03 janeiro 2022

A vida policromática em "Ruído Branco", de Don DeLillo

 



Jorge F. Isah




Este é o segundo livro de Don DeLillo que leio; o primeiro foi "Os Nomes", ainda na década de 90. "Os Nomes" é um livro muito mais introspectivo, mais intimista, quase uma confissão do personagem principal. Pelo menos, é o que apreendi da leitura, passados mais de 20 anos, e, durante esse período, acalentei ter outra de suas obras em mãos, mas, por uma série de contingências, somente agora foi possível. Ainda espero, se Deus quiser, reler “Os Nomes” e fazer uma leitura mais acurada e madura.

Quanto a "Ruído Branco", o tema principal, em um universo de muitas personagens, é a morte. Sim, a morte; a começar pelo autor principal, Jack Gladney, um professor universitário especializado em "Hitler" ou, mais especificamente, na matéria Hitlerologia. Haverá melhor forma de começar um livro sobre o tema da morte do que informar a profissão/função da personagem principal? Só se ele fosse também um "Stalinorologista", "Leninologista", "Maologista", "Castrologista", ou um patologista forense. Chega a ser "sui generis" que essa matéria tenha ganhado uma cadeira universitária, mesmo em uma faculdade minúscula, no interior dos EUA. A despeito disso, parece-me que a matéria, e o seu professor, ser a expoente daquele ambiente, mais pela bizarrice do que propriamente pela sua relevância. Seria o mesmo que um acadêmico brasileiro criasse a cátedra de "Getuliologia" ou "Lulologia", guardadas as devidas proporções, claro (espero que ninguém se aventure e copie a ideia).

Bem, posto isso, como não sou de descrever enredo e situações, e resumir a trama dos livros, vou-me ater aos pontos que me parecem necessários, sem tirar a graça do futuro leitor, que deseja se embrenhar na narrativa de DeLillo.

Primeiro, a leitura é fluente, a despeito de alguns detalhes e tramas prescindíveis. Não digo que sejam desnecessárias, mas o livro poderia ter sido reduzido em, pelo menos, umas duas dezenas de páginas, sem perder em nada a essência narrativa.

Segundo, a maioria dos personagens são paranoicos, neuróticos, obsessivos, quando não lisérgicos ou desinteressados ao extremo. Não sabia a data em que foi escrito, até iniciá-lo. Em princípio, situava-o por volta dos fins dos anos 60 e início dos 70. À medida que o enredo se desenrolava, percebi que se ambientava no início dos anos 80, o que confirmei hoje, lendo uma pequena biografia do autor (normalmente faço antes da leitura, não sei por que, cargas d'água, somente fiz agora, após o desfecho final).

Na primeira parte, ele se parece com um “dejavu” dos anos 60, em meio aos anos 80, ou seja, pessoas que cresceram na época da revolta e libertarianismo (o famoso clichê “sexo, drogas e rock’roll"), estavam entregues a uma vida estável, na meia-idade, em seus empregos seguros, lares seguros, famílias constituídas ou em vias de se constituírem, estabilidade e continuísmo social; ainda que a confusão iniciada lá, na década de 1960, esteja presente e vívida vinte anos depois; e a tão pretendida revolução apenas se tornou em nova tradição: egoísta, pragmática, viciosa, cética. Na ânsia de destruir-se o passado construiu-se uma alfurja estereotipada de futilidades (desculpe-me a redundância); e o homem se viu em busca de si mesmo, quando estava irremediavelmente perdido em sua pretensa autossuficiência e ausência de futuro.

Terceiro, após algumas peripécias: um desastre ambiental, controle e manipulação sociais, traições conjugais, experimentos químicos/psíquicos, e críticas desferidas a todos os lados, em especial à vida americana acadêmica e familiar (muitas irônicas, outras ácidas), é-se possível perceber o quanto o homem moderno está perdido, sem rumo, e ainda tem de conviver diariamente com a ideia da morte, da fragilidade, da impotência diante de algo muito maior que a própria existência. Foi preciso uma catástrofe para a maioria sair do seu “mundinho”, das posições e opções descomplicadas e imediatas para uma realidade inesperada, perturbadora, imperativa; sem escolhas ou declinações.

Quarto, o livro é uma sátira; pode-se considerá-lo, até mesmo, uma paródia. Mas não deixa de ser instigante a maneira como o autor aborda uma série de questões, que mesmo parecendo apenas “nonsense” e “hiperbólicas”, nos dão a impressão de DeLillo estar a rir de si mesmo e de nós, o tempo todo.

A algumas páginas do fim (um livro que estava na minha estante há uns dois anos, aguardando ser aberto), posso dizer que a ficção de DeLillo é, no mínimo, provocativa, incitadora. Ainda que ele não apresente nenhuma solução ou coloque todas as “cartas” sobre a mesa (e diga-se, não é necessário), está no rol dos autores capazes de fazerem com que o leitor adentre ao texto e se impregne dele; e torna-se cada vez mais raridade em nossos dias, em tempos onde a literatura, de maneira geral, está diluída pela própria incapacidade, e acaba por se tornar em arremedo do arremedo do arremedo do...

Certamente é uma leitura que vale a pena, muito a pena. Ainda que você seja assombrado pela ideia da morte; pois ela lhe parecerá ainda mais real e inexpugnável na vida dos personagens de DeLillo.



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Avaliação: (***)

Título: Ruído Branco

Autor: Don DeLillo


Páginas: 320

Sinopse:  "Ruído branco, o oitavo romance de DeLillo, é a história de um professor universitário que vive com a família no Meio-oeste americano, numa cidadezinha que é evacuada depois de um acidente industrial. À luz de desastres como o da Union Carbide na Índia, que matou mais de duas mil pessoas e feriu outras milhares (e que acabara de ocorrer quando o livro foi publicado), Ruído branco mantém seu sentido atual e aterrorizante"



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