Jorge F. Isah
Este romance
estava no aguardo de uma brecha em minhas leituras já há algum tempo. Para ser
sincero, comprei o livro há uns cinco anos, mas somente agora, em meio a Santo
Agostinho, Murilo Rubião, Santo Atanásio e J.M. Coetzee, pude me debruçar sobre
o volume. E qual não foi a minha surpresa com o tom farsesco, cínico e
debochado da narrativa de Pirandello? Humor refinado e reflexivo, permeado por
uma escrita ágil, límpida e agradável, que me fez concluir a leitura em menos
de três dias.
Mas, de que se
trata? Bem, não farei uma sinopse ou resumo, pois sabe que não é minha maneira
de resenhar qualquer leitura. Existem, contudo, algumas perguntas que podemos
fazer:
1)
É possível deixar de ser quem se é? E
transformar-se em outra pessoa?
2)
Quais as implicações em assumir outra
identidade?
3)
Qual o custo para se construir uma nova história
de vida e caráter?
4)
Por que se quer abandonar uma vida/identidade e
assumir outra?
5)
O fracasso é individual? Ou pode ser colocado na
conta de outro?
Essas são
algumas perguntas que o autor se dispõe a responder (sem necessariamente
respondê-las), com uma porção de ironia e troça que transforma o protagonista
em motivo de boas risadas, em meio as análises e impressões de sua conduta como
fugitivo de si mesmo. Não é um livro escrachado, pelo contrário. A escrita de
Luigi é elaborada, afiada, esmerada, mesmo diante da aparência de simplicidade,
e atinge em cheio os objetivos propostos: o questionamento moral, ético e
filosófico do que é a vida, a individualidade e sociabilidade. Em alguns momentos, ela resvala no estilo
folhetinesco, sem contudo adentrá-lo. É um namoro que não se concretiza.
A partir da
futilidade e indolência com que trata a própria vida e as relações sociais, Mattia
se vê na encruzilhada de assumir a culpa ou reputá-la a outrem, no caso, a
sogra e o casamento. A ruína financeira, a mediocridade intelectual, a perda do
estilo de vida hedonista, e a busca pelo sustento, são fatores com os quais ele
não pode conviver. Para um jovem capaz de liquidar o patrimônio familiar com
vulgaridades e desperdício, ociosa e levianamente, o trabalho era um dos piores
dos seus temores. E o assédio de credores, e as ininterruptas censuras da sogra,
tornava tudo ainda mais insuportável e claustrofóbico. A vida lhe era uma
prisão, de forma a não ver qualquer possibilidade de se libertar.
Entretanto, em
um golpe de sorte, Mattia recebe uma grande soma, uma fortuna capaz de
dispensar-lhe uma existência tranquila, sem excesso de conforto, mas capaz de
conservá-lo distante do trabalho e responsabilidades. Para isso, seria
necessário abdicar da antiga vida, fugir e esconder-se em outra personalidade.
Em nova reviravolta, é dado como morto, facilitando, e acelerando, os planos da
nova estratégia: abandonar quem era para tornar-se em quem quisesse. Não é esse
o desejo da maioria? Mesmo que apenas em algum momento da vida? Não nos
escondemos nas histórias alheias para sonhar um novo roteiro existencial? Não é
este o papel dos livros, filmes, novelas? Criar um mundo virtual ao qual nos
apegar? E assim arrastar-nos, com algum frescor, no curso própria da vida?
Na verdade, a fuga de Pascal é interior, muito
mais do que qualquer fator exterior possa representar. Ao pensar nos seus
problemas como oriundos dos credores, da fortuna dilapidada, do casamento
corriqueiro, da esposa controlada pela sogra, ele preservava a si mesmo de
qualquer responsabilidade e dever de mudança. Para isso, nada melhor do que
deixar “morrer” o velho Pascal, e das suas cinzas nascer o Meis, certo?...
Talvez. Por que o novo homem seria mesmo novo? E não incorreria nos velhos
erros e vacilos do velho homem? Haveria nele a capacidade de levar até o limite
a sua nova figura? E manter intocada a nova reputação? Ou tudo estaria, como
antes, sob a ameaça do seu caráter sucumbir à vontade? E desta não ser
suficiente para encobrir aquela?
Em uma
reviravolta na reviravolta, Meis se vê acuado; e a solução é outra senão ... a
morte! Matar o novo homem para que o velho sobreviva, reviva. Porque o novo se
mostrou tão ou mais insuficiente e medíocre do que o antigo. E, se no fim das
contas, viver a fantasia ou o sonho de uma nova vida se mostrou ineficiente e
aflitiva, o retorno à personalidade original, com todos os elementos de uma
história real, ainda que inexpressiva, se configurou em única saída. Talvez não
seja possível apagar ou destruir aquilo que se é ou se fez; e entre o sonho e a
realidade, encarar a segunda seja um passo para o amadurecimento, alívio e
antídoto para a mentira.
Pois, nem
mesmo a paixão pela sóbria, frágil e doce Adriana foi suficiente para adequá-lo
à nova vida, e fazer de Meis um vivo entre tantos mortos. De alguma maneira, o
bem que Adriana merecia era-lhe impossível dá-lo, então, por que subsistir a
farsa se ele mesmo não se convencia do seu sucesso? Melhor era reviver o morto
e torná-lo vivo entre tantos outros, vivos e mortos; e não fugir como um cão do
que fora, e ainda era, e de quem não podia se desvencilhar.
O fato é que
nem mesmo uma ou outra vida foram capazes de satisfazer e trazer paz ao angustiante
e atribulado Mattia, que feito novo, preferiu mesmo as agruras do velho, em meio
às estripulias de um sátiro.
Este livro,
certamente, aguçou-me a conhecer melhor a obra de Pirandello. E espero, com a
graça de Deus, fazê-lo!
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Avaliação: (***)
Título: O Falecido Mattia Pascal
Autor: Luigi Pirandello
No. Páginas: 320
Editora: Abril Cultural
Sinopse: "Maldito seja Copérnico!”. Assim o personagem Mattia Pascal resume e define o sentimento de irremediável solidão do ser humano quando toma consciência de si mesmo e da sua pequenez diante do universo. Obra-prima de humor peculiar, O falecido Mattia Pascal (1904) é o mais célebre romance de Luigi Pirandello (1867-1936), no qual o autor, ao abandonar definitivamente os esquemas narrativos tradicionais, denuncia a miséria das relações humanas e a angústia existencial que acompanha o início do século XX. Mattia Pascal é um homem que, por uma maquinação do acaso, vê a possibilidade de assumir uma nova vida, fugindo de uma existência medíocre e humilhante. Nessa nova vida, ele é outra vez envolvido pelas convenções e regras das quais tentou escapar. No retorno à sua cidade natal, descobre-se enredado em uma situação paradoxal da qual é possível sair somente com a autoexclusão da vida. Autor do igualmente consagrado texto teatral Seis personagens em busca de um autor e Prêmio Nobel de Literatura em 1934, Luigi Pirandello criou uma das obras mais originais do início do século passado, marcada por buscar uma reflexão sobre a fragilidade da condição humana diante da espiral sem saída que é a vida. No momento mais crítico de sua vida – desprezado pela família, acossado por credores, com um trabalho medíocre –, um golpe do acaso muda a vida do jovem Pascal, que ganha uma pequena fortuna num cassino e, ao mesmo tempo, é dado como morto, pois o confundem com um cadáver achado em sua cidade natal. Decide, então, assumir uma nova identidade e parte em viagem pela Europa, de modo aventureiro, envolvendo-se em contínuos contratempos"