18 maio 2022

A Morte de Ivan Ilitch - Léon Tolstói

 




Jorge F. Isah

 

Mais do que a descrição da morte física (uma descrição tão detalhada e assustadora que senti as dores de Ivan, o personagem principal, como se minhas fossem), o livro descreve uma destruição progressiva e inevitável da vida pessoal e familiar de Ivan, onde muros eram construídos e aumentados à proporção da solidão, distanciamento e autopiedade na qual se lançava no curso da doença. Uma doença muito mais da alma, do espírito, do que física, culminando nas incertezas e desesperanças em que se via cada vez mais profundamente atrelado e mergulhado. E isso refletia diretamente em seus familiares que sofriam com a sua dor, mas sobretudo com a sua injustiça ao imputar-lhes a causa do seu mal.

De um problema físico, Tostói aborda, delineia e expõe as feridas e doenças da alma, em que as relações se tornam em angustiante tristeza e flagelo; a luta insana por conforto enquanto se trava uma batalha sem vitoriosos, todos vencidos.

A morte, tão presente, trazia ao homem confiante e seguro de si mesmo, satisfeito com o seu sucesso, suas realizações e conquistas, como o era Ivan, sentimentos de autocomiseração, falta de piedade, desamor e sobretudo medo; um medo tão tangível, que o apreendeu como uma moeda entre os dedos; o medo desesperançado, de atroz mortificação, implacável em seus infortúnios e flagelos. Destaco dois trechos a descreverem essa percepção:

"Em alguns momentos, depois de um período prolongado de sofrimento, desejava, mais do que outra coisa - envergonhava-se de confessá-lo, alguém que sentisse pena dele como se tem pena de uma criança doente".

"Chorou por sua solidão, seu desamparo, pela crueldade do ser humano, a crueldade de Deus e ausência de Deus".

Aqui certamente  está a resposta que tão relutantemente Ivan desdenhou quanto ao sofrimento e a desesperança: o abandono do homem em si mesmo, e a procura tresloucada de encontrar as respostas e o alívio em outras pessoas, quando em si não as há, nem mesmo em outras; a despeito de se compartilhar a humanidade, ela não se explica, nem se entende, muito menos conforta ou consola, traz esperanças ou expectações benévolas se não tiverem no Criador os seus princípios e fundamentos. Com isso, não estou a dizer que o homem, tal qual o conhecemos ou fingimos conhecer, ignorando suas origens e propósitos, é o “espelho” de Deus, ainda que o seja parcialmente e em algum sentido. Na verdade, se é fruto do acaso e forças impessoais, não há muito a ser descoberto além daquilo que somos ou podemos ser, sem ser o que imaginamos pela impossibilidade de sê-lo de fato.

Ivan esperava respostas que os seus interlocutores, ele e parentes e amigos, eram incapazes de decifrar, quanto mais explicá-las à luz das próprias consciências, autônomas e independentes. Então, não lhe restava outra coisa a não ser imputar nos outros, em Deus, ou fatalidades (a vida injusta, por exemplo) a sua própria incompreensão, ou melhor, a inaptidão para reconhecer o quão profundas, e até mesmo insondáveis, eram seus inquéritos... Somente Deus pode dá-las, e elucida-las, e mais do que isso, satisfazê-las, sem o que não restará nada a se fazer, a não ser sentir-se amargo e cínico, culpar a todos e tudo pelo que não se foi capaz de alcançar e não alcançará.

"Enquanto ela (a esposa) o beijava, ele (Ivan) odiou-a do fundo da sua alma e foi com dificuldade que conseguiu conter-se para não empurrá-la.

- Boa noite. Se Deus quiser, você dormirá bem!".

No final das contas, parece-me que Ivan não queria mesmo se curar (se não no início, durante a enfermidade agradou-lhe o sofrimento e a angústia e a indiferença, algo próximo da vitimização, e o medo que causava); e reunindo as forças que lhe restavam, sofria e fazia sofrer com empenho, a dedicação cega daqueles que ignoram o bem, não sabem vivê-lo nem deixam outros vivê-lo também. Apenas quando já não podia mais lutar, encontrou o sentimento de piedade pelos da sua casa, o que, de alguma maneira, trouxe-lhe paz e libertação, ainda que parcial, da morte iminente. Talvez esteja aí uma resposta ou fragmento de uma resposta, com a qual teve de lutar até se ver vencido. Da mesma forma que o antigo ditado diz, onde não há pão ninguém tem razão, pode-se dizer que onde não há amor há dor em profusão. E o que pode ser o amor se não um dom divino, no qual Cristo resumiu tudo: amar a Deus e ao próximo como a ti mesmo?

Ainda que tarde, Ivan talvez tenha experimentado uma centelha do amor, onde o corpo aflito poderia guardar uma alma confortada, ainda que enferma e à porta da morte.

Mais do que uma tragédia anunciada, Tolstói quis revelar a redenção, aquela pela qual somos finalmente tornados à semelhança de Deus... e apenas ele pode ordená-la.


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Avaliação: (****) 

Autor: Leon Tolstói

Páginas: 112

Editora: LP&M Pocket

Sinopse: "Esta obra mostra a história de um burocrata medíocre, Ivan Ilitch, um juiz respeitado que depois de conseguir uma oferta para ser juiz em uma outra cidade, compra um apartamento lá, para ele, sua mulher, sua filha e seu filho morarem. Ao ir para o apartamento, antes de todos, para decorá-lo, ele cai e se machuca na região do rim, dando início à uma doença"