Lúcio Cardoso é mais conhecido por seu romance "Crônica da Casa
Assassinada", mas foi um escritor prolífico, de livros densos e linguagem invasiva, para poucos amigos.
Nas primeiras páginas, temos o relato intimista, subjetivo, em que não se vê
traços de bondade e beleza nos personagens, os quais são descritos em toda a
sua feiura e imperfeição.
Da mesma forma, os ambientes aos quais o protagonista, o
"desconhecido", apelidado de José Roberto por sua patroa
(demonstrando o desinteresse com as pessoas), são pobres, feios, desumanos, ou
excessivamente humanos, naquilo que de pior o homem possui ou faz.
Ainda que não saibamos muito ou quase nada dos personagens, a construção
narrativa é perpassada por uma "dor", como uma ferida que não quer se
cicatrizar. Lúcio deixa claro que eles são incapazes de ser felizes, de que,
provavelmente, a felicidade não é algo que lhes foi destinada pela sorte. Por
isso a amargura, por isso a tristeza, por isso a mesquinhez, por isso a
indiferença, por isso a desilusão, e ainda mais a solidão... há apenas a disputa, e nenhuma
possibilidade de afeto. Podem ser comparsas, jamais amigos. Podem relacionar-se, mas quase sempre em um estado de malquerença e ressentimento.
O texto é poético, em tons poéticos, o que pode dificultar um pouco os leitores
menos acostumados a uma linguagem pouco coloquial e direta.
Cardoso descreve o homem como se não houvesse culpados pelo que são ou fazem. O
destino os tornou feios e cruéis, não podem evitar sê-los, não há o que ser feito
para transformá-los.
Na verdade, o homem é culpado pelo que ele é e pelo que constrói ou destrói, e
deixado à sua própria natureza, certamente perpetrará o mal. Pena que Cardoso não tenha entendido a mensagem de Cristo, se não saberia que para o homem
impossível e impossibilitado, Deus o possibilita e o torna possível no seu
amor.
Há traços religiosos ou, pelo menos, o que se pode chamar de
religiosidade no livro. A pergunta é: pode o homem livrar-se do pecado e de si
mesmo? Ou é refém da sua natureza e das armadilhas do mundo?
Para Lúcio, o homem é o que é, e nada pode impedi-lo de sê-lo. Parte disso
esconde a verdade de que Deus controla o mundo, as pessoas e os seus
pensamentos, a fim de que o seu eterno propósito se cumpra.
Mas o que Deus tem a ver com literatura? Tudo. E o que quero dizer de Deus num
livro sobre o homem e a humanidade?
Bem, se não posso visualizar o maravilhoso e santo projeto de Deus em tudo o
que faço, leio, vejo e penso, o que me vale a fé? Tenho de ser capaz de
perceber nos mínimos detalhes a mão soberana e justa do bom Deus.
Portanto, o "Desconhecido" tem tudo a ver com Deus.
Lúcio criou um personagem que não se adapta, ao mesmo tempo em que se conforma
com a sua condição. Ele delineia traços nitidamente homossexuais ao seu
"José Roberto", que nutre uma admiração por Paulo, o jovem másculo
com cara infantil (o platonismo do protagonista, antes de ser um alívio é uma
perene dor), e uma aversão a Miguel, o protótipo do "bronco", o
homem rude que o persegue, e que funciona como uma metáfora à sociedade que
rejeita o estigmatizado gay.
Da mesma forma, Aurélia é uma "ode" ao feminismo, ainda que seja uma
mulher perversa, odiosa e vingativa. Mas ela é dona do seu nariz, e faz quase
tudo o que ele (o nariz) permite fazer.
Elisa, a empregada, pode ser o símbolo do homem/mulher oprimido(a), preso à
infalibilidade de sua condição submissa, incapaz de se libertar das amarras
sociais/afetivas às quais está atrelado(a).
No fim das contas, pode ser isso, mas sobretudo o autor fala da
impossibilidade humana, da incapacidade dele se livrar daquilo que foi
previamente traçado pelo destino. Portanto, ele não é culpado, mas uma vítima
de algo maior. É prisioneiro em si mesmo.
O desconhecido é um homem solitário, que busca um refúgio, algo que aplaque a
dor insidiosa que o aflige. Para ele, não há alívio, nem como se curar. A sua
vida está definitivamente marcada, e nada que faça poderá alterá-la.
Há o fatalismo, sem qualquer solução (o fatalismo por si só é indiferente e,
portanto, não se preocupa em solucionar nada, apenas o de acrescentar mais
sofrimento). Nem para a solidão, nem para a homossexualidade, nem a maldade. O
pecado aflige, porém, é inevitável, insolúvel.
Há apenas o desabafo, ou o choro fugidio por entre as sombras.
O homem perdido somente pode se encontrar em Cristo; firmado na Rocha, o pouso
é seguro, a paz reina, há esperança, e a certeza de a dor, as lágrimas e o
pecado serem destruídos, assim como a morte.
Para Lúcio a morte é parte da solução. Mas creio que, em algum tempo, ele não
pensou mais assim.
Para o autor, não há limites à dor e ao sofrimento. A
natureza humana é a própria fonte do mal, inesgotável, e por ele é que se vive
ou morre.
O protagonista é um homem desiludido consigo e com o mundo. Apesar de ser um
homem do campo (parece que era de uma classe social elevada; ao menos recebeu
uma boa educação, evidenciada pelos livros que transportava em sua maleta), ele
cultiva um certo niilismo, e a própria impossibilidade de ser feliz, ao
conviver com uma "doença" (a qual não é citada mas indicada
subliminarmente como o homossexualismo) que o consome, não restando qualquer
significado para a vida.
Da mesma forma, os demais personagens se agarram a pequenas esperanças, de
domínio, de riqueza, de liberdade e de amor, e um a um veem-nas frustradas.
A morte parece a solução encontrada por Lúcio para tanta dor e maldade, mas é
apenas o final de um ciclo, e outro se inicia imediatamente, para terminar em
destruição.
O mundo de Lúcio Cardoso é um mundo sem esperança, fadado ao fim em si mesmo,
onde as pessoas são atormentadas por seus pecados, condenadas a jamais obterem
o perdão. É um círculo infindável onde o mal nunca será derrotado.
Uma pena que a visão de Lúcio o coloque em um beco-sem-saída; mas é
assim para àqueles que buscam solução em si próprios, como Lúcio (católico
praticante) desejou encontrar, e vislumbrou-se e aos demais em suas condições
de homens caídos e irregeneráveis. Pois somente em Cristo, e por Ele, o homem se
encontra na perfeita imagem de Deus.
*****
Há significado nas coisas? As pessoas podem dirigir seus
atos? Ou eles são inevitáveis armadilhas do destino? E a vida não tem nenhum
significado pessoal? E não passa de uma avalanche ininterrupta a soterrá-los? Existe esperança? Ou tudo se encaminha para o mais doloroso e prolongado desespero?
Mãos Vazias é a segunda novela do livro, escrita em 1938, em que se aponta, ou
melhor, estão presentes os ingredientes que seriam melhor trabalhados em
"O Desconhecido", o qual foi escrito num clima menos opressivo e
denso, porém, encontram-se ali o mesmo subjetivismo e niilismo do autor.
A narrativa é um esgar doloroso, onde as mulheres (neste caso, Ida) são
dominadoras e cruéis, onde os homens são tolos e ingênuos; onde o vazio e o
distanciamento da realidade remete-nos a uma narrativa esquizofrênica, a
existência a contemplar sarcasticamente a irrealidade incurável.
Então, para se libertar de toda a angústia, sofrimento, solidão e vazio, não
lhes resta outra saída senão impor o sofrimento aos outros, distribui-los
generosamente, e esperar que esse desejo anelado se realize através do pecado,
como se o mal fosse capaz de livrá-las do bem inalcançável, e tocá-lo
fizessem-nas esquecer a impossibilidade de se ter o bem.
A vida não é para ser vivida, mas sofrida.
Ida vive o egoísmo, o isolamento e o desprezo aos outros em si mesma, onde a
impossibilidade de afeto, carinho e bondade é o sangue que corre nas veias dos
mortos: os vivos contam os minutos para serem abatidos.
É como o choro convulsivo sem lágrimas a se derramar inutilmente por elas e
pelo mundo condenado e perdido, fatalmente arruinado. Não há culpa nem
culpados, simplesmente é-se inevitável viver o fim.
A solução para um mundo suicida é a fuga, mesmo que seja ao encontro da própria
morte.
Lúcio não parece tão à vontade nesse livro como em o
"Desconhecido"; talvez por causa da protagonista Ida, e do seu pouco
contato com o universo feminino (no sentido de entendê-lo).
Isso torna a narrativa mais impessoal, fria (talvez tenha sido o seu
propósito), onde as emoções acabam por delinearem-se pela própria ausência de
significância (e não insignificância), e pela visão de um mundo desajustado, em
que nada tem significado (olha o niilismo aí, novamente). As reações se sucedem como uma bola de neve morro abaixo,
sem a objetividade da bola de neve. São acontecimentos irracionais a seguirem
fatos igualmente irracionais, que redundarão em sequências igualmente
irracionais, num clima de realismo absurdo, bem ao gosto dos existencialistas,
onde o subjetivismo torna o existencialista o único designativo da ação, no
qual o mundo se molda, numa espécie de esquizofrenia coletiva; onde a desordem
individual é a desordem do mundo, e a falta de lógica e razão permeiam a
desilusão.
Todos os elementos da prosa de Lúcio estão presentes em "Mãos Vazias"
(pelo menos a maioria), mas a novela pode fazer o leitor sentir-se assim, como
o título indica, ainda que o livro esteja diante dos olhos e mesmo à mão.
Fica clara a impossibilidade de Lúcio apresentar alguma solução para os seus
dilemas¹, o que torna a sua escrita mais desesperadora, encaminhando o desfecho
para um final alucinantemente trágico, inevitavelmente trágico, onde a morte
não é capaz de esconder a dor, num mundo sujo, estupidamente previsível em sua
loucura.
Lúcio retrata bem o cotidiano, onde o pecado, o
individualismo e o isolamento só aproximam mais o homem do seu final sórdido,
triste, em que resta manter-se cativo à condenação eterna; e a liberdade
impossível de encontrar em si mesmo e no mundo, configura-se cada vez mais disposta a
capturá-lo.
Nota: 1- Não existe a necessidade dos autores de ficção apresentarem soluções para os dilemas propostos, para as dúvidas e questionamentos; não é isso que estou a exigir. O autor pode, simplesmente, propô-los, indagar, sem a ambição de solucioná-los. É o que Lúcio Cardoso faz nessas duas novelas: revelar os nós sem desatá-los.
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