24 janeiro 2020

Morte em Veneza: A morte por um desejo







Jorge F. Isah



“Morte em Veneza” é um livro, no mínimo intrigante. A prosa suave, plácida e incrivelmente detalhista de Mann, o torna em um dos escritores mais caudais da história. Sua obra, composta de poucos, mas densos livros (tanto no volume, quanto na trama e personagens) não tem cortes repentinos e situações bombásticas, como boa parte dos escritores modernos parece querer esculpir seus livros. Ela vai em uma crescente, lenta e cuidadosamente se desenvolvendo, até que o leitor se vê irremediavelmente fisgado, e incapaz de largar o livro, por maior que seja.



Este, contudo, seria uma exceção, ao menos quanto ao seu tamanho. É uma novela de pouco mais de noventa páginas, que se pode ler de uma sentada, o que não seria aconselhável. Mas, do que trata o livro? Ele fala da beleza, sobretudo da beleza perdida pelo protagonista (um homem de meia-idade), escritor famoso e laureado, que está com a vida consolidada no âmbito profissional, pessoal e familiar, e em busca de novos ares, a fim de injetar um novo rumo a sua carreira.


Em férias, von Aschenback, chega a Veneza, e encontra, no hotel, o jovem Tadzio (jovem é eufemismo, pois o rapaz é quase uma criança), um garoto polonês de beleza arrebatadora, causando assombro ao escritor. Aschenback sente-se seduzido pela graça e encantado com a perfeição escultural do jovem, tornando as suas férias em uma obsessiva perseguição visual, no vislumbre delirante de um amor platônico, na intocabilidade do tato, no desejo ilícito, na reprovável insídia de acalentar o amor infame.
Mann retrata os dramas e ensejos do velho escritor, mostrando os seus conflitos morais e íntimos, a insanidade e vergonha com que ele se avalia, entretanto, incapaz de detê-lo do desejo imperfeito do amor indigno. Um amor fadado à morte, e que consome a alma de Aschenback. Não há paz, nem consolo, ou alívio na atormentada cobiça, pelo delito de um adulto ansiando o amor de uma criança. Nem mesmo as cenas mais pueris, em que os infantes se envolvem, são o alerta para demover o escritor da sua obsessão. O ridículo se vislumbra como um fato mais que comprovado. O crime, às portas da concepção, ao menos na mente perturbada do escritor.

Mann constrói um livro que, pela mão de outro soaria apelativo, quando não um pastiche de dramalhão gay. Há momentos de ternura, de cumplicidade e afeição, provando que até mesmo os loucos e doentes têm a sua porção sensibilidade. Mas ela não absolve Aschenback, nem cria empatia no leitor, por mais tortuoso seja o seu dilema.

Quando o barbeiro se oferece para “repaginar” o visual de Aschenback, pintando-lhe os cabelos grisalhos, maquiando-o para esconder-lhe a idade, perfumando-o, ele se apercebe do ridículo em que se apresenta, mas o desejo suplanta-lhe a razão e o bom senso, cedendo ao escárnio, a zombar-se de si mesmo.

O texto de Mann, como sempre primoroso, serve como o retrato de uma causa indigna, de uma defesa não sustentável, mesmo que se possa, em algum sentido, se compadecer da aflição romântica do protagonista (pela qual muitos de nós já passamos também; afinal, quem não morreu de amores ao menos uma vez?), ela não traz enlevo, mas a certeza de ser imoral e perversa. Mesmo que Mann discuta a perda da beleza, da juventude, e a sua busca na beleza e juventude alheia, a narrativa nos remete à pedofilia, o controle do mais forte, a animalidade humana. Se no início havia o fascínio pela formosura, remetendo-o à perfeição da criação humana, e o próprio Imago Dei presente no homem, ao espírito que eleva o homem até o ser divino, ele se transforma num desejo indigno, perscrutador, maligno.

É possível até mesmo se discutir a arte pela arte, e encontrar vários elementos simbólicos na narrativa de “Morte em Veneza”, mas a despeito da capacidade de Mann de analisar e abordar praticamente tudo em suas obras, não há como não sentir uma aversão pelos sentimentos importunos, a ideia fixa de Ashenback por Tadzio.

Mann traça com maestria as fraquezas de um homem entregue a si mesmo e a sua impotência: a de ver o belo sem desejar corrompê-lo.
E a morte não poderia se dar em outro lugar, a não ser na idílica, angustiante e fatal Veneza.


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Avaliação: (**)

Título: Morte em Veneza

Autor: Thomas Mann

Editora: Saraiva

No. Páginas: 70





Sinopse: "'Morte em Veneza' aborda o fascínio mortal que a beleza física pode exercer. Gustav von Aschenbach é um escritor que, diante da pouca aceitação de suas últimas obras, decide viajar para Veneza para descansar. Já na cidade, depara-se com o belo inatingível, a perfeição estética do adolescente Tadzio, por quem se apaixona platonicamente. O velho escritor passa a vagar pelos decadentes, inspiradores e famosos canais venezianos, seus dias girando em torno da visão do rapaz, o que o impede de dar atenção aos boatos que circulam a respeito da epidemia de cólera que assola a cidade."


17 janeiro 2020

A Ilha do Tesouro ou Construindo Jackyll & Hyde





Jorge F. Isah


Depois de algumas décadas, refiz a leitura de “A Ilha do Tesouro”, meio que despretensiosamente, já que sempre considerei o livro infanto-juvenil (talvez por tê-lo lido umas duas ou três vezes até os 14 ou 15 anos). É um livro que prendeu-me a atenção pela volta à nostalgia, dos dias em que me imaginava um aventureiro corajoso e destemido em um mundo perigoso, mas completamente desconhecido. Devo tê-lo lido em dois ou três dias, nos momentos disponíveis entre o trabalho, os estudos e os afazeres familiares; o que acabava me deixando ansioso para uma folguinha e a volta à narrativa de Stevenson. 

Como curiosidade, vale lembrar que a ideia inicial de R. L. Stevenson era escrever uma história para o seu sobrinho (alguns julgam ser o enteado), algo que aguçasse a imaginação e fantasia do jovem; publicada inicialmente na forma de capítulos em uma revista da época, surgiu na forma de livro em 1883. 

A grande importância do livro, além do próprio enredo, foi trazer para o gênero (que não existia como tal) elementos que o caracterizariam depois. O mote de tudo é a busca pelo tesouro do “Capitão Flint”, um pirata terrível que supostamente havia enterrado uma grande fortuna. O motim dos tripulantes e a luta pela sobrevivência, enquanto a corrida ao baú continuava, são o pano de fundo para o desenrolar da estória. 

De um lado temos o “bem” nas pessoas do jovem Jim Hawkins (o narrador, em primeira pessoa), Capitão Smollett, Dr. Livesey e o Lorde Trelawney; em outro lado temos Hands, Papy, Arrow e o carismático, mas não menos temido, Silver. Ele é um caso à parte. E será dele a maior parte deste comentário. 

Situemos “A Ilha do Tesouro”, escrito cinco anos antes de “O Estranho Caso do Dr. Jackyll e o Sr. Hyde”, também conhecido como “O médico e o Monstro”. Encontramos na figura do cozinheiro Long John Silver (um disfarce para encobrir as suas reais intenções) características, ainda que preliminares, a comporem a personalidade central de Jackyll e Hyde, os conflitos entre o bem e o mal. É claro que nada disso é traçado de forma límpida, o tal do preto no branco, como se fossem meros espectros antagônicos, sem conflitos interiores, dúvidas e muito pouca certeza. Não sou dualista; entretanto, entendo que existe um conflito em curso na vida humana, ora pendendo para um lado, ora outro,  as vezes entrelaçados; ainda que boa parte das pessoas esteja em lados opostos, aparentemente, numa guerra de interesses. 

Silver é uma mente culta, de intelecto privilegiado, de retórica apurada, mestre tático, ardiloso, sedutor, capaz de convencer a pulga de que é o cachorro. Em contrapartida, é uma mente atormentada, capaz de cometer atrocidades e crimes sem um leve pestanejar, sem qualquer arrependimento ou compaixão. Da mesma forma que transparece eloquência, e uma boa dose de submissão aos seus empregadores, se o fim é apossar-se do tesouro de Flint, a fúria, a qualquer um que atravesse o  caminho, o tornará sanguinário e cruel. Nem mesmo o carinho e interesse quase paternal pelo jovem Jim (de certa forma, ainda que momentâneo, protegendo e ensinando-o os segredos da navegação) o impedirá de afastá-lo como um mero obstáculo a ser transposto até a posse do tesouro. 

Estando na meia-idade, e tendo uma perna-de-pau, sua força física, aliada a uma violência natural (sem nos esquecer da sua sagacidade), torna-o em um oponente quase imbatível. O temor pelo qual perpassam inimigos e aliados é completamente justificado pelo corpo e mente diabólicos de Silver. A luta dele é pela sobrevivência, mesmo que decida-se por um lado, e depois por outro, os interesses são os de preservar-se a todo custo, ainda que resulte em dupla traição: aos antigos inimigos feitos novos amigos, e aos antigos amigos em inimigos. 

Existe alguma semelhança na construção de Silver e Jackyll/Hyde, numa luta ferrenha entre as virtudes e os vícios, travadas na alma do mesmo homem. 

Na teologia cristã, e na vida de cristãos conversos, essa batalha se trava no âmago, em que, transformados e regenerados por Cristo, ainda se vive com a natureza pecaminosa. Em vários textos bíblicos temo-la como a “luta entre o espírito e a carne”. Essa é uma realidade vivenciada em maior grau pelos cristãos, cientes do que seja o bem e o mal, o moral e imoral, vida e morte. Mas mesmo os não-cristãos têm em si a centelha do Imago Dei; e trava-se a mesma disputa, por causa dos atributos divinos transmitidos ao homem quando da sua criação. 

Por que toquei nesse ponto? Porque a boa literatura não prescinde a realidade, muito menos a realidade moral, da qual Silver e Jackyll/Hyde são exemplos do que somos, fomos ou seremos, em algum momento e alguma proporção. Ainda que a crueldade de Silver e Hyde não aflore em nossos atos, a certeza é de que, sem os aspectos da moral divina a nos frear, seríamos tão ou mais sanguinários que eles. 

Se levarmos em consideração que “O Médico e o Monstro” é uma aventura pela loucura, cobiça e depravação de Jackyll, a pretensão de se fazer Deus, como certo personagem do Éden, “A Ilha do Tesouro” não é menos uma aventura pela alma conturbada de Silver do que a caça à riqueza e poder. Por isso, Long John se inscreve no rol dos grandes personagens literários de todos os tempos, como um alerta para vencermos o mal. Por pouco, não pagou por seus atos, debaixo da benevolência do Dr. Livesey e de um acordo interessante a ambos. Fica contudo a imagem de que o homem sem Deus pode resistir ao apelo do mal por algo de divino que ainda reside em seu ser, mas de que, invariavelmente, ele será apenas o que é, um fugitivo do bem a cair nas malhas ou teias dos vícios e pecados. 

Ben Gunn entendeu, à sua maneira, aplicar engenhosamente os princípios morais, negando o que fora, para aliar-se àqueles que o salvariam. Ainda que tenha voltado novamente ao vômito como o cão... tempos depois. Mas vou parar por aqui, senão um comentário pode se tornar um ensaio. E estou longe de escrevê-lo.


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Avaliação: (***)

Título: A Ilha do Tesouro

Autor: Robert Louis Stevenson

Editora: L&PM Pocket

No. Páginas: 366

Sinopse: "Stevenson concebeu A ilha do tesouro para o divertimento de seu enteado, Lloyd Osbourne, que tinha doze anos em 1881. Escrevendo a seu amigo W. H. Henley a respeito do novo livro, ele declarou que "se isto não encantar os garotos, ora, então eles mudaram muito desde que eu era criança". Uma história de piratas, com um mapa, um tesouro, um motim e um cozinheiro de bordo com uma perna só, A ilha do tesouro permanece uma das histórias de aventuras mais amadas da literatura. - L&PM"





14 janeiro 2020

Prefácio ao Livro "O Morto Inacabado", por Michel Salomão




Jorge F. Isah


"O Morto Inacabado" está disponível para compra no site da Kálamos Editora (kalamoseditora.com) ou em amazon.com.br, em ebook e em papel (amazon.com) ao custo de, respectivamente, R$ 4,99 e R$ 46,55 + frete (o produto vem, em formato livro físico diretamente dos USA). 

Abaixo, deixo o prefácio do livro escrito por Michel Salomão (escritor, dramaturgo, ator, desenhista, e outros tantos talentos que Deus lhe deu), amigo de longa data, desde a época em que adentramos na Faculdade de Direito da UFMG. 

Chamar o prefácio de "aperitivo" seria injusto, ele faz parte de toda a refeição, que espero, seja lauta e possa levar o leitor a se identificar com o personagem e as situações, sabendo que, cada um de nós, pode, em algum momento da vida, receber a alcunha de o morto inacabado. 

Boa leitura!

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PREFÁCIO AO LIVRO "O MORTO INACABADO", 
POR MICHEL SALOMÃO
  

A desolação e a dúvida da morte permeiam essa obra de Jorge F. Isah, que traz um personagem cheio de angústias, as mesmas que todos nós possuímos e procuramos ignorar, as incertezas da existência, as impressões acerca do pai agonizante, da mãe sofredora, de parentes e amigos que passam e deixaram suas marcas, os remorsos, os medos, o abandono, um futuro que não se concretizou, um amor rompido premeditadamente, filhos que não nasceram, entre outros sofrimentos que fazem de nós, humanos, tão parecidos. 

Não, o livro não fala de zumbis, mas é quase isso: fala sobre o vivo quase morto, ou sobre o morto ainda vivo, condição que muitos de nós passamos a assumir por inconsciente negligência. Fala sobre as impressões de uma vida quase sempre entediante, bem diferente do que acontece na maioria dos filmes e livros. 

Amigos há três décadas, aconteceu de conhecer o Jorge em uma sala de aula do curso de Direito, na Universidade Federal de Minas Gerais, quando vi aquele rapaz entediado, sentado no fundo da sala, olhando para o vazio através da janela. Eu tinha 17 anos à época, era um rebelde tímido, me aproximei e logo começamos a disparar sobre literatura. Daí começou a nossa amizade, que teve longos intervalos, pois cada um foi cuidar de sua vida, de sua família, da profissão, mas o laço permaneceu, mesmo que por longos telefonemas ou por intermináveis textos trocados pelas redes sociais, além de encontros esporádicos que quase sempre davam continuidade ao assunto interrompido no anterior; e não foi com surpresa que recebi este convite para fazer o prefácio de seu novo livro, “O Morto Inacabado”, quando alertei para o fato de que talvez não tivesse capacidade para tal, pois, sem falsa modéstia, considero-me um escritor “descompromissado”. Bem diferente do Jorge, que é muito técnico e dedicado. 

Eu o aconselhei a dar títulos aos capítulos, para facilitar o entendimento dos leitores (entendo o porquê dele não ter aplicado a sugestão, mas não vem ao caso expô-la), pois não é uma leitura fácil, a não ser que você esteja acostumado a ler Dostoievski, na minha opinião, sua mais forte influência, pois ele entra com facilidade daqueles questionamentos existenciais entrecortados com pequenos diálogos triviais, possivelmente, apenas para comprovar que seus personagens estão mesmo vivos. 

Também conheço seu incansável trabalho religioso, na tentativa de salvar as pessoas dessa “morte em vida”, e aprecio sua determinação, apesar de, nesse trabalho, não entrar tão profundamente nessas questões como em seus outros livros, talvez para despertar determinados questionamentos nas pessoas que passam por idêntica situação de seu personagem central, que vive essa aparente morte. 

Uma aventura instigante e investigativa da alma de todos nós. 


Michel Salomão







Livro: O Morto Inacabado

Autor: Jorge F. Isah

Editora: Kálamos

Número de Páginas: 261 (ebook) e 453 (papel)


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