16 agosto 2022

O desconhecido e Mãos vazias, de Lúcio Cardoso: a tragédia inevitável!

 


 






Jorge F. Isah


O Desconhecido é a primeira novela do livro, publicada originalmente em 1940.

Lúcio Cardoso é mais conhecido por seu romance "Crônica da Casa Assassinada", mas foi um escritor prolífico, de livros densos e linguagem invasiva, para poucos amigos.

Nas primeiras páginas, temos o relato intimista, subjetivo, em que não se vê traços de bondade e beleza nos personagens, os quais são descritos em toda a sua feiura e imperfeição.

Da mesma forma, os ambientes aos quais o protagonista, o "desconhecido", apelidado de José Roberto por sua patroa (demonstrando o desinteresse com as pessoas), são pobres, feios, desumanos, ou excessivamente humanos, naquilo que de pior o homem possui ou faz.

Ainda que não saibamos muito ou quase nada dos personagens, a construção narrativa é perpassada por uma "dor", como uma ferida que não quer se cicatrizar. Lúcio deixa claro que eles são incapazes de ser felizes, de que, provavelmente, a felicidade não é algo que lhes foi destinada pela sorte. Por isso a amargura, por isso a tristeza, por isso a mesquinhez, por isso a indiferença, por isso a desilusão, e ainda mais a solidão... há apenas a disputa, e nenhuma possibilidade de afeto. Podem ser comparsas, jamais amigos. Podem relacionar-se, mas quase sempre em um estado de malquerença e ressentimento.

O texto é poético, em tons poéticos, o que pode dificultar um pouco os leitores menos acostumados a uma linguagem pouco coloquial e direta.

Cardoso descreve o homem como se não houvesse culpados pelo que são ou fazem. O destino os tornou feios e cruéis, não podem evitar sê-los, não há o que ser feito para transformá-los.

Na verdade, o homem é culpado pelo que ele é e pelo que constrói ou destrói, e deixado à sua própria natureza, certamente perpetrará o mal. Pena que Cardoso não tenha entendido a mensagem de Cristo, se não saberia que para o homem impossível e impossibilitado, Deus o possibilita e o torna possível no seu amor.

Há traços religiosos ou, pelo menos, o que se pode chamar de religiosidade no livro. A pergunta é: pode o homem livrar-se do pecado e de si mesmo? Ou é refém da sua natureza e das armadilhas do mundo?

Para Lúcio, o homem é o que é, e nada pode impedi-lo de sê-lo. Parte disso esconde a verdade de que Deus controla o mundo, as pessoas e os seus pensamentos, a fim de que o seu eterno propósito se cumpra.

Mas o que Deus tem a ver com literatura? Tudo. E o que quero dizer de Deus num livro sobre o homem e a humanidade?

Bem, se não posso visualizar o maravilhoso e santo projeto de Deus em tudo o que faço, leio, vejo e penso, o que me vale a fé? Tenho de ser capaz de perceber nos mínimos detalhes a mão soberana e justa do bom Deus.

Portanto, o "Desconhecido" tem tudo a ver com Deus.

Lúcio criou um personagem que não se adapta, ao mesmo tempo em que se conforma com a sua condição. Ele delineia traços nitidamente homossexuais ao seu "José Roberto", que nutre uma admiração por Paulo, o jovem másculo com cara infantil (o platonismo do protagonista, antes de ser um alívio é uma perene dor), e uma aversão a Miguel, o protótipo do "bronco", o homem rude que o persegue, e que funciona como uma metáfora à sociedade que rejeita o estigmatizado gay.

Da mesma forma, Aurélia é uma "ode" ao feminismo, ainda que seja uma mulher perversa, odiosa e vingativa. Mas ela é dona do seu nariz, e faz quase tudo o que ele (o nariz) permite fazer.

Elisa, a empregada, pode ser o símbolo do homem/mulher oprimido(a), preso à infalibilidade de sua condição submissa, incapaz de se libertar das amarras sociais/afetivas às quais está atrelado(a).

No fim das contas, pode ser isso, mas sobretudo o autor fala da impossibilidade humana, da incapacidade dele se livrar daquilo que foi previamente traçado pelo destino. Portanto, ele não é culpado, mas uma vítima de algo maior. É prisioneiro em si mesmo.

O desconhecido é um homem solitário, que busca um refúgio, algo que aplaque a dor insidiosa que o aflige. Para ele, não há alívio, nem como se curar. A sua vida está definitivamente marcada, e nada que faça poderá alterá-la.

Há o fatalismo, sem qualquer solução (o fatalismo por si só é indiferente e, portanto, não se preocupa em solucionar nada, apenas o de acrescentar mais sofrimento). Nem para a solidão, nem para a homossexualidade, nem a maldade. O pecado aflige, porém, é inevitável, insolúvel.

Há apenas o desabafo, ou o choro fugidio por entre as sombras.

O homem perdido somente pode se encontrar em Cristo; firmado na Rocha, o pouso é seguro, a paz reina, há esperança, e a certeza de a dor, as lágrimas e o pecado serem destruídos, assim como a morte.

Para Lúcio a morte é parte da solução. Mas creio que, em algum tempo, ele não pensou mais assim.

Para o autor, não há limites à dor e ao sofrimento. A natureza humana é a própria fonte do mal, inesgotável, e por ele é que se vive ou morre.

O protagonista é um homem desiludido consigo e com o mundo. Apesar de ser um homem do campo (parece que era de uma classe social elevada; ao menos recebeu uma boa educação, evidenciada pelos livros que transportava em sua maleta), ele cultiva um certo niilismo, e a própria impossibilidade de ser feliz, ao conviver com uma "doença" (a qual não é citada mas indicada subliminarmente como o homossexualismo) que o consome, não restando qualquer significado para a vida.
Da mesma forma, os demais personagens se agarram a pequenas esperanças, de domínio, de riqueza, de liberdade e de amor, e um a um veem-nas frustradas.

A morte parece a solução encontrada por Lúcio para tanta dor e maldade, mas é apenas o final de um ciclo, e outro se inicia imediatamente, para terminar em destruição.

O mundo de Lúcio Cardoso é um mundo sem esperança, fadado ao fim em si mesmo, onde as pessoas são atormentadas por seus pecados, condenadas a jamais obterem o perdão. É um círculo infindável onde o mal nunca será derrotado.

Uma pena que a visão de Lúcio o coloque em um beco-sem-saída; mas é assim para àqueles que buscam solução em si próprios, como Lúcio (católico praticante) desejou encontrar, e vislumbrou-se e aos demais em suas condições de homens caídos e irregeneráveis. Pois somente em Cristo, e por Ele, o homem se encontra na perfeita imagem de Deus.

*****

Há significado nas coisas? As pessoas podem dirigir seus atos? Ou eles são inevitáveis armadilhas do destino? E a vida não tem nenhum significado pessoal? E não passa de uma avalanche ininterrupta a soterrá-los? Existe esperança? Ou tudo se encaminha para o mais doloroso e prolongado desespero?

Mãos Vazias é a segunda novela do livro, escrita em 1938, em que se aponta, ou melhor, estão presentes os ingredientes que seriam melhor trabalhados em "O Desconhecido", o qual foi escrito num clima menos opressivo e denso, porém, encontram-se ali o mesmo subjetivismo e niilismo do autor.

A narrativa é um esgar doloroso, onde as mulheres (neste caso, Ida) são dominadoras e cruéis, onde os homens são tolos e ingênuos; onde o vazio e o distanciamento da realidade remete-nos a uma narrativa esquizofrênica, a existência a contemplar sarcasticamente a irrealidade incurável.

Então, para se libertar de toda a angústia, sofrimento, solidão e vazio, não lhes resta outra saída senão impor o sofrimento aos outros, distribui-los generosamente, e esperar que esse desejo anelado se realize através do pecado, como se o mal fosse capaz de livrá-las do bem inalcançável, e tocá-lo fizessem-nas esquecer a impossibilidade de se ter o bem.

A vida não é para ser vivida, mas sofrida.

Ida vive o egoísmo, o isolamento e o desprezo aos outros em si mesma, onde a impossibilidade de afeto, carinho e bondade é o sangue que corre nas veias dos mortos: os vivos contam os minutos para serem abatidos.

É como o choro convulsivo sem lágrimas a se derramar inutilmente por elas e pelo mundo condenado e perdido, fatalmente arruinado. Não há culpa nem culpados, simplesmente é-se inevitável viver o fim.

A solução para um mundo suicida é a fuga, mesmo que seja ao encontro da própria morte.

Lúcio não parece tão à vontade nesse livro como em o "Desconhecido"; talvez por causa da protagonista Ida, e do seu pouco contato com o universo feminino (no sentido de entendê-lo).

Isso torna a narrativa mais impessoal, fria (talvez tenha sido o seu propósito), onde as emoções acabam por delinearem-se pela própria ausência de significância (e não insignificância), e pela visão de um mundo desajustado, em que nada tem significado (olha o niilismo aí, novamente). As reações se sucedem como uma bola de neve morro abaixo, sem a objetividade da bola de neve. São acontecimentos irracionais a seguirem fatos igualmente irracionais, que redundarão em sequências igualmente irracionais, num clima de realismo absurdo, bem ao gosto dos existencialistas, onde o subjetivismo torna o existencialista o único designativo da ação, no qual o mundo se molda, numa espécie de esquizofrenia coletiva; onde a desordem individual é a desordem do mundo, e a falta de lógica e razão permeiam a desilusão.

Todos os elementos da prosa de Lúcio estão presentes em "Mãos Vazias" (pelo menos a maioria), mas a novela pode fazer o leitor sentir-se assim, como o título indica, ainda que o livro esteja diante dos olhos e mesmo à mão.

Fica clara a impossibilidade de Lúcio apresentar alguma solução para os seus dilemas¹, o que torna a sua escrita mais desesperadora, encaminhando o desfecho para um final alucinantemente trágico, inevitavelmente trágico, onde a morte não é capaz de esconder a dor, num mundo sujo, estupidamente previsível em sua loucura.

Lúcio retrata bem o cotidiano, onde o pecado, o individualismo e o isolamento só aproximam mais o homem do seu final sórdido, triste, em que resta manter-se cativo à condenação eterna; e a liberdade impossível de encontrar em si mesmo e no mundo, configura-se cada vez mais disposta a capturá-lo.


Nota: 1- Não existe a necessidade dos autores de ficção apresentarem soluções para os dilemas propostos, para as dúvidas e questionamentos; não é isso que estou a exigir. O autor pode, simplesmente, propô-los, indagar, sem a ambição de solucioná-los. É o que Lúcio Cardoso faz nessas duas novelas: revelar os nós sem desatá-los.

_____________________________________ 

Avaliação: (***)

Título: O desconhecido e Mãos vazias (esgotado)

Autor: Lúcio Cardoso

Páginas: 320

Editora: Civilização Brasileira

Sinopse: 
Da vasta obra de Lúcio Cardoso, Mãos vazias (1938) e O desconhecido (1940) são novelas hoje quase esquecidas e, no entanto, das mais felizes e significativas. Sim, se foi a partir de A luz do subsolo, em 1936, que Lúcio se afirmou definitivamente como ficcionista, é, sobretudo, com Mãos vazias e O desconhecido que ele, além de conquistar a sua verdadeira fisionomia de escritor, chegou ao seu mot juste. Da primeira fase de sua obra, talvez sejam os mais instigantes sob o ponto de vista da concepção e da realização artística, tornando evidente a maturidade do criador de estados de alma, entre a razão e a loucura, traços até então bem raros no romance brasileiro. Seus personagens espelham a desconformidade do autor diante dos seus limites, a sua obcecada e torturada busca de redenção como homem e como artista. Demasiadamente humano, demasiadamente Lúcio"

















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