24 abril 2024

Os Mímicos - V. S. Naipaul

 






Jorge F. Isah
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Muitas vezes, pergunto-me o porquê de ler livros acadêmicos, exclusivamente políticos ou de ciências políticas, a esmerilhar algo um tanto tenebroso, outro tanto ilusório e quase nada ou nenhuma esperança real e factível, cheias de silogismos e teorias impraticáveis ou, se colocadas em prática, aniquilaria qualquer possibilidade de dias melhores e uma sociedade, digamos, menos capenga. Ah, alguém dirá: que raios está este escrevinhador a dizer com esta linguagem amorfa, ingênua e nada formal?... A bem da verdade, estou a dizer que a política, tal qual formulada pelos estudiosos, é o mesmo que acender velas para defunto.

Aprendi mais sobre ideologias e políticas, de maneira geral e, na prática, lendo Tolstoi, Dostoiévski, Mann e Naipaul do que em qualquer manual ou tratado. “Os Mímicos”, assim como “Uma Curva no Rio”, descreve em pormenores o desastre ou catástrofe de governos e suas plataformas, de revolucionários e seus delírios, assim como a realidade os mostra, sem os floreios, malícia e despudor de ideólogos e pensadores artificiais.

Em suas mais de trezentas páginas, o romance aborda aspectos da vida do personagem principal, Ralph Singh, nativo na ilha fictícia Isabella, no Caribe, de ascendência indiana, a interagir com descendentes africanos e ingleses, as principais etnias da região. É uma ex-colônia britânica, pobre, miserável, sem DNA cultural, afeita à corrupção e embuste governamental. Ralph escreve uma biografia de sua vida, a começar pelo momento em que parte a Londres, para estudar, casa-se com uma inglesa (Sandra), retorna à ilha, e exila-se, por fim, na capital bretã.

É um emaranhado diastásico, onde o estranhamento e mal-estar parecem aflorar nas escolhas, decisões e aptidões das personagens. Quase sempre ninguém se configura convicto ou certo do que fazer. Essencialmente, a humanidade é confusa, a oscilar entre o sim e o não como se estivesse a jogar dados; mas, especialmente nas figuras criadas ou copiadas de Naipaul, esta característica afirma-se radical.

Singh é um homem, depois um menino, novamente homem e, por fim, às portas da velhice, sem rumo, sem lugar, sem motivação. As coisas acontecem instintivamente: o sexo fortuito, a beleza apoderada, padrões duplicados... como um cão, incapaz de distinguir o certo e o errado (há controvérsias, pois muitos deles parecem mais racionais e lógicos que seus donos), ele é um tanto ingênuo e simplório em suas volições. Está disposto a construir-se a partir de estímulos, influxos, sem a devida consciência do que seja e o porquê de fazê-lo; outra vez, a indiferença da vontade, aleatória, a medir-se sem parâmetro, incondicional e espontânea, porém, infestada de artificialismo. E provém do exterior, a tomar-lhe a alma, a força contra a qual não se pode ou não se quer disputar. Já, no início, pode-se notar o teor de parte da narrativa: “Ainda não conhecia as normas sociais de Londres, nem conhecia as fisionomias e cútis das terras setentrionais; assim, o Sr. Shylock me parecia um homem distinto, como um advogado, empresário ou político. Ele tinha o hábito de pegar no lóbulo da orelha e inclinar a cabeça quando escutava alguém. Achei aquele gesto atraente e o imitei”. Não sem razão, o título é apropriado, em sua simplicidade, mas também na verdade avassaladora dos homens, e Singh é um deles, sem identidade, a não ser a do grupo, coletiva. Óbvia a influência social, afinal, ao “homo sapiens” é natural o ajuntamento, participação, conluios, seja para o bem ou mal, a união de personalidades na organização e disposição para fins comuns. Em proporções muito menores, Naipaul vislumbrava não apenas os gestos e ações sem palavras, mas o embuste e a farsa contidos nos discursos e atos, algo rotineiro e habitual de onde não se podia fugir ou desvencilhar-se.

Desde a infância, era tomado pelos eventos, pelas pessoas, sem conseguir guiar-se, deslocar aonde não fosse levado, mesmo que não cogitasse ir, e ir era tão somente não ficar parado, a necessidade de não refletir e, então, caso o fizesse, tomar as rédeas da própria vida. Algo semelhante aconteceu ao pai, ao ver-se repentinamente alçado ao status de líder rebelde por alguns, salvador da pátria para outros, e lunático ao ver da maioria. Sem entender as razões a levá-lo a abandonar a família (não havia força suficiente para tanto a não ser medo e atonia), criar uma espécie de “culto”, às vezes confundido com movimentação política, outras vezes apenas com seita ou delírio coletivo; constituir nova família e cortar os laços em definitivo.

Aparentando ser apenas um livro político, a contar as relações entre Império e Colônia, entre reinos e súditos, entre ricos e pobres, e os escalões burocráticos dos “terceiro mundistas”, com as mais prosaicas e escancaradas “mutretas”, dissimulações, conchavos e traições, Naipaul está muito mais a falar da inevitabilidade da vida, construída a partir do acaso, das indecisões, ou simplesmente das escolhas irremediáveis mas também descabidas, numa espécie de fatalismo social e, por que não, existencial. Como se o caos gerasse apenas caos e dele não houvesse formas de escapulir; como um buraco negro, se é atraído para uma queda vertiginosa e sem fim. A despeito do sucesso aparente, da fortuna evidente, da ostentação desmedida, ele costurava a teia do fracasso, e nela se viu capturado... quanto mais se movia, mais se enrodilhava: “Eu tentava construir uma personalidade para mim mesmo. Era algo que eu já tinha tentado fazer mais de uma vez, e eu esperava ver a resposta nos olhos dos outros. Agora, no entanto, não sabia mais quem eu era; a ambição tornou-se confusa e depois murchou”.

O tempo ia e vinha, independente das conquistas sexuais, financeiras, profissionais, políticas, tudo se voltava, novamente, ao ponto de partida. Por mais que se esforçasse, a resposta sempre parecia ser determinada pelo absurdo, o sem sentido, o ceticismo e o relativismo das verdades e valores tradicionais. Nada funcionou, nada funciona, nada funcionará; não existe saída além da barreira intransponível ao final do beco. A esperança não passa de conquistas, do sucesso em mantê-las o máximo possível, pois o fim é a única mola absoluta... sempre a impulsionar ao vazio, ao nada. Este também é absoluto, para onde convergem todas as demais coisas relativas. A fuga do caos, e a caça à ordem sempre o fazia retornar à desordem.

No fim das contas, resta apenas a solidão, aquela máxima popular: nasce-se sozinho, morre-se sozinho. O passado se afasta, confiscado pelas próprias lembranças; o presente vive dos restos de imagens (o que sobra ao biógrafo?), e a frouxidão, a escassez no iminente futuro. Singh não tinha nada e acabou por perder o que tinha. Não existe amargura, arrependimento, redenção, tão somente o homem a andar na roda como o rato, enquanto a exaustão não chega e os favores se dissolvem. Até quando se repetem, repetem, em sucessão de equívocos e indefinições?... “Mas certas sensações saltam por cima dos anos. Foi justamente esse tipo de inquietação que senti quando comecei a escrever este livro. Naquele momento, eu não tinha medo algum de que desabasse o hotel ou o bar, os dois únicos lugares que eu frequentava – e ainda frequento -, pude identificar, no entanto, com repulsa, aquela sensação de estar preso, ameaçado por perigos externos, aquela dor de sentir que todo um mundo foi destruído e anulado. Talvez fosse consequência do esforço de escrever”.

Por mais que ele se sentisse liberto das amarras do passado, da colônia e das tramoias políticas, dos surtos psicóticos socialistas, da vida panfletária no último terço do livro, Singh tinha por certo a vida ser algo propositalmente ilusório, espúrio. Não existe saída a não ser continuar esse “modus vivendi”, e mesmo nas batalhas encontrar a paz apócrifa, ilegítima. Qualquer outra prerrogativa era inadmissível; só existe liberdade dentro do ciclo, ao qual não se quer cair, mas é melhor se acostumar à queda.

“Ficava a me perguntar o que aconteceria se, de repente, um belo dia, de minha mesa atrás da coluna, eu visse Sandra entrar sozinha na sala. Sei perfeitamente o que faria naquela época; a pergunta não passava da manifestação de um desejo. Agora, porém, constato que estou mais próximo de minha posição original. Mais uma vez encaro meu casamento como um episódio entre parênteses; todas as emoções por ele provocadas me parecem profundamente fraudulentas. Assim, a atividade de escrever, apesar das distorções iniciais, termina por esclarecer, e chega mesmo a ser um processo de vida”.

E a vida parece, cada vez mais, o esconderijo da morte.

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Avaliação: (***)

Título: Os Mímicos

Autor: V. S. Naipaul

Editora: Cia. Das Letras

Páginas: 320

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Notas: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga



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