Neste mundo, muitos são os personagens e eventos a guardarem a sua parcela enigmática, obscura ou simplesmente farsesca, a iludir e enganar um bom número de simpatizantes, a divertir e aguçar a curiosidade de outros, a aflorar emoções às vezes ambíguas, às vezes sinceras, não raramente oportunistas. Seja por um motivo ou outro, o fato é que a figura de Kaspar Hauser ganhou contornos épicos, de heroísmo estoico, a suscitar reações e emoções um tanto quixotescas, as raias do lirismo, em outras, impermeáveis, ladinas, quase cruéis; sempre a revelar e mostrar as várias facetas da humanidade, tanto para o bem quanto o mal, por vezes prudente, outras, displicente ou, quando não menos, a revelar os preconceitos, imoderação e açodamentos em juízos e sentenças, das quais ninguém estava disposto a libertar ou desvencilhar-se.
Existem, claro, os indulgentes de primeira viagem, aqueles incapazes de, no primeiro momento, tecer qualquer censura ou depreciação quanto à figura ou situação recém-apresentada. A estes, com todas as eventuais consequências da esperança e otimismo quanto a homens e seus atos, solidarizo-me, porque é preferível de antemão confiar até que se prove o contrário do que a desconfiança como a previsível inabilidade pós-moderna de se relacionar, conviver e até certo ponto se sacrificar em favor do outro. Não digo de uma ideia, conceito ou qualquer arrazoado, por mais robusto, mas de gente, pessoa, igual a nós e, talvez, melhor do que nós. Existe sempre a possibilidade do contrário, do indivíduo ser o filhote do capeta, estar a seu serviço e abusar da confiabilidade; mas aí, a culpa será sempre dele e não o inverso; será de quem propõe o embuste e a farsa, e nunca daquele a transpirar decência, sinceridade e compaixão, a ser empático e, por que não, simpático com aqueles a rodeá-lo. É uma mania irritante a de sempre condenar a vítima e expurgar o agressor, não apenas em relação aos crimes civis e penais detalhados em códigos e manuais, mas aqueles tácitos na sociedade. É fazer do falsário, além de espertalhão e vitorioso, o padrão a ser almejado e perseguido como o caráter máximo de humanidade e perfeição. E se hoje caminha-se para a consolidação da “Lei de Gérson”
[1], lá pelos idos de 1800, a coisa não era melhor, ainda que em proporções menos, digamos, tóxicas e genéricas. Neste aspecto, ética e moral são princípios ultrapassados, coisa de cristão medieval, e vale mesmo é o pragmatismo, o resultado, seja ele qual for ou como for, e signifique garantir a autodestruição ou o próprio fracasso. A garantia para um sentimento tão irracional e vulnerável é a afirmação pós-moderna do não existe a "verdade absoluta", nada é absoluto, tudo é relativo, menos a sentença proferida pelo pós-moderno em seu absolutismo nada relativo.
Escrito por Jakob Wassermann, alemão, nascido em 1873, o livro narra a trajetória de vida de Kaspar Hauser desde a aparição espetacular em uma praça de Nuremberg. O evento ocorreu em 1828, e chamou imediatamente a atenção de toda a Europa. Trazia consigo uma carta onde a sua vida era resumidamente descrita; e o jovem de 15 ou 16 anos, não se comunicava ou não falava além de sons rudimentares e desconexos, e não escrevia; autoridades e interessados tinham de se contentar com os seus gestos e sons de lamento, espanto, dor e medo. A pergunta corrente era: “quem é ele?”. Louco? Miserável? Nobre? Ou charlatão? Teceram-se várias teorias, desde não se passar de um aproveitador até ser herdeiro do trono de Baden, no sudoeste da Alemanha.
Não vou entrar nos pormenores históricos, apesar do livro conter inúmeros elementos historiográficos, muito menos em averiguar as validades ou não das teorias. Calcula-se em algumas centenas de livros a tratar do assunto, e ninguém parece convicto do que quer que seja. A nós, e a mim em especial, me interessa o trabalho de Wassermann como artista, apesar de, certamente, ele ter realizado uma pesquisa minuciosa do caso, em vista da profusão de aspectos a descrever o insólito evento. Começarei, primeiramente, em descortinar um pouco a figura do nosso herói:
“O comissário, no posto policial, interrogou-o inutilmente. Ele só respondia através de palavras estúpidas. Nada o fez mudar de atitude, nem ameaças, nem gritos. Mas quando um dos soldados acendeu uma vela, aconteceu uma coisa assombrosa: o rapaz moveu-se à maneira de um urso e quis, depois, aprisionar a chama entre as mãos. Queimou-se, e pôs-se a chorar de um modo que cortava a alma.”
[2].
O autor descreve e constrói uma personalidade virtuosa, mesmo na forma mais primitiva e instintiva do ser de Kaspar. No decorrer da trama, o jovem faz de tudo para manter a sua pureza, singela, autêntica, gentil e lúdica. Evita os conflitos, as provocações injustas e descabidas, e tencionava de verdade integrar-se ao novo mundo ao qual fora lançado. Mesmo obstinado em conhecer as origens, ascendentes, e as razões pelas quais se tornou pária, um enjeitado, não requer qualquer tipo de restituição e vingança. As ofensas e dissabores esbarram sempre em sua teimosa esperança de, em breve, encontrar a mãe e desvendar o passado. Nesse aspecto, à mercê da bondade e sujeição às exigências sociais, por mais que se esforçasse, nunca parecia suficiente; havia aqui e acolá um e outro e mais outro a implicar com a sua inofensiva devoção em manter-se distante dos imbróglios e complôs. Infelizmente, as pessoas o consideravam não pelo que era, mas pelo que consideravam ter sido (charlatão, bastardo ou herdeiro injustiçado) ou pelo que seria: alguém a se olhar com suspeição e censura, ou o vaticínio da iminente realeza.
Não é difícil ver-lhe os traços cristãos, de alguém disposto a confiar, esperar, se entregar sem imposições ou compensações. É uma alma compassiva, afável, não obstante as inúmeras dúvidas e interrogações emudecidas, ou muitas acusações publicadas. Talvez o ponto central seja a incapacidade ou impedimento humano diante do inexplicável, de pessoas e eventos não catalogados nem discerníveis pela razão, a merecer mais do que a simples opinião ou presunção dos afoitos, mas também dos arraigados em convicções e sistemas inadequados a tratar de determinado assunto e agentes. Assim, enquanto ansiava resolver o passado e seguir em frente, em torno de Kaspar se forma um conluio ou conluios a fim de desacreditá-lo, negar-lhe o sonho, o desejo e a possível ventura. Às voltas com a desconfiança, interesses e toda a sorte de recursos a fazê-lo um “peão” publicitário, ou melhor, um tipo de escada para o sucesso de alguns e reafirmar a autoridade de outros. Com o tempo, após idas e vindas entre diferentes guardiões e tutores, no intuito de salvaguardar-se, omite, recua, caminha solitário... Sua alma, contudo, permanece genuína; não se curva às falsas expectativas e imposições alheias, pois neles não encontra a confiança suficiente para considerar a ajuda de que não precisa, quando não se dispõem a socorrê-lo no necessário.
Prof. Daumer, o primeiro preceptor, a despeito da boa vontade, interesse e empatia com o jovem Hauser, não tinha resolução e galhardia suficientes para continuar o trabalho de educação, para sustentá-lo emocional e espiritualmente. De todos, foi ele e Clara os mais próximos de uma amizade, sem levar em conta os esforços do Presidente Feuerbach que, desde o início, custeou a subsistência de Kaspar, além de empreender todos os esforços para resgatar-lhe o passado e as origens. Os demais, em escalas diferentes, projetavam, no jovem, seus preconceitos, juízos e sentenças. Nesse emaranhado de cobiças e inconveniências, ele experimentou o engano, indiferença, traições, desprezo, ameaças. Para ele, sonhos e pesadelos se entremeavam à realidade, de maneira que a sua índole ainda precoce não estava apta a elucidar; quanto mais as diversas manifestações negativas recrudesciam, cuja motivação era-lhe completamente inalcançável, mais confuso e desarticulado ficava.
Foi, pouco a pouco, fechando-se em seus delírios e anseios, a planejar o jeito de safar-se do labirinto ao qual pertencia, sem se preocupar na autodefesa, a ouvir silente denúncias, humilhação e calúnias. A última esperança estava no policial Schildknecht, e por ela aguardou. Mas após a primeira ameaça e tentativa de assassinato, em Nuremberg, a demora em obter a resposta do soldado turvou-lhe ainda mais o espírito, invadindo-o uma miséria da qual não conseguia mais escapar. Tudo parecia ruir; havia apenas a nesga de luz onde a escuridão teimava ocultar. Kaspar, o homem improvável, culpado por ser e não ser em meio a profusão de conceitos, não era mais humano, era apenas uma ideia, muito diferente da simplicidade e primitiva ingenuidade que homens e mulheres, em sua maioria, não conseguem admitir ou aprovar.
Resta esquecer, e deixar o mito suspeito de produzir, ele mesmo, a obra que não lhe pertence e a honra quase sempre negada.