Segundo, o fato de um filósofo se ver tão atrelado à fé bíblica, à revelação escriturística, de tal forma que mesmo a sua filosofia está sempre em sujeição a ela. 

Terceiro, não imaginava que Tomás de Aquino tinha tamanha importância no pensamento cristão, e de que, segundo o autor, o tomismo fosse a prova de que a filosofia não é verdadeira em si mesma, mas depende da verdade revelacional para se constituir como tal. Assim, estará sempre em subserviência à teologia, do contrário, não encontrará em si mesma as respostas às perguntas que faz. 

Quarto, Étienne é como um maestro a reger a nossa leitura. Ele pontua os textos com exemplos e analogias que nos faz entender o que é complexo; sua escrita é fluente, cativante, e nos faz saborear cada palavra. 

Com isso não estou dizendo que concordo com todas as suas proposições, não é isso! Como católico, ele tem algumas posições com as quais não concordo, mas de forma alguma tiram o brilho do seu texto. Digamos que eu fosse capaz de escrever como Étienne, e ele me lesse, perceberia diferenças, por causa do meu protestantismo, mas certamente concordaria com a maioria do meu pensamento. 

A reclamar o acabamento pobre e barato do livro. Papel de baixa qualidade, capa simples, sem orelhas, poucos erros de digitação; mas, para um livro nada barato, é um descuido e tanto!

Felizmente, o texto de Étienne Gilson supera todas as deficiências da edição, e com muita, mas muita folga. 

Se você ainda não leu, leia "O Filósofo e a Teologia"; caso não leia, arrependa-se! (rsrs)

Uma última transcrição para finalizar: "Bem longe de achar irracional minha confiança absoluta na verdade dessa metafísica cristã, o estudo que continuo a fazer dela me confirma sempre mais na certeza de sua perenidade.

Como se poderia acreditar que esse belo cargueiro, que há tantos séculos percorreu tantos caminhos sem nunca mudar de rota, esteja hoje prestes a trocar de direção ou chegar ao fim da linha? Nem a energia lhe falta para continuar sua viagem, nem a assistência daquele que prometeu estar conosco até a consumação dos séculos" (pg. 239).

À bientôt!


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Avaliação: (****)

Título: O Filósofo e a Teologia

Autor: Étienne Gilson

Páginas: 245


Sinopse: "Étienne Gilson (1884-1978), nascido em Paris, professor renomado da Sorbonne, Strassburg, Toronto Harvard e Louvain, é por muitos corretamente chamado de o grande medievalista do século XX. Durante sua longa trajetória publicou algumas das mais influentes obras do pensamento cristão contemporâneo, especialmente na sólida retomada do legado do Tomás de Aquino Quem se interessou e ainda se interessa pelos estudos de história de filosofia e das suas interfaces com a Teologia, não deixou nunca de recorrer aos livros deste cristão (com orientação católica) e que teve uma recorrente preocupação: há uma crise de Metafísica nos nossos tempos e isso deve à equivocada secundarização das concepções tomistas."




01 fevereiro 2020

O fracasso humano em "Um Homem Bom é Difícil de Encontrar"






Jorge F. Isah


O que dizer de Flannery O'Connor?

Fui levado à leitura pelos comentários entusiastas do Prof. Rodrigo Gurgel e do meu amigo, ainda que um amigo intermitente, Leonardo Galdino. Comprei-o, e amargou a estante e o envoltório por três longos anos. Antes deles, nunca ouvira falar da autora, e devo-lhes a gratidão de tê-la me apresentado. 

Quando, enfim, no final de 2019, tomei-o em mãos, arranquei-lhe o plástico, e comecei a leitura, vi-me diante de uma obra impactante, brutal, macabra, em alguns momentos até mesmo fantástica, mas suficientemente bela, lírica e, não se assuste, espiritual. Sim, Flannery descreve a incapacidade humana de alcançar a paz interior, e entre os seus semelhantes, mesmo que a busque com ânsia e persistência. Via de regra, o homem é mau, em sua soberba, independência, autossuficiência, egoísmo e na frieza do trato comum. Não parece haver solução; e a morte, algumas vezes, pode ser um alívio, até mesmo para o leitor compadecido com a dor, a angústia e o sofrimento da(s) personagem(ns). 

Vivendo e descrevendo pessoas, lugares e situações dos EUA sulista, a autora perpassa pela vida de agentes e indolentes, com a candura de uma madre ensinando repetidas vezes aquilo que o aluno teima em não aprender. Todos somos pecadores, em maior ou menor grau; e se um bandido pode matar friamente uma velhinha com tiros no peito, enquanto ela se considerava, por toda a vida, a si mesma uma alma boníssima. Diante da morte iminente, os pecados são-lhe expostos; percebe que, ela mesma, não é muito diferente do facínora. E assim, sonhos são desfeitos; desejos rejeitados... Um círculo vicioso leva o homem a se prender na própria carência, que pouco ou nada pode colaborar para a sua interrupção. Quase nada sobra em um mundo fadado ao fracasso, se a busca de salvação encontra-se no homem em vertiginosa queda. 

As pessoas são de um automatismo absurdo, de uma indiferença desagradável, ou uma proximidade doentia. Um dos exemplos encontra-se no conto “Gente boa da roça”, onde uma jovem loura e corpulenta, que perderá uma das pernas na infância, após a maioridade, troca o nome de batismo “Allegra” por “Hulga”. A mãe não conseguia entender a opção da filha, por apropriar-se legalmente de um nome que a remetia a “um casco largo e cor de pulga de um navio de guerra. Recusava-se a usá-lo”. A filha demonstrava rejeitar os valores familiares, sem qualquer apego ou gratidão pelo cuidado e esmero que a mãe devotava. Ela declinava de qualquer convenção familiar ou social, colocando-se em posição arrogante, orgulhosa de seus feitos, ainda que fossem uma proteção natural para a sua deficiência. Mas tudo desmorona com a chegada de um caixeiro-viajante. Que planeja humilhá-la, com um plano ignóbil de roubar-lhe o membro artificial. 

Se o intento foi minuciosamente planejado e aplicado, a fim de dar o golpe, a vítima, insensível, dura, orgulhosa de seus diplomas e cultura, não é menos inocente. Na verdade, ela merecia cair no ardil, pois considerava a sua razão e intelecto o suficiente para compensar a perna perdida na infância; e de torná-la superior, elevada, diante dos seus semelhantes. Se faltava-lhe um membro, sobrava o desprezo às pessoas, a Deus, e a si mesma (ainda que, nesse aspecto, não tivesse a percepção suficiente para compreendê-lo); o orgulho gélido com que se autoexaltava, desdenhando da própria mãe, da empregada (uma mulher que tinha duas belas filhas e uma paixão lânguida por tragédias, doenças crônicas e incuráveis) e de suas demais relações, tornavam-na não a mais esperta das mulheres, como supunha, mas uma presa fácil nas dissimuladas intenções do jovem vendedor. 

Nos momentos finais, sem poder se locomover, ouviu o algoz lançar-lhe em rosto a sua estultice, enquanto guardava a prótese na valise. Ele também é um incrédulo, arrogante, explorador de velhinhas e mulheres ingênuas, orgulhoso dos seus feitos, impenitente, vendendo Bíblias e livros religiosos como se um religioso fosse, não passando de um vigarista. Mas aqui é colocado em xeque a fragilidade do racionalismo, como âncora das virtudes humanas e da ostentação, quando os adeptos são prosélitos, dísticos de otário. 

Ainda assim, a aleijada queria um relacionamento. Desprezando a mãe e conterrâneos, é seduzida pelo jovem, quatorze anos mais novo, e o apelo que ele faz, à sua maneira, a beleza de Hulga. No fim das contas, toda a pompa intelectual, o cuidado racional, o ceticismo como estilo de vida, sucumbiu ao mais comum dos rogos: a vaidade. A sinceridade dos românticos deu lugar à lábia do astuto, a arrancar a confiança, a intimidade, guardada estoicamente na fortaleza da alma da mulher. Entretanto, o que considerava o alicerce do caráter, foi a sua fraqueza, o calcanhar de Aquiles. A força não estava na confiança, mas na inveja, e nela não existe pujança, mas debilidade. E a debilidade acaba por tomar-lhe o cuidado, o distanciamento necessário para reconhecer no estranho cafajeste. 

Mas ela não queria ver a realidade, nem de si, nem dele; de, por algum motivo oculto, não haver a menor possibilidade de imperfeição na relação... Pouco a pouco ela se encanta, abre a guarda, se submete, crê. Bastaria o arrependimento, ver-se como realmente era, para não ser tragada na patifaria. Soberba e queda caminham juntas; autoengano é a própria morte, se não se desperta do letárgico delírio, do orgulho, e das mentiras incansáveis que consideramos reais. Indefesa, nada pode fazer diante da  ridícula exposição, enganada por um garoto iletrado, mas astuto. E a constatação dolorosa do seu erro a silencia. Não mais apela à civilidade, ao bom-senso; vítima de si mesmo e à mercê do próprio esnobismo. A sua fé cai por terra, desbarata-se, como castelo de areia em meio à tormenta. 

Não sabemos o que aconteceu depois, enquanto o jovem trapaceiro se afastava triunfante do celeiro, onde abandonou-a solitária. Mas, certamente, se ela não reconheceu os erros e a incapacidade de autorredenção, apenas asseverou-se a amargura e o ressentimento por uma vingança, sem perdão. E o ceticismo certamente tomou-a de si mesma: não era confiável, nem suficiente. Da parte dele, sua revanche era itinerante; jamais passaria disso, da mesma forma que o cego somente pode ver a escuridão. 

Flannery trata, via de regra, da impossibilidade humana de apagar as manchas do pecado original, enquanto o homem labora incessantemente para extinguir de si o “Imago Dei”, como se o negar a Deus e o seu auxílio pudessem impedi-lo da miséria e desgraça nas quais sucumbiria. 

Não é um livro triste, não premeditadamente triste. Chega a ser engraçado em vários momentos. O desacerto das relações humanas pode resultar em leveza e divertimento. Também não é um livro sisudo, amargo, pois a autora indica um caminho em meio à estranheza de suas histórias. E nada disso é pouco; quando se está às voltas com a vulnerabilidade e desequilíbrio humanos, enquanto se acredita soberano de si mesmo. Talvez, por isso, ela insista em afirmar no título, e em um dos contos, que “Um homem bom é difícil de encontrar”. Sem Deus, o homem é o que é, e não pode deixar de sê-lo, por mais simplório que isso possa parecer.



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Avaliação: (****)

Título: Um homem Bom é Difícil de Encontrar

Autora: Flannery O'Connor

Editora: Nova Fronteira

No. Páginas: 224 

Sinopse: "Um homem bom é difícil de encontrar e outras histórias, lançado em 1955, é a mais famosa de todas as obras de Flannery O’Connor e aquela que a consagrou como uma das maiores escritoras do século XX. Enraizados na tradição gótica do sul dos Estados Unidos, os dez contos aqui reunidos revelam uma visão de mundo um tanto peculiar, em que o grotesco, o simbolismo religioso, o humor, a violência, a presença da graça divina e situações excepcionalmente tragicômicas se mesclam para revelar as complexidades do comportamento humano e, acima de tudo, a busca dos homens pela redenção"