09 janeiro 2023

Doutor Fausto, de Thomas Mann: tomando o lugar do diabo

 





Jorge F. Isah


Os livros de Thomas Mann não são fáceis de ler, muito menos explicar. Estão carregados de símbolos, analogias, referências históricas, literárias, filosóficas e religiosas que fazem a cabeça de qualquer um andar em círculos, feito barata tonta ou como o camundongo na roda, sem sair do lugar. Por isso, não é uma leitura a se fazer célere, mas requer tempo, ainda mais a necessidade de meditar em seu conteúdo parcimoniosa e diligentemente. Mann é meticuloso, detalhista e parece fazer uma pesquisa rigorosa dos temas e assuntos abordados em suas obras de forma a não apenas conhecer o assunto mas conhecer o suficiente para expô-lo como um mestre. Ele não se permite vacilos ou linhas supérfluas, pois tudo tem um propósito, cada personagem, lugar, ideia e ato. Óbvio ser um autor culto, no sentido mais reverente e erudito do termo, por isso não é igualmente fácil, e até aprazível, a leitura dos seus romances, novelas, contos e ensaios. É como alguém escavar uma grande rocha utilizando-se apenas de talheres: é preciso tempo, empenho e obstinação. Conheço algumas pessoas que desanimaram antes de uma dezena de páginas, alcunhando-o de pedante. Nada é mais injusto ou desproporcional do que isso. Eu mesmo vivo a indicá-lo a amigos e conhecidos, e depois de algum tempo, quando os interrogo, sempre me deparo com as justificativas: não tive tempo ou não gostei, é por demais grandiloquente. De minha parte, apesar de todas as dificuldades, impostas mais por minha própria defasagem do que alguma eventual falha intelectual-literária dele, insisto, e me deparo, não raramente, deslumbrado e arrebatado durante a leitura.

Fiz esta introdução para alertar o leitor de que as minhas impressões a seguir não são exaustivas ou dão a dimensão do universo “manniano”; são apreensões e impressões muitas vezes insatisfatórias e limitadas, na tentativa de arrastar um e outro para esse mundo complexo (não há aqui qualquer sugestão de hermetismo; fique claro!), entretanto fascinante e irresistível.

Quase todo mundo já se deparou, ao menos uma vez na vida, com a história de Fausto, o sábio humanista que vendeu a sua alma ao diabo (Mefistófeles) em troca da satisfação dos seus desejos. Mann utiliza-se da tragédia escrita por Goethe para fazer uma alegoria entre o personagem principal, Adrian Leverkühn, e a Alemanha, mais especificamente a Alemanha Nazista. Ao contrário de Goethe, o “Dr. Fausto” de Mann é implacavelmente derrotado; se em Goethe o “Fausto” alcançava a redenção, em Mann ele é punido severamente.

Mas antes de entrar nesse aspecto, há de se ressaltar o volume assombroso de informações contidas na narrativa sobre teologia, filosofia e, especialmente, música. Thomas teve o auxílio de Theodor Adorno (filósofo, musicólogo e compositor alemão pertencente à Escola de Frankfurt), que se tornou seu conselheiro, entre outros músicos e amigos, a elaborar os inúmeros detalhes e diálogos sobre composição musical. Chega a ser asfixiante o número de informações apresentadas, que para leigos e nada iniciados na arte criativa de ritmos e harmonias de sons como eu (em um trecho encontra-se pormenores a respeito do “dodecafonismo” criado por Leverkühn; entretanto, na vida real era originalmente de Schoenberg, e levou o autor a se retratar em edições posteriores, a reconhecer a técnica como criação desse), se apresenta instigante mas ao mesmo tempo intimidadora. Mann é sempre assim, ele não deixa nada apenas na superfície; escava várias e várias camadas até atingir as profundezas da alma humana, o conhecimento e a realidade como poucos autores são capazes de alcançar.

A história versa sobre a vida e obra de Adrian Leverkühn contada pelo amigo e admirador Serenus Zeitblom. Ambos vão estudar na universidade de Wittenberg (alusão a Lutero e o protestantismo), e Adrian pretende se formar em teologia. Entretanto, ao ouvir uma palestra de um musicólogo, Kretzschmar, que não acredita na subordinação da música e cultura à religião (esteticismo), se interessa por polifonia e harmonia, e segue para Leipzig a fim de estudar com o seu novo mestre. Com o passar do tempo, ele abandona a polifonia e os princípios tradicionais da composição clássica e se aproxima dos elementos atonais e sua caótica “organização”; era a história e os valores tradicionais sendo escamoteados em favor de uma nova ordem liberal e moderna, e levou ao colapso a maior parte do mundo. Assim, quando o narrador, ao vê-lo abandonar a teologia em favor da música, e as mudanças radicais de composição, começou a temer pelo futuro do amigo, em vista da sua abrupta mudança de objetivo: o afastar de Deus e achegar-se perigosamente ao mal. Com o passar do tempo e o envolvimento com estranhas companhias, se deparou com uma personalidade demoníaca, ao isolar-se, a demonstrar uma “frieza” até mesmo com a música, algo meramente racional e pragmático, apesar da sua genialidade.

Lá pelo fim do segundo terço, ocorre o pacto entre Leverkühn e Mefistófeles (um diálogo magistralmente composto por Mann), e este concorda em dar àquele a genialidade criativa, a fama e o reconhecido talento musical. Em contrapartida, existe um senão: Adrian está impossibilitado de amar e, consequentemente, ser feliz, além de sofrer com fortes enxaquecas e dores abdominais advindas da sífilis contraída com a amante, Esmeralda. Pouco a pouco a sua personalidade se tornará cada vez mais sombria, orgulhosa, desumana, ao ponto de o devotado Serenus (a antítese do temperamento irrequieto de Adrian) introverter-se, sintoma do agastamento pelas mudanças negativas. A degradação física, moral e espiritual de Adrian tem a Alemanha como pano de fundo. A sífilis tal qual uma ideologia totalitária a desprezar os valores morais e éticos do cristianismo em prol do niilismo e do esteticismo nacionalista (uma fusão destrutiva com o fim de se sobrepor e aniquilar qualquer forma de influência moral e cultural tradicionais), levará Adrian e a Alemanha ao mesmo fim, vitimados pela própria arrogância e autonomismo, levados à loucura e delírio máximo pelo narcisismo. Adrian se confunde com a história alemã do entreguerras, e perde a noção da ruína na qual se formou. E por causa do pacto diabólico, mesmo o pouco amor e empatia que lhe restava, transformou-se em tragédia na qual se arrasta a si e a outros pela vida.

Quanto a Serenus, a sua passividade em relação à autodestruição do amigo e consequente destruição de quem está próximo (o Midas ao contrário, onde o toque do mal produz apenas mal), inspira a reflexão em relação aos negligentes diante da possibilidade de resistência, à qual rejeitaram, deixando-se entregar à enxurrada de desgraças, conformados em deslizar a favor da correnteza. Ele mantém o relacionamento com Adrian numa espécie de cumplicidade, o fazer vistas grossas, ao receber alguma dignidade pelo tratamento familiar e exclusivo dispensado por Adrian, e o orgulho de participar do seu círculo de amizades. Não havia o porquê de confrontar o amigo, bastava acompanhá-lo, o mais próximo, em seu declínio moral e espiritual.

Em tempos onde o mundo é soterrado pela própria aspereza ideológica, política, cultural e intelectual, bem aos moldes da Alemanha pré-nazista, e potencializado por ela (o mesmo vale para qualquer governo marxista, socialista ou que o valha), onde os ideias revolucionários, juntamente com as chamadas “políticas sociais” e o liberalismo, são motes para o controle, manipulação e reengenharia da sociedade, os alertas de Dr. Fausto deveriam ecoar como sirenes antiaéreas, iguais às usadas na Europa durante a I e II Grande Guerra, pois a história é cíclica, de tempos em tempos se repete, e a tragédia fáustica parece próxima de se concretizar, todavia, em caráter global. Não à toa, a obra máxima de Leverkühn, o Apocalypsis cum Figuris, afigura-se literalmente o rumo maligno que a vida de Adrian/Alemanha tomaram ao desprezar os valores ordenadores da vida (refiro-me aos princípios cristãos), substituindo-os pelo colapso mortal e inevitável de uma ilusão de autonomia e tentativa de reconstruir o homem e o mundo. Em outras palavras, ao afastar-se de Deus e de sua condução, a humanidade depara-se consigo mesma em sua pior performance.

Ao descrever o pacto diabólico ficcional, Mann expõe a realidade do inferno, a insensatez e desvario de milhões, quiçá bilhões de adãos ao entregarem-se à cilada da serpente e desejar ser como Deus.


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Avaliação: (****)

Título: Doutor Fausto - A Vida Do Compositor Alemão Adrian Leverkühn Narrada Por Um Amigo

Autor: Thomas Mann

Páginas: 624

Editora: Cia das Letras

Sinopse: Último grande romance de Thomas Mann, Doutor Fausto foi publicado em 1947. O escritor fez uma releitura moderna da lenda de Fausto, na qual a Alemanha trava um pacto com o demônio - uma brilhante alegoria à ascensão do Terceiro Reich e à renúncia do país a sua própria humanidade. O protagonista é o compositor Adrian Leverkühn, um gênio isolado da cultura alemã, que cria uma música radicalmente nova e balança as estruturas da cena artística da época. Em troca de 24 anos de verve musical sem paralelo, ele entrega sua alma e a capacidade de amar as pessoas. Mann faz uma meditação profunda sobre a identidade alemã e as terríveis responsabilidades de um artista verdadeiro.




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