23 agosto 2017

Sermão em Romanos 13.10; "O amor é o cumprimento da lei" - 2a. Parte




Jorge F. Isah







INTRODUÇÃO

Na meditação anterior, observamos que Deus é a origem de todo o amor, e de que este é um atributo comunicável com o homem. Ou seja, somos capacitados por ele a amar. Pelo amor com que nos ama, e do qual somos objetos, somos capazes de amar. Na verdade, o homem é o receptáculo do amor divino; o mesmo amor com o qual Deus nos criou. 

“Amados, amemo-nos uns aos outros; porque o amor é de Deus; e qualquer que ama é nascido de Deus e conhece a Deus.
Aquele que não ama não conhece a Deus; porque Deus é amor.” [1 Jo 4.7-8]


Entretanto, com a queda de Adão no Éden, e a consequente contaminação do pecado, o sentido do amor divino foi corrompido e afetado. De forma que o homem não somente afastou-se do amor [o distanciamento natural, tendo em vista a sua natureza antinatural], mas o negou, implantando em seu lugar o ódio e o mal, a antítese do amor. Tudo isso como manifestação de desamor e rejeição a Deus. 

Ora, se rejeito algo divino, e o amor é divino, rejeito o próprio Deus, e é esta rejeição que leva o homem a anelar o ódio e o mal; a confrontação e oposição a Deus pelo que ele é, resultando no pecado como única forma de refletir a insurreição contra o Criador. 

O bem que o homem negou, foi ocupado naturalmente pelo seu oposto: o mal; o amor igualmente negado foi ocupado pelo ódio; a santidade pelo pecado. Deus por um ídolo ou ídolos. E a marca de todas essas “ocupações” não é outra senão o afastamento de Deus; movimentos com o fim de expurga-lo, negá-lo, em um sentimento de aversão profunda, o estado de demência em que se reputa capaz destruí-lo. Como não é capaz, o homem trata de construir em si mesmo a figura diabólica, pela ausência do bem e a superabundância do mal. 

No frigir dos ovos, a contribuição humana foi apenas o pecado, o qual não criou originalmente, já que essa obra é proveniente, primeiramente, do Diabo, mas o homem a adequou aos seus interesses, e criou uma variação, digamos, não tão singular como a empreendida nos Céus, mas uma cópia cujos efeitos são igualmente drásticos, terríveis e maléficos. 

Alguém pode dizer que o meu pensamento é dualista, de que não existe, na vida real, essa dicotomia e franca oposição entre o bem e o mal. O homem é capaz de manifestar tanto uma como outra coisa. E até mesmo as variações delas em algum momento. Pois bem, ele não está errado, ainda que não esteja certo. Na verdade, o homem, ao afastar-se de Deus e entregar-se a si mesmo, contaminou todo o seu ser com o pecado, que o atinge de várias formas e maneiras. Temos então as variações do mal no indivíduo não como “confusões” entre o bem e o mal, mas pela própria corrupção dos seus sentidos. Esses são os efeitos noéticos do pecado, onde a mente, a razão, os sentimentos e os atributos comunicados por Deus se corromperam, foram afetados, e, muitas vezes, anulados pela transgressão, pela rejeição da vontade divina, a negação de Deus como absoluto e origem de todo o bem. O bem que o homem não quis, e o mal com o qual se acostumou até não mais poder viver separado dele. 

O homem tem sérias dificuldades de definir o que venha a ser o bem e o que venha a ser o mal, se lhe faltam parâmetros absolutos para medi-los. O pecado afetou a compreensão e o entendimento do que são verdadeiramente, por isso é necessário que o homem tenha uma ordem superior a inferir valor em tudo, a fim de que o bem e o mal, o certo e o errado, o justo e o injusto, o santo e o profano, não se confundam como uma mesma coisa, originários de uma mesma matriz. 

Posto isto, veremos, a seguir, o porquê da necessidade da Lei. Ela é a resposta para a confusão humana. Colocará as coisas em seus devidos lugares, revelando o senso correto de proporção de cada uma delas, na sua origem santa ou pecaminosa. Proveniente de Deus, ou do homem caído.

Contudo, Deus, em sua infinita graça, bondade e amor, propiciou a encarnação do seu Filho Amado, Jesus Cristo, para que, por ele, e a ação do Espírito, o amor fosse redimido e restaurado. 

Como igreja, nós somos alvos do amor divino, o qual refletimos [ainda que não completamente, o que acontecerá na eternidade] e testemunhamos como filhos do Pai, e coerdeiros de Cristo, que o amor perdido e negado pode, pela graça, ser encontrado naquele que é o amor, e reconhecido daqueles que, por ele, são amados. 



A LEI

A lei é a manifestação do amor de Deus. Quando o homem cai de sua condição natural de santidade, e está diante do próprio pecado praticado e feito natureza, Deus nos deu o redentor, Cristo. Que viria para restabelecer a ordem perdida, a santidade perdida, a comunhão perdida, a direção perdida, o amor perdido. Sem Cristo, e seu sacrifício, o homem estaria irremediavelmente condenado; não uma condenação apenas ao inferno, mas a impossibilidade de qualquer comunhão com o Deus vivo. 

Vale lembrar que o homem foi criado para comungar, se relacionar com o Criador. Originalmente, ele se deleitaria na Criação harmoniosa, perfeita e santa. A mordomia era o deleitar-se naquilo que era de Deus e ele entregou em confiança nas mãos de Adão. A lei do Senhor estava escrita no coração do homem, sem a necessidade de decretos ou normas. Havia o bem. O santo. Louvor e honra a Deus. Ele estava em sintonia perfeita com o Criador. Capaz de produzir o bem e mantê-lo vivo se não existisse cobiça, mas o satisfazer-se plenamente no Senhor. 

Entretanto, o pouco cuidado de Adão consigo mesmo se refletiu na corrupção do Cosmos, no caos. Onde havia a paz, a ordem, a vida, o santo, agora, pós-queda, eram permeadas pelas disputas, as desordens, a morte e o pecado. No lugar do bem, o mal se insurgia como um adversário vigoroso e implacável. E o coração, antes um lugar frutífero e fértil, se tornava pouco a pouco insalubre e estéril. A pureza perdia cada vez mais espaço para o pecado, ao ponto de algumas gerações depois da queda, Deus, em sua justiça, destruir praticamente tudo na face da terra, por causa da corrupção a chegar aos céus. 

Se o relacionamento com Deus era a maneira pela qual o casal se guiaria e conduziria no Éden, sem ele, o homem estava desnorteado, entregue a seu próprio julgamento, posto em seu próprio caminho, que não é outro senão a morte e destruição. Era um homem sem norte, sem rumo, a tropeçar em si mesmo; e a cada tombo, cheirando a terra seca ou afundando-se na lama, ele perdia a capacidade de olhar para o alto e vislumbrar a glória de Deus, a sua bondade infinita pela qual fora criado, e pela qual subsistia. A vaidade e o orgulho foram-lhe enchendo o coração, produzida em profusão e na medida da própria corrupção, tornando-se iminente o distanciamento de Deus, e a sua substituição por ídolos que o mantinham preso ao delírio de uma existência insana sem Deus. 

Ainda que o Imago Dei não fosse completamente apagado, impedindo que o homem se entregasse totalmente ao mal, produzindo apenas danos e desgraças [se podemos chamar assim, há um aperfeiçoamento na imperfeição; camuflada pela disposição ao autoengano, produzindo um pensamento, um conceito de bondade inerente ao homem, mas que é negado pelos seus frutos. Assim ele se mantém intocado em sua pecaminosidade, sem se dar conta dela, ignorando-a, por um despiste a encobrir a verdade. O ídolo nada mais é do que isso: criar uma “realidade” postiça, delirante, ilusória, oposta à verdade de Deus], a maior parte do tempo ele estava dominado, sob o controle do pecado. Usando de uma analogia, seria o mesmo que manter um presente valioso soterrado em toneladas de entulhos, lama, destroços. 

Diante da inaptidão e corrupção humana, o Senhor, em sua infinita bondade, nos deu a lei. E o que é a lei? 

Se Adão a tinha escrita em seu coração, mas foi-se perdendo à medida que o afastamento de Deus se intensificava, o bem e o justo se dissipavam da consciência, e uns poucos vestígios eram encontrados parcimoniosamente nos indivíduos, para que o homem não fosse completamente consumido por si mesmo, e o caos imperasse nas sociedades, foi-nos dada a lei. Não mais escrita nos corações, onde não havia lugar para ocupar, mas nas tábuas e pedras. Se antes não havia sanções, mas o deleite em executá-las, mantendo-as acessas, sustentando as almas puras, a partir daquele momento elas estavam postas exteriormente, como lastro a reter a maldade interior. Seria bússola a orientar o homem em um caminho de volta à ordem manifestada na vontade divina. Paulo a chamou de “aio”, um preceptor, a educar o homem sem limites nos fins agradáveis a Deus. 

A lei não pode jamais ser entendida como um peso, seguida de um castigo doloroso. Ela tem de ser compreendida como outra prova irrefutável do amor divino para com o homem, ainda que os transgressores sejam punidos. A lei se enquadra perfeitamente no escopo da providência: a bondade de Deus para com criaturas rebeldes e indolentes. E é pela lei que a humanidade sobrevive; pelas normas de manutenção da ordem e afastamento do caos. A lei também coloca o homem em seu devido lugar, revelando a sua dependência divina, já que ela procede de Deus, de que o homem não é apenas sustentado por ele, mas é posto na linha, a fim de se manter o mínimo necessário à convivência social, a impedir a extinção radical da espécie; capacitando-os a exalar eflúvios benéficos pelo fortalecimento do bem interior, não completamente arruinado pela queda. 

Sim, a lei educa e fortalece aquilo que ainda resta de divino no homem, fazendo com que ele o manifeste, mesmo em pequenas e esparsas porções. O homem é mal não porque seja completamente incapaz de emanar frações do bem, mas por rejeitar o bem supremo, aquele que é o próprio bem, julgando sê-lo outrem ou a si mesmo. Como Agostinho disse, o bem é a ausência do mal, de forma que é impossível ser bom à revelia de Deus, sendo ele essencialmente o bem, a justiça e a santidade. 

Como Paulo nos diz sabiamente, a lei divina é um sistema de orientação, nos dispondo, impulsionando-nos à prática do bem, a fim de que o homem evite o pecado, a transgressão, tal qual os sinais de trânsito nos impedem de provocar e sofrer acidentes, se os observamos, não os rejeitando: 

“Logo, para que é a lei? Foi ordenada por causa das transgressões, até que viesse a posteridade a quem a promessa tinha sido feita; e foi posta pelos anjos na mão de um medianeiro.
Ora, o medianeiro não o é de um só, mas Deus é um.
Logo, a lei é contra as promessas de Deus? De nenhuma sorte; porque, se fosse dada uma lei que pudesse vivificar, a justiça, na verdade, teria sido pela lei.
Mas a Escritura encerrou tudo debaixo do pecado, para que a promessa pela fé em Jesus Cristo fosse dada aos crentes.
Mas, antes que a fé viesse, estávamos guardados debaixo da lei, e encerrados para aquela fé que se havia de manifestar.
De maneira que a lei nos serviu de aio, para nos conduzir a Cristo, para que pela fé fôssemos justificados.
Mas, depois que veio a fé, já não estamos debaixo de aio.
Porque todos sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus.”
[Gl 3:19-26]



Cristo e a Lei

Alguns cristãos reputam a lei como maléfica, como um entrave à santificação e à comunhão com Deus. Tendo em vista o seu caráter obrigatório, uma exigência, entendem ser isso danoso para a vida espiritual do homem. A premissa é, muitas vezes, a de que: se não se é capaz de cumpri-la totalmente, não se deve preocupar em cumpri-la em qualquer de seus preceitos. Ora, essa não é outra senão a heresia do antinominialismo, que defende a vida cristã sem qualquer lei, apelando para a graça absoluta. É claro que a graça é absoluta, pois procede do Deus absoluto, mas estaria o homem dispensado de cumprir a Lei por um mero capricho da graça? Ou seria a graça o fomentador do cumprimento da Lei, de maneira que o homem se aprimoraria no desejo íntimo e sincero de obediência a Deus e à sua vontade? Estaria a Lei alijada da graça e vice-versa? Ou ambas seriam manifestações divinas unidas por sua vontade sobrenatural de nos fazer semelhantes a Cristo? Homens imperfeitos sendo cada vez mais identificados com o Senhor que os salvou, chamou, transformou e santificou? A salvação prescinde o zelo? E a eleição a obediência? Penso, categoricamente, que não!

A alegação de quem defende uma posição de antinomia é de que cumprir a Lei seria farisaísmo, hipocrisia, e uma atitude legalista, manifestações pecaminosas daquele que não tem a graça sobre a sua vida. Acreditam que a graça se manifesta cada vez mais onde o pecado abunda. Tomam de Paulo uma afirmação e lhe dão outro sentido, distorcendo-o, tornando em mentira a verdade, em engano a fidelidade, em morte a vida. 

“Veio, porém, a lei para que a ofensa abundasse; mas, onde o pecado abundou, superabundou a graça;
Para que, assim como o pecado reinou na morte, também a graça reinasse pela justiça para a vida eterna, por Jesus Cristo nosso Senhor” [Rm 5.20-21]


Este trecho não sanciona o pecado, muito menos o estimula ou anula, como se o homem, debaixo da graça, pudesse abusar dela, tornando-a em desgraça. O apóstolo não está dizendo que quanto mais se peca, mais a graça se manifesta, mas que Deus, em seu amor e bondade infinitos, não levou em questão a multidão de pecados do seu povo, derramando sobre a propiciação dos pecados, ou seja, o sangue de Cristo derramado na cruz nos livra da condenação e separação eterna de Deus. Não é um salvo-conduto para o pecado. Nem o tratar com desprezo ou trivialidade. Muito menos uma forma de incentivo ou ânimo. Paulo está a dizer que onde haveria condenação e punição, Deus nos entregou a sua absolvição. Sendo todo o pecado uma ofensa direta a ele, somente o Senhor poderia nos perdoar e absolver. O duro e feroz julgamento ao qual fazíamos jus, recaiu sobre o seu Filho. Alguém teve de pagar a pena, e não fomos nós. Porque nos era impossível quitá-la. Apenas o Deus-Homem, 100% Deus e 100% Homem poderia realiza-lo; ninguém mais. 

Quando Adão cai, todos nós caímos. O pecado nos foi transmitido como por uma doença altamente contagiosa, da qual ninguém a não ser o Santo estava imune. Sim, ainda que fosse uma possibilidade, a de que Cristo pudesse pecar, não havia potencialidade nele para a transgressão, para a rebeldia. Pelo contrário, como ele mesmo disse, viera ao mundo para fazer a completa vontade do Pai, cumprindo toda a Lei, e padecendo como um inocente. 

Naquela cruz, o Santo, imaculado, sofreu o castigo que nos pertencia, do qual não poderíamos nos livrar, se o esforço empreendido fosse nosso. Por mais empenho e disposição no sentido de obediência à lei divina, ela estava a nos acusar a todo momento, espetando-nos com sua ponta dura e letal, desferindo golpes mortais na carne e na alma, fazendo-nos definhar pouco a pouco ao seu castigo, à sua implacável justiça. 

Com isto, não estou dizendo que a Lei é pérfida ou injusta, mas de que ela, sobretudo, aponta-nos a condição de perdidos, afastados, inimigos de Deus, quando a transgredimos, quando insidiosamente tentamos burlá-la, negligenciá-la, desafiá-la, desrespeitá-la. Assim fez Adão. O homem que deveria cuidar da mulher, de toda a criação, como mordomo instituído por Deus, sucumbiu aos apelos néscios de Eva. Da serpente. Não foi a Lei a instiga-lo, mas a cobiça. Não o preceito a inflamá-lo, mas a soberba e a vaidade. A santidade já não era possível ao coração inclinado à desobediência. A pureza não mais o dominava; a fleuma da concupiscência tomava-lhe o lugar. Nem toda a profusão de bênção e favores dados por Deus seriam capazes de impedir o ingrato de desprezá-lo. Adão olhava o fruto. Apetecia-lhe o fruto. Desejava-o. Não resistiu a tocá-lo. Nem o comer. O cravar-lhe os dentes foi apenas o ponto final de uma longa trajetória de declínio e morte. Não foi o início, mas o desfecho final da tentação, da rebeldia presente nos primórdios do seu desejo. 

Adão pouco a pouco se convenceu de que a realidade apresentada por Deus era falsa, mentirosa, e de que a ilusão proposta pela serpente era factível e verdadeira. Não sabemos quanto tempo durou o convencimento para a queda. Segundos, minutos, horas. Talvez dias. O certo é que quanto mais se deixava enredar pela fraude, mais ela se solidificava em seu coração. O pecado se agigantou, tomou-lhe a vida, e não mais era possível resistir, a partir de certo ponto. Adão poderia manter-se fiel a Deus com uma simples recusa: bastaria expor a serpente ao ridículo, lançar-lhe em rosto a sua desfaçatez e ignominia. Como ele poderia se deixar enredar por alguém de quem pouco ou nada conhecia? 

Ao contrário, Deus já havia lhe provado quem era, não poderia existir dúvidas de quem era; os seus feitos, a sua bondade, o seu cuidado, misericórdia e providência falavam por si. Era clara e nítida a boa-vontade divina para com o casal; entretanto, negaram ouvir a sua voz, dando trela à serpente [deixando-se enganar] que se viu estimulada a permanecer firme no intuito de destruí-los. 

Não é assim que procedemos, negando ouvir a voz de Deus, em favor do nosso eu ou de outro eu? Em disposição, ainda que sincera, de sermos ludibriados? De não reconhecer aquele que é o doador de todas as coisas, que age com infinita misericórdia, para entregar-nos a nós mesmos ao ladrão de corações? O inimigo odioso de almas? Ah, quão triste será para aqueles que se entregaram ao grito estridente de morte do diabo; passar a eternidade em tormento e castigo indescritível com o algoz. Não satisfeito em aniquilar-se, arrogante e presunçoso, arrasta consigo multidões de tolos que se entregam às suas artimanhas. Vê-lo sendo castigo poderá trazer algum alívio, mas não impedirá aqueles que o seguem de compartilhar da sua dor. Não importa em que nível, o flagelo de satanás e seus anjos será o mesmo do homem reprovado. Se o sangue de Cristo não o alcançar, a vara imperdoável de justiça do Pai o flagelará. Apenas o Filho pode livrá-lo da tormenta no inferno; e bom seria se cada um dos homens se apercebesse disso o mais rapidamente possível. Mas sabemos que o coração indolente e obstinado somente poderá reconhecer-se como tal se quebrantando, se esmagado pelo amor de Cristo, o qual nos constrange. A dureza e impertinência da morte tem de ser esmigalhada, pulverizada, pela graça, a fim de que um coração de carne viva. 

Se Cristo não o encontrar, o homem jamais será achado. E se perderá definitivamente na própria multidão de pecados. Enquanto as transgressões o sufocam, o imobilizam em correntes de contenção, o desespero antecede a dor, enquanto o verdugo se aproxima, e não lhe restará nada além de lamentar amargamente, ou praguejar estupidamente, pela derrota que tão desleixadamente acalentou, cultivou, em meio aos alertas insistentes da palavra, e à exortação para reconciliar-se, abandonando os caminhos erradios, a fim de seguir os passos de Jesus. 

Enquanto Adão for o protótipo do homem, a voz da serpente estará sempre a soar em seus ouvidos, como o sibilar da mais terrível desgraça. E mesmo quando for picado fatalmente, acreditará ouvir o som matinal dos pássaros, como se o despertassem para a vida, quando ela é uma lembrança antiga dos tempos em que o homem vivia no paraíso; mas em sua confusão, desnorteado, era incapaz de retomar o caminho. O único guia e mestre foi desprezado; o cego a acurar os ouvidos ao chamado próprio, ou ao apelo de outro perdido. 


[Continua...]


03 agosto 2017

Sermão em Romanos 13.10: O amor é o cumprimento da lei - 1a. Parte






Jorge F. Isah




INTRODUÇÃO
Há uma abundância de referências ao amor na atualidade. Se você ler as mensagens efusivas no WhatsApp, no Facebook, em muitos sites e blogs, verá que a palavra “amor” é quase onisciente em nosso vocabulário. Ela, juntamente com outras palavras de estímulo e conforto, é uma presença constante nos textos. De muitas maneiras, se tornou quase uma banalidade. Da qual as pessoas ouvem, mas não sabem o que é, ou ignoram.

As pessoas, de maneira geral, acreditam que o amor seja apenas um sentimento, um desejo, uma sensação, quando ele é muito mais do que isso. Comparar relações sexuais, idolatria [seja a qualquer ídolo, físico ou mental], um entusiasmo, ou atração, não tem nada a ver com o amor, com o amor divino de onde procede toda a forma de amor verdadeiro.

O que temos, nos casos citados acima, é a corrupção do amor, a sua degradação de forma a se tornar em um sentimento frívolo e passageiro.

Por essas e outras é que existe a máxima que diz existir uma linha tênue entre o amor e o ódio. E muitas vezes é possível observar, em questão de segundos, manifestações de um suposto amor seguido de desprezo, de uma disposição de fazer o mal a alguém que se dizia amar. Por isso há tantas disputas, brigas, guerras, detratações, traições, e inimizades irreconciliáveis.

Em um mundo em que nunca o mal esteve tão enraizado na mente e nas ações humanas, parece, no mínimo, hipocrisia esse destilar amoroso nas redes sociais.

O mundo está cada vez mais distante dessa verdade: de que o homem foi feito em amor, e para viver em amor.

Mas, por que isso acontece?


A QUEDA
Teremos de ir ao princípio de tudo, quando Deus criou todas as coisas boas. Sim, o relato, no início do livro de Gênesis, não deixa dúvidas:

“Viu Deus que era bom.” [Gn 1.10; 1.12; 1.18; 1.21; 1.25; 1.31]

Elas foram criadas puras e perfeitas, no sentido de não haver mal, defeitos, ou corrupção nelas [Não me refiro à perfeição e santidade divina, a qual é intrínseca a Deus, e dela ele não pode jamais cair; ao contrário de nós que a tivemos por imputação, e a teremos, finalmente, na eternidade, também].

Assim, Deus criou o homem:

“E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra.
E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou.
E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra.
E disse Deus: Eis que vos tenho dado toda a erva que dê semente, que está sobre a face de toda a terra; e toda a árvore, em que há fruto que dê semente, ser-vos-á para mantimento.
E a todo o animal da terra, e a toda a ave dos céus, e a todo o réptil da terra, em que há alma vivente, toda a erva verde será para mantimento; e assim foi.
E viu Deus tudo quanto tinha feito, e eis que era muito bom; e foi a tarde e a manhã, o dia sexto.” [Gn 1.26-31]


Não havia morte. Não havia corrupção. Não havia pecado. Nem caos. Apenas a harmonia entre o Criador e sua criação. O deleite divino com o labor das suas mãos, e o gozo suave e pacífico e imaculado entre as criaturas.

Então, o Senhor mostrou a Adão e Eva o seu jardim, e entregou-o, bem como tudo o mais, para que eles cuidassem e o preservasse como mordomos, administradores das coisas do Senhor. O jardim não era deles; não eram seus proprietários, ainda que construído para eles. Deveriam apenas manter a ordem e a harmonia da mesma forma que Deus lhes entregou. Bastaria que eles conservassem, para desfrutá-los eternamente.

Havia, contudo, um único senão, uma norma, regra:

“E tomou o Senhor Deus o homem, e o pôs no jardim do Éden para o lavrar e o guardar.
E ordenou o Senhor Deus ao homem, dizendo: De toda a árvore do jardim comerás livremente,
Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás.” [ Gn 2.15-17]

Deus estabeleceu uma condição para o casal, de não comerem da árvore do conhecimento do bem e do mal. Entre milhares de outras árvores disponíveis para eles, apenas essa era-lhes vedado o consumo. Dela deveriam se afastar, não tocá-la, nem utilizá-la como comestível.

Entretanto, veio a tentação. Por uma astúcia da serpente, mas também pela incredulidade de Adão e Eva. Eles preferiram acreditar na serpente, que lhes apresentava e dava uma ilusão, uma mentira revestida de promessa a não ser cumprida.

Vejamos o relato:

“Ora, a serpente era mais astuta que todas as alimárias do campo que o SENHOR Deus tinha feito. E esta disse à mulher: É assim que Deus disse: Não comereis de toda a árvore do jardim?
E disse a mulher à serpente: Do fruto das árvores do jardim comeremos,
Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Não comereis dele, nem nele tocareis para que não morrais.
Então a serpente disse à mulher: Certamente não morrereis.
Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se abrirão os vossos olhos, e sereis como Deus, sabendo o bem e o mal. E viu a mulher que aquela árvore era boa para se comer, e agradável aos olhos, e árvore desejável para dar entendimento; tomou do seu fruto, e comeu, e deu também a seu marido, e ele comeu com ela.” [Gn 3.1-6]


A isca estava lançada, e bastaria a Adão manter-se firme, crer na promessa e no alerta divino, reconhecendo a sua soberania e poderio para não vacilar e cair da graça. Pois bem, ao comer do fruto eles estavam condenando não somente a si mesmos, mas a toda a humanidade, toda a sua descendência.

A lei divina fora quebrada. A harmonia do Cosmos foi quebrada. A ordem transformou-se em desordem. A vida em morte. A alma perfeita em imperfeita. A pureza em mácula, contaminada.

Não vou entrar muito na questão da queda, em seus detalhes mínimos e essenciais para entendermos o quão grave e trágica ela foi, ao significar descrença, desconfiança, e falta de respeito para com aquele que nos deu tudo, inclusive o seu amor, para entregar-se a algo que não daria nada além de morte e destruição.

A sequência que se segue é a de Adão e Eva tentando se esquivar da responsabilidade pela qual estariam sujeitos ao castigo, a amargar a separação de Deus, pois já não mais poderiam ter comunhão com ele, e o relacionamento pacífico e santo se tornaria em uma inimizade do homem natural para com Deus.

E a consequência dessa separação é que o sentido do amor, como emanação direta e original de Deus, se perdeu junto com a transgressão, e em seu lugar entraram o ódio, a inveja, a ira, em suma, o pecado.



O RESGATE
Deus contudo, em sua providência e vontade eternas, prometeu, ainda no Éden, a redenção e reconciliação consigo mesmo. Sabendo da incapacidade humana, a partir daquele momento [não vou me ater à questão da potência, se Adão antes da queda seria ou não capaz de resguardar-se do mal e do pecado], de se autorregenerar, de pagar o alto custo para a sua remissão, deu ao homem a esperança gloriosa de restauração. Como está escrito:

“E porei inimizade entre ti e a mulher, e entre a tua semente e a sua semente; esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar.” [Gn 3.15]

A promessa feita a Adão e Eva era a de que, na descendência da mulher, Deus suscitaria o Redentor, aquele pelo qual o homem seria restaurado para Deus, e a serpente seria definitivamente destruída.

Esse é o Cristo, o Senhor Jesus, que muito depois encarnaria, e viria ao mundo para realizar a vontade do Pai.

Como ele mesmo disse de si mesmo:

“Porque eu desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou” [Jo 6.38]

Cristo, o Filho de Deus, a eterna segunda pessoa da Trindade, encarnou, viveu, padeceu, e morreu por amor daqueles a quem o Pai entregou em suas mãos, e das quais ninguém poderá tirar.

Esta é uma promessa maravilhosa, promessa capaz de fazer-nos encher o coração de alegria, mesmo se estivermos passando por dores, tribulações, angústias e morte. Como o apóstolo Paulo disse:

“Quem nos separará do amor de Cristo? A tribulação, ou a angústia, ou a perseguição, ou a fome, ou a nudez, ou o perigo, ou a espada?... Porque estou certo de que, nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as potestades, nem o presente, nem o porvir,
Nem a altura, nem a profundidade, nem alguma outra criatura nos poderá separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor.” [Rm 8.36; 38-39]


Esta certeza inexorável nos acompanhará em toda a nossa caminhada, na jornada que culminará naquele glorioso dia em que veremos o Senhor, aquele que eternamente nos amou, face a face.

O homem nada podia fazer por si mesmo, ainda que quisesse. Muitos buscaram em si a resposta para a reconciliação com Deus, houve tentativas de todos os tipos, mediante o esforço humano; mas por mais que o homem faça, nesse sentido, ainda estará muito, mas muito aquém da exigência necessária para a salvação. Ao depender unicamente de si, ele confirma a sua condição de reprovado, de réu a cumprir uma pena eterna, por ofensa direta ao Eterno.

Por isso, Cristo veio, e venceu!

E a sua vitória está em ele mesmo derrotar a nossa natureza. Ou seja, somos vitoriosos quando perdermos a batalha travada em nós, deixando de ser o que éramos, para sermos aquilo que Deus planejou na eternidade; abandonando a velha natureza, para Cristo nos fazer novas criaturas, matando o velho homem, fazendo surgir, em seu lugar, o homem redimido pelo Espírito, e que será semelhante a Cristo.

É quando o homem perde, na proporção exata da sua natureza caída, que ele ganha! Cristo nos livra de nós mesmos. E na sua vitória somos feitos vencedores.

Não é o que a Escritura diz?

“Assim que, se alguém está em Cristo, nova criatura é; as coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo. E tudo isto provém de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por Jesus Cristo, e nos deu o ministério da reconciliação;
Isto é, Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não lhes imputando os seus pecados; e pôs em nós a palavra da reconciliação.” [2Co 5.17-19]


Oh!! Quão glorioso amor tem o Senhor por nós! Que mesmo o ofendendo diariamente com nossas iniquidades e pecados, ele entregou o seu Filho na cruz; e por seus méritos exclusivos nos reconciliou consigo, resgatando-nos das trevas para a luz; da condenação para a libertação; da sua ira infinita para o seu amor eterno; da morte para a vida; de bastardos para filhos queridos!


O AMOR REDIMIDO
Somente por obra de Deus o amor transgredido pode ser redimido, e feito em verdadeiro amor. O homem pode amar de muitas maneiras, e elas se aproximam daquilo que podemos considerar a essência do amor, mas ele estará sempre aquém, sempre em débito e distante do original.

Prova disso é que as relações humanas, mesmo num ambiente amoroso, são conflituosas, deficientes, e reproduzem, via de regra, os desvios aos quais o homem se entregou, ao se rebelar contra Deus.

Para exemplificar, utilizar-me-ei da parábola dos dois filhos. Ela está em Mateus 21.28-32:

“Mas, que vos parece? Um homem tinha dois filhos, e, dirigindo-se ao primeiro, disse: Filho, vai trabalhar hoje na minha vinha.
Ele, porém, respondendo, disse: Não quero. Mas depois, arrependendo-se, foi.
E, dirigindo-se ao segundo, falou-lhe de igual modo; e, respondendo ele, disse: Eu vou, senhor; e não foi.
Qual dos dois fez a vontade do pai? Disseram-lhe eles: O primeiro. Disse-lhes Jesus: Em verdade vos digo que os publicanos e as meretrizes entram adiante de vós no reino de Deus.
Porque João veio a vós no caminho da justiça, e não o crestes, mas os publicanos e as meretrizes o creram; vós, porém, vendo isto, nem depois vos arrependestes para o crer.” [Mt 21.28-32]


Jesus está falando com os fariseus. O assunto aqui é fé, mas também apontar a hipocrisia dos sacerdotes, que diziam uma coisa e faziam outra. Negando assim a verdade que juravam defender. Eles falavam coisas boas, como se as realizassem; entretanto, suas obras eram más, e opunham-se ao que diziam.

Mesmo não sendo o foco principal da parábola, podemos utilizá-la para uma outra analogia, a de que mesmo em relações amigáveis e respeitosas, o homem tem dificuldade de compreender e aplicar o sentido real do amor.

Quando o pai pede a um dos filhos para trabalhar na vinha, este recusa-se e responde mal: “Não quero”. Contudo, ele se arrepende da desobediência, percebendo que havia pecado contra o pai, e vai à vinha trabalhar. Nesse caso, podemos fazer uma analogia com a condição do homem natural, que ofende e peca contra Deus, mas ao arrepender-se, e fazer a sua vontade, manifesta o amor sincero, que mesmo errando, ao não querer fazer a vontade do pai, reconhece a sua autoridade e zelo [qual pai quer um filho preguiçoso, infrutífero e vagabundo? Apenas se ele for um pai mau, e não amar o seu filho], mas, também, o amor que aquele lhe devota. Vai, e cumpre a ordem recebida.

Por outro lado, o segundo filho, exemplo dos fariseus, diz que cumpriria a ordem dada, mas se recusa a fazê-lo, em flagrante desobediência, e sem qualquer marca de arrependimento.

O arrependimento é necessário e fundamental para que o homem, em constante rebeldia, na profusão dos pecados cometidos, abandone-os em favor de cumprir a vontade divina. Este experimentou o verdadeiro amor, que é obediente.

Como disse no início, o amor não é um sentimento apenas, ou tão somente uma disposição, mas é a prática, o colocar em ação aquilo que sentimos e desejamos para o bem e pelo bem.

Cristo, ao morrer na cruz, prova o seu amor por nós!

Cristo, ao ressuscitar, confirmou a eternidade do amor!

Cristo, ao nos transformar, deu-nos o seu amor!

E quando fazemos a sua vontade, cumprindo os seus mandamentos, amamos como ele ama.

E o amor passa a ser algo verdadeiro e perene em nós, ainda que apenas o experenciamos em porções, não de maneira completa e integral; amostras do que teremos na eternidade, quando viveremos o perfeito e integral amor.

Ainda que não entendamos, com efeito, o amor de Cristo, ele nos será por verdade imutável; tornando-se essência em nós. Indissociável e para sempre!


CONCLUSÃO
Para terminar esta primeira parte, que é uma grande introdução, quero deixar os versos de Paulo acerca da maravilhosa transformação que já se dá em nós, e será concluída na eternidade, quando seremos como Cristo, e teremos, como ele, o verdadeiro amor:

“Para que, segundo as riquezas da sua glória, vos conceda que sejais corroborados com poder pelo seu Espírito no homem interior;
Para que Cristo habite pela fé nos vossos corações; a fim de, estando arraigados e fundados em amor,
Poderdes perfeitamente compreender, com todos os santos, qual seja a largura, e o comprimento, e a altura, e a profundidade,
E conhecer o amor de Cristo, que excede todo o entendimento, para que sejais cheios de toda a plenitude de Deus.” [Ef 3.16-19]


A graça do Senhor esteja sobre nós, para conhecer cada vez mais o seu amor, e experimentá-lo, testemunhando-o neste mundo, para a glória e louvor do seu nome!