31 janeiro 2022

Prefácio ao livro "Debaixo de um carvalho em Ofra", de Luiz Guilherme Libório

 




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Foi com muita alegria, logo após concluir “Debaixo de um carvalho em Ofra”, saber da disposição do poeta e irmão, Luiz Libório, em ler e prefaceá-lo.

Tomei conhecimento desse nobre e talentoso escritor pelos meios mais triviais possíveis, em nosso tempo: as redes sociais. Por um daqueles “milagres”, raras vezes disponibilizados pelo Facebook, tive acesso às suas poesias, diga-se de passagem, são lavras da melhor estirpe (aconselho, a quem ainda não leu, fazê-lo sem perda de tempo); então, primeiramente conheci a obra, e depois o seu autor.

Para não deixar esta introdução longa, resumirei a minha sensação e reação ao receber o prefácio, disponibilizado abaixo: senti-me honrado, feliz e, sobretudo, penhorado, pela generosidade, beleza e sensibilidade com a qual analisou o livro. Como costumo dizer aos amigos mais íntimos, tenho certeza de, muitas vezes, a melhor parte dos meus livros serem de “terceiros”, sem nenhuma falsa modéstia. E este é o sentimento ao ler o preâmbulo de Libório. Portanto, sem mais delongas, dou-lhe as suas palavras , antes me dadas, mas que agora são também de você, doadas pela sublimidade de alguém que ama a arte, e tira dela algo não apenas melhor, mas esplêndido.   

 

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O tempo e seu contrário, a poesia

  

O que em nós está fora do tempo? Não sei o que um dicionário diria, se algo ele pudesse dizer, mas lendo “Debaixo de um Carvalho de Ofra”, livro do caro irmão Jorge F. Isah, e lendo-o à luz do livro universal de toda a criação incalculável, o que em nós está fora do tempo é a poesia (isto é: a eternidade).

Digo isso porque os poemas que neste livro são temporais apresentam-se tanto ao relatar algumas personagens sem nome (como a garota de "Suplício de uma saudade") como outras personagens nomeadas (Rita Hayworth em "tempo das amoras silvestres", por exemplo). Assim, haver nome, não haver, são referências que cabem apenas ao lapso de cada momento: à poesia importa que todos que passam se chamem eternidade.

E, como se também fosse um nome de personagem, “Debaixo de um Carvalho de Ofra” relata-nos a ambiguidade de estar no tempo e falar do que está fora. O carvalho, como sabemos, é uma árvore longeva (pode atingir um milênio de vida) e sentar-se sob sua sombra para guardar-se do sol forte ao meio-dia é sentar-se à sombra da eternidade para não ser queimado pelo sol dos dias que passam.

O posfácio, como integrante da obra, revela-nos outro movimento coerente com a temporalidade que marca a pele destes poemas: Jorge esteve internado por 36 dias logo antes de terminar este livro, 36 dias esteve separado dos seus amigos e familiares por conta da proibição de visitas durante a pandemia de Covid-19. Estar, durante tanto tempo, longe das referências amorosas da vida pode enlouquecer o tino espiritual de uma pessoa. A não ser que esteja sob a sombra de um carvalho em Ofra, isto é, sentado à sombra da eternidade.

“Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo, à sombra do Onipotente descansará. Direi do Senhor: Ele é o meu Deus, o meu refúgio, a minha fortaleza, e nele confiarei. Porque ele te livrará do laço do passarinheiro, e da peste perniciosa. Ele te cobrirá com as suas penas, e debaixo das suas asas te confiarás; a sua verdade será o teu escudo e broquel. Não terás medo do terror de noite nem da seta que voa de dia, nem da peste que anda na escuridão, nem da mortandade que assola ao meio-dia.”  (Salmos 91:1-6)

Desta forma, o tempo de angústia trouxe à luz este livro que evidencia, mais do que a tristeza passada, o cuidado de Deus no momento triste; como se uma saciedade infinita só pudesse vir de uma necessidade maior, porque conhecemos o valor daquele que cuida no momento que precisamos desse cuidado.

Se nunca ficássemos com sede, por exemplo, não conheceríamos o prazer de beber água depois de horas caminhando. Do mesmo modo, se não tivéssemos problemas, não conheceríamos o prazer da solução deles e nem a saciedade que há em agradecer a Deus por isso.

Assim, esta obra atesta o valor de reconhecermos a grande importância do alimento no tempo da fome – ou, como dito no poema "O Liame do Regalo",  “que é a comida, senão o prato vazio?”

Há tempos de alegria, há tempos de tristeza; mas a vida, em Cristo, é eterna.

“Na verdade, na verdade vos digo que quem ouve a minha palavra, e crê naquele que me enviou, tem a vida eterna, e não entrará em condenação, mas passou da morte para a vida.” (João 5:24)

 

                                  Luiz Guilherme Libório Alves da Silva*

 

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*Página do autor: https://www.facebook.com/luizliborioalves 


24 janeiro 2022

Anna Kariênina - Leon Tolstói: Em busca de sentido

 



Jorge F. Isah


Depois de tantos anos, somente agora decidi-me a ler um livro de Tolstói. E não comecei pelo mais famoso, “Guerra e Paz”, mas pelo não menos famoso “Ana Kariênina”. Algo que sempre me desmotivou a lê-lo foram dois "entraves". O primeiro, não sei por que isto sempre me veio à cabeça, imaginei que ele fosse um "rival" literário de Dostoievski, assim como o Piquet foi rival do Senna na F1 (sic), e por aí afora (de alguma maneira, a juventude tem em mente dividir tudo em disputas; uma pena, já que a vida vai muito além do reducionismo tolo, em qualquer idade). Leio o "Dosty" desde a adolescência, e nutri durante anos um certo desprezo por Tolstói; o que acabou por agravar-se a partir da descoberta de Charles Bukowiski que também não gostava do Leon, e reputava o “Fiodor” o maior entre todos os escritores em todos os tempos, esse é o segundo motivo. Parecendo confirmar minhas suspeitas de "rivalidade" entre os dois gigantes da literatura russa; e a me isolar, por décadas, de Liev (um tipo de privação literária...). 

O fato é que esquivei-me o quanto pude daquele, até o derradeiro momento. Penso que, hoje, certos autores não são "ilegíveis", e não há como fugir da necessidade, e por que não o prazer, de lê-los. Tolstói é um deles, clássico, como o é Balzac ou Dickens, por exemplo, e para citar apenas dois contemporâneos do russo.

Falando de Anna Kariênina, a narrativa é fluída e de leitura agradável. No início, pensei, logo após as primeiras páginas: é continuar e esperar para ver o que o russo tem guardado na manga... E tem de ser coisa muito boa, pois mais de 800 páginas de “enrolação”, somente o “Dosty” consegue fazer com maestria. Contudo, a despeito da imensa habilidade do autor, há momentos em que a trama parece-se muito com as novelas românticas dos escritores de best-sellers (é claro, estou hiperbolizando, pois não é possível, nem de longe comparar um e outros), onde há ingredientes para todos os gostos. Há excessos de palavreado e descrições em profusão, algumas desnecessárias, em situações que poderiam ser resumidas. Entendo que ele queira deixar mais claro do que água, de maneira inapelável, o caráter de suas personagens e dos eventos nos quais participam; existe, porém, uma forma excessiva, quase repetitiva, em repisar e asseverar essas informações. O grande número de personagens secundários deixá-a delongada, encompridada, não diria arrastada, mas o leitor comum pode, certamente, ficar um pouco impaciente.

Não direi que os tais “excessos” tornam a leitura pouco proveitosa, de uma forma geral, posto a familiaridade e o interesse para com os personagens diminuir sensivelmente essa sensação. Talvez, e apenas talvez, um corte de 10% no volume final do texto representaria maior fluidez, diretamente ligada a uma objetividade igualmente maior; mas quem sou eu para ensinar escrita a um dos maiores gênios literários de todos os tempos?... É apenas a reflexão de um leitor preocupado com a sonegação desta geração, e das futuras, em se privar de experiências tão marcantes e profundas ao negar-se ler um dos clássicos.

Tostói tem muitos méritos, inclusive da descrição e apresentação minuciosa de suas personagens, o que nos possibilita conhecê-las profundamente e, até mesmo, manter certa intimidade e cumplicidade com elas. Esse é, com certeza, um dos maiores méritos das grandes obras, nos tornar em parceiros, quase comparsas, da trama. Ocorre um pequeno “problema”, não sei dizer se posso chamar de problema, no desenrolar do livro: não há surpresas, já que muito do que acontece pode ser vislumbrado pelo leitor atento, a revelar a universalidade da história, ou histórias, em suas mais triviais particularidades, e mostrar o quão humana são as vidas das personagens, em suas tragédias, dramas, vivacidades e sutilezas.

Outro virtude é apresentar-nos várias discussões iniciadas naquele século e a perdurar até os nosso dias, revelando o quão é previsível o homem em sua tolice, excepcionalmente quando se considera imprevisível. Temas de cunho filosófico, teológico, moral, político, cultural são pontuados com boas análises e conclusões, ainda que sejam apenas o mote para se avaliar o caráter de uma e outra personagem.

Penso haver dicotomias sem a menor razão de ser, como a disputa “religião x ciência”, onde a verdadeira religião e a verdadeira ciência não se digladiam, mas se complementam; mas o que para mim pode ser líquido e certo, para Tolstói e outros leitores é motivo de dúvidas e especulações, algo sincero e em nada desabonador, mesmo, no fim das contas, não existindo oposição.

Como em todo livro temos aqueles homens e mulheres de que gostamos e os de que não gostamos. Especialmente, nutro uma simpatia por Kitty e Levine (mesmo este considerando-se ateu), enquanto não posso afirmar o mesmo de Ana e Vroski... Interessante que a mentalidade revolucionária/alienada, via marxismo, já se disseminava rapidamente mesmo em uma sociedade ainda não desenvolvida como a russa (praticamente rural), onde Tolstói já vislumbrava o que haveria de acontecer décadas depois com Lenin, Trotsky e os bolcheviques.

Tolstói não chega a ser um Dostoievski (espera lá, caro leitor, não vá apedrejar-me; entenda existir um quê de “torcida” a favor deste, sem necessariamente haver demérito àquele; algo momentâneo e que pode mudar no futuro), mas é um grande escritor, que sabe pegar o leitor não com um espalhafatoso início, mas com o desenrolar da narrativa, em uma crescente de emoções, considerações e descobertas, pela qual somos seduzidos e "hipnotizados" em sua arte superlativa.

Um trecho que exemplifica em parte o dito acima, sobre o vislumbre do mundo atual a partir da realidade russa, o qual selecionei e copiei abaixo: acontecia na Rússia do sec. XIX o que está hegemonicamente disseminado no Brasil do sec. XXI. Tostói não era profeta (apesar da aparência negar), mas vislumbrou a massificação da ignorância no mundo, em progressão geométrica, a despeito dos avanços tecnológicos; senão, vejamos a fala de um marchand a respeito de um pintor em ascensão, Mikailov:

"Filho, segundo ouvi dizer, de um mordomo moscovita, não sabe o que seja educação. Depois de frequentar a Escola de Belas Artes e de ter adquirido certa reputação, quis instruir se, pois não é nenhum tolo. Para isso recorreu àquilo que se lhe afigurou a fonte de toda a ciência, isto é, aos jornais e às revistas. Outrora, quando alguém queria instruir se, por exemplo, um francês, que fazia ele? Estudava os clássicos, os teólogos, os dramaturgos, os historiadores, os filósofos. Estão a ver o trabalho que o esperava. No nosso país é tudo muito mais simples: basta uma pessoa atirar-se à literatura subversiva para muito rapidamente assimilar um extracto completo de tal ciência. Há uns vinte anos, ainda esta literatura mostrava vestígios da sua luta contra as tradições seculares, o quanto bastava para ensinar que tais coisas existiam, mas agora nem mesmo se dá ao trabalho de combater o passado, contenta se em negar francamente: tudo é evolution, selecção, luta pela vida".

É ou não é um retrato fiel dos nossos tempos?

Tolstoi aborda uma boa gama de problemas e dilemas que afligem a humanidade desde sempre. Temas como amor, traição, fidelidade, honradez, malícia, hipocrisia, ingenuidade, fé, etc, são ingredientes do palco de Anna Kariênina. Como já disse (e não canso de repetir), ele delineia minuciosamente as suas personagens, de maneira que as conhecemos profundamente. Muitas discussões iniciadas no sex XIX perduram até os nossos dias, como também já disse, mas algo evidente, e merece ser reforçada é a reflexão sobre a queda intelectual e moral da sua época, o emburrecimento daqueles que deveriam defender e perpetuar a alta cultura e os princípios judaico-cristãos na sociedade. De forma que entre os aristocratas e letrados é-se possível perceber o que seria "regra": o desprezo ao conhecimento e à moral, e a exaltação dos instintos ao nível do irracional. Anna é um bom exemplo disso: viveu e morreu pelos seus prazeres e sensações (uma hedonista empedernida, viciada ao ponto da loucura e desespero), muitos equivocados, muitos a exaltar-lhe o egoísmo e o narcisismo, muitos falsos e irreais, que culminaram numa segunda realidade, existindo apenas em sua mente.

Mesmo sendo rejeitada pela sociedade, de maneira geral, seus pecados eram amenizados ou esquecidos por conta da sua beleza e sensualidade, onde os homens adoravam-na enquanto as mulheres desprezavam e invejavam-na (nisso há uma semelhança entre Karenina e “Nastasya Filippovna”, de Dostoievski – preciso mesmo reler o Idiota, em breve). Pouquíssimos são os exemplos morais num mundo infestado pela imoralidade, mas até mesmo estes reconheciam sua condição miserável e indigna, como a amante do irmão de Levine. A própria Anna reconhece a desgraça em que se lançara, mas a idéia de uma felicidade amorosa e verdadeira e duradoura com Vroski era uma espécie de recompensa a todo o mal que ela havia produzido (o fetiche e suas prisões da alma). Temos as figuras dos ídolos, aqueles pelos quais se manifestam o desejo humano de deificação, seja o amor proibido ou qualquer forma de rebelião ao natural; pois, como criaturas imperfeitas e necessitadas poderiam gerar relações perfeitas e suficientes?

Interessante notar que o senso moral está presente, é reconhecido mas não aceito, como se acatá-lo significasse algum tipo de escravidão, e a sua rejeição consciente uma liberdade. Ao contrário dos nossos dias, onde a moral, ética e os valores nobres do homem são desprezados por não serem reconhecidos como tais (o relativismo torna impossível qualquer verdade absoluta, entregando-se a irrealidade e contradição da verdade relativa); lá, ao tempo de Tostói, o homem se entregava ao erro pela impossibilidade de não vivê-lo, mesmo sendo reconhecido como tal, como erro; não havia a exaltação dos pecados e vícios; era simplesmente o inevitável, algo de que não se conseguia fugir, sem ser contudo objeto de caça. Esta é, via de regra, a condição natural do homem, o bem e o mal e a escolha entre eles; ao passo que, atualmente, a ideia do mal estar misturada de tal forma à do bem, que o mal se faz bem e o bem mal, para a desgraça completa de boa parte da humanidade.

Tostói é conservador nesse aspecto, e dá ao seu livro um caráter nitidamente existencial (ainda que o termo não existisse ao seu tempo com o conceito de hoje) e metafísico no desfecho final. Interessante as implicações metafísicas serem respostas diretamente tiradas da realidade, como atestam as reflexões finais de Levine.

O livro é um achado, e sua leitura pode surpreender, não como estamos acostumados a ser surpreendidos: o espanto e o susto gratuitos, ou reviravoltas malabarísticas (próprias de boa parte dos autores modernos; a maioria "sem pé nem cabeça"), levando-nos a meditar sobre questões cruciais ao ser humano, como a vida e a morte, por exemplo, e sempre.

Leitura recomendadíssima.


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Avaliação: (****)

Título: Anna Kariênina

Autor: Liev Tosltói

Página: 808


Sinopse:
                "Toda a diversidade, todo o encanto, toda a beleza da vida é feita de sombra e de luz”, escreve Liev Tolstói no romance que Fiódor Dostoiévski definiu como “impecável”. Publicado originalmente em forma de fascículos entre 1875 e 1877, antes de finalmente ganhar corpo de livro em 1877, Anna Kariênina continua a causar espanto. Como pode uma obra de arte se parecer tanto com a vida? Com absoluta maestria, Tolstói conduz o leitor por um salão repleto de música, perfumes, vestidos de renda, num ambiente de imagens vívidas e quase palpáveis que têm como pano de fundo a Rússia czarista. Nessa galeria de personagens excessivamente humanos, ninguém está inteiramente a salvo de julgamento..."

03 janeiro 2022

A vida policromática em "Ruído Branco", de Don DeLillo

 



Jorge F. Isah




Este é o segundo livro de Don DeLillo que leio; o primeiro foi "Os Nomes", ainda na década de 90. "Os Nomes" é um livro muito mais introspectivo, mais intimista, quase uma confissão do personagem principal. Pelo menos, é o que apreendi da leitura, passados mais de 20 anos, e, durante esse período, acalentei ter outra de suas obras em mãos, mas, por uma série de contingências, somente agora foi possível. Ainda espero, se Deus quiser, reler “Os Nomes” e fazer uma leitura mais acurada e madura.

Quanto a "Ruído Branco", o tema principal, em um universo de muitas personagens, é a morte. Sim, a morte; a começar pelo autor principal, Jack Gladney, um professor universitário especializado em "Hitler" ou, mais especificamente, na matéria Hitlerologia. Haverá melhor forma de começar um livro sobre o tema da morte do que informar a profissão/função da personagem principal? Só se ele fosse também um "Stalinorologista", "Leninologista", "Maologista", "Castrologista", ou um patologista forense. Chega a ser "sui generis" que essa matéria tenha ganhado uma cadeira universitária, mesmo em uma faculdade minúscula, no interior dos EUA. A despeito disso, parece-me que a matéria, e o seu professor, ser a expoente daquele ambiente, mais pela bizarrice do que propriamente pela sua relevância. Seria o mesmo que um acadêmico brasileiro criasse a cátedra de "Getuliologia" ou "Lulologia", guardadas as devidas proporções, claro (espero que ninguém se aventure e copie a ideia).

Bem, posto isso, como não sou de descrever enredo e situações, e resumir a trama dos livros, vou-me ater aos pontos que me parecem necessários, sem tirar a graça do futuro leitor, que deseja se embrenhar na narrativa de DeLillo.

Primeiro, a leitura é fluente, a despeito de alguns detalhes e tramas prescindíveis. Não digo que sejam desnecessárias, mas o livro poderia ter sido reduzido em, pelo menos, umas duas dezenas de páginas, sem perder em nada a essência narrativa.

Segundo, a maioria dos personagens são paranoicos, neuróticos, obsessivos, quando não lisérgicos ou desinteressados ao extremo. Não sabia a data em que foi escrito, até iniciá-lo. Em princípio, situava-o por volta dos fins dos anos 60 e início dos 70. À medida que o enredo se desenrolava, percebi que se ambientava no início dos anos 80, o que confirmei hoje, lendo uma pequena biografia do autor (normalmente faço antes da leitura, não sei por que, cargas d'água, somente fiz agora, após o desfecho final).

Na primeira parte, ele se parece com um “dejavu” dos anos 60, em meio aos anos 80, ou seja, pessoas que cresceram na época da revolta e libertarianismo (o famoso clichê “sexo, drogas e rock’roll"), estavam entregues a uma vida estável, na meia-idade, em seus empregos seguros, lares seguros, famílias constituídas ou em vias de se constituírem, estabilidade e continuísmo social; ainda que a confusão iniciada lá, na década de 1960, esteja presente e vívida vinte anos depois; e a tão pretendida revolução apenas se tornou em nova tradição: egoísta, pragmática, viciosa, cética. Na ânsia de destruir-se o passado construiu-se uma alfurja estereotipada de futilidades (desculpe-me a redundância); e o homem se viu em busca de si mesmo, quando estava irremediavelmente perdido em sua pretensa autossuficiência e ausência de futuro.

Terceiro, após algumas peripécias: um desastre ambiental, controle e manipulação sociais, traições conjugais, experimentos químicos/psíquicos, e críticas desferidas a todos os lados, em especial à vida americana acadêmica e familiar (muitas irônicas, outras ácidas), é-se possível perceber o quanto o homem moderno está perdido, sem rumo, e ainda tem de conviver diariamente com a ideia da morte, da fragilidade, da impotência diante de algo muito maior que a própria existência. Foi preciso uma catástrofe para a maioria sair do seu “mundinho”, das posições e opções descomplicadas e imediatas para uma realidade inesperada, perturbadora, imperativa; sem escolhas ou declinações.

Quarto, o livro é uma sátira; pode-se considerá-lo, até mesmo, uma paródia. Mas não deixa de ser instigante a maneira como o autor aborda uma série de questões, que mesmo parecendo apenas “nonsense” e “hiperbólicas”, nos dão a impressão de DeLillo estar a rir de si mesmo e de nós, o tempo todo.

A algumas páginas do fim (um livro que estava na minha estante há uns dois anos, aguardando ser aberto), posso dizer que a ficção de DeLillo é, no mínimo, provocativa, incitadora. Ainda que ele não apresente nenhuma solução ou coloque todas as “cartas” sobre a mesa (e diga-se, não é necessário), está no rol dos autores capazes de fazerem com que o leitor adentre ao texto e se impregne dele; e torna-se cada vez mais raridade em nossos dias, em tempos onde a literatura, de maneira geral, está diluída pela própria incapacidade, e acaba por se tornar em arremedo do arremedo do arremedo do...

Certamente é uma leitura que vale a pena, muito a pena. Ainda que você seja assombrado pela ideia da morte; pois ela lhe parecerá ainda mais real e inexpugnável na vida dos personagens de DeLillo.



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Avaliação: (***)

Título: Ruído Branco

Autor: Don DeLillo


Páginas: 320

Sinopse:  "Ruído branco, o oitavo romance de DeLillo, é a história de um professor universitário que vive com a família no Meio-oeste americano, numa cidadezinha que é evacuada depois de um acidente industrial. À luz de desastres como o da Union Carbide na Índia, que matou mais de duas mil pessoas e feriu outras milhares (e que acabara de ocorrer quando o livro foi publicado), Ruído branco mantém seu sentido atual e aterrorizante"