02 abril 2024

Louis-Ferdinand Céline: o "gaiato" maldito e genial!

 





Jorge F. Isah



Em 1982, por causa de uma crítica no caderno literário (ou cultural, sei lá), da extinta Revista Veja (se não morreu definitivamente, deve ser um defunto em decomposição, ao menos quando a li pela última vez), ouvi falar de um certo Louis-Ferdinand Destouches, ou mais adequadamente, Louis-Ferdinand Céline ou Céline para os íntimos. Neste ponto, deve-se ressaltar que a troca dos sobrenomes Destouches para Céline ocorreu pelo desprezo ao pai e o apreço e carinho pela avó; desta maneira, desfazia-se do passado doloroso, triste e rude, especialmente na infância, e adotava algo a remetê-lo aos poucos momentos de afeto e que talvez esperasse reencontrá-los no futuro. Entretanto, não foi bem assim; muito do inclemente e hostil relacionamento com os pais, professores, colegas e outros projetou-se exponencialmente nos anos que se seguiram. Para não atropelar os eventos cronológicos, voltarei à questão inicial.

 

                      


Pois bem, no início dos anos 1980 a editora Civilização Brasileira publicou em terras tupiniquins a obra “Morte a Crédito” (o título me deixou hipnotizado), segundo livro do autor. Eu desconhecia Céline quase completamente, mas me lembro de, anos antes, ler a respeito das influências de Henry Miller e o seu nome apareceu com moderado crédito. Não sei a razão do nome ter se fixado na memória, apesar de transcorridos três ou quatro anos; entretanto, ali estava, diante de mim, alguém cujo nome não era totalmente estranho, mesmo sem entender o porquê de ele ter sido abrigado no subconsciente, de um jeito involuntário mas proposital. Nisso consistia a minha conexão com Céline, não a partir dele mesmo, mas de Miller.

     

                                   Edição Brasileira                                                    Edição Italiana (Tea)                                           Edição Francesa   

Instigado pelo artigo da revista (não me lembro o nome do crítico a fazê-lo), fui até uma livraria, não sei se Leitura, Acaiaca ou Nobre, presumivelmente uma delas, sem a convicção de sê-lo, e comprei o exemplar recém lançado. Tinha em mãos o livro do escritor maldito, como o crítico o identificara, e nada melhor para um jovem com delírios reformistas do que alguém ou algo acompanhado da alcunha “maldito”. Era instigação e afetação em estado puro, quero dizer, não tão puro, meio viciado meio turvo, um pouco deficiente outro tanto falso, mas jamais insincero ou fingido (via de regra, não representa nada; ao menos me isenta da alcunha de hipócrita ou desonesto). Lembro-me de ser um dos primeiros livros comprados, já que a maioria das minhas leituras se restringia aos empréstimos da Biblioteca Pública de Minas Gerais... Não são, contudo, as minhas reminiscências o objetivo deste texto, mas contar um pouco do autor. Vamos a ele, então.


Céline nasceu em 1894, em Coubervoie, espécie de distrito na periferia de Paris, à margem esquerda do rio Sena. Filho de um corretor de seguros, era de classe média-baixa, e teve uma educação básica, sem destaque ou grandes expectativas. Estimulado pela avó, foi à Saxônia (Alemanha) e Inglaterra, por volta de 1908, estudar línguas. Em 1912 alistou-se no exército francês para, dois anos depois, lutar na I Grande Guerra, aos vinte anos, no 12º regimento de cuirassiers. Distinguiu-se em várias operações, muitas de alto risco, recebendo uma condecoração: a medalha militar em 1914, e posteriormente a Cruz de guerra, até ser ferido gravemente no braço e receber um tiro de raspão na cabeça, o que gerou um Tinnitus (o famoso “zumbido” no ouvido) a carregar por toda a vida. Considerado inválido, deu baixa no exército em 1915, e afastou-se definitivamente do conflito europeu.

                        
             Céline no exército francês                                                                                                 Céline no início da I Grande Guerra

 

Em 1916 foi para Camarões a trabalho numa madeireira, onde contraiu malária e desinteria, motivos a fazê-lo retornar à França para tratamento (1917). Concluiu o ensino médio em 1919, e casou-se com Edith Follet, filha do diretor da escola de medicina, onde começara seus estudos universitários, e com quem teve a única filha, Colette, nascida em 1920. Dois anos depois, licenciou-se em medicina, defendendo a tese sobre os trabalhos do médico húngaro e sanitarista Ignaz Semmelweis, nascido em 1818 e falecido em 1865 (o livrinho “A vida e obra de Semmelweis” foi publicado pela Cia. das Letras, e, como praticamente toda a obra de Céline traduzida no Brasil, encontra-se fora de catálogo).

 

   

              Publicado em 1998                                   Semmelweis defendeu a higiene básica, algo desconhecido até então, como lavar as mãos

 

Em 1924 tornou-se clínico em Rennes. Após um ano, decidiu abandonar a família e trabalhar para a Liga das Nações, sempre em viagens pelo mundo, quando conhece a América, Canadá e Cuba. Em 1928 retorna a Paris e abre um consultório em Montmartre. Por volta de 1931 começa a se dedicar à escrita (aos 37 anos), e são desta época os primeiros esboços e páginas do livro que o consagraria mundialmente, “Viagem ao Fim da Noite”, lançado em 1932, e que ganharia o renomado prêmio nacional Renaudot. Obra de cunho autobiográfico, relata as aventuras e desventuras de Ferdinand Bardamu durante a I Grande Guerra, dos suburbios parisienses à miséria da Africa Colonial, e daí para a América incrivelmente mecânica e rica, pós conflito. O tom do livro é niilista e nitidamente antropofóbico; uma aversão especial e bárbara à humanidade, suas instituições e a vida em geral. Para ele, existir era algo completamente absurdo, cruel e, por isso, digno do seu desprezo e ódio. É triste, pessimista, e quase nada de bom pode se ler, não raro nos deparamos com incursões cínicas, de humor cáustico e mordaz, em uma linguagem coloquial, cheia de gírias e palavrões, embaladas por uma erudição estilística meticulosa e perceptível; artefatos utilizados com maestria para ressaltar e explicitar o seu furor quase patológico contra a sociedade (hoje, passados quarenta anos, não sei se suportaria a leitura de Céline, realmente não sei. Preciso voltar a elas, e avaliar se tudo aquilo percebido nos longinquos anos 80 persiste encantando-me ou ser-me-á insuportável).

                 

                  Edição Brasileira                                                              Ed. Portuguesa                                             Manuscritos Completos


Erroneamente, muitos o reputaram como um autor esquerdista, e logo se tornou uma celebridade nesses ambientes, ganhando a simpatia, elogios e publicidade de Sartre e Beauvoir, por exemplo, da mulher de Louis Aragon, a russa Elsa Triolet (Ella Yuryevna Kagan, de origem judia), que traduziu a obra para a sua língua materna. Stálin também o considerou seu livro de cabeceira. E Trotsky não ficou atrás. Com tanta receptividade entre os marxistas, nada mais natural do que receber o convite para uma visita à URSS. Ao voltar, indignado com o que vira, escreveu o manifesto “Mea Culpa”, em que desanca o comunismo sem dó ou piedade, não deixando pedra sobre pedra, revelando toda a sua decepção com o estado geral daquele nação. A partir de então, os antigos “aliados” voltaram-se contra ele e jamais o perdoaram por seu líbelo anti-soviético.


                                                         Céline e Lucette a bordo do navio Meknès em direção à U.R.S.S (1936)

 

Em 1936 lançou “Morte a Crédito”, escrito ficcional mas de cunho também autobiográfico como “Viagem ao Fim da Noite”, utilizando-se dos mesmos recursos estilisticos aplicados anteriormente, e de certa forma aprimorados, onde descrevia a infância caótica do protagonista. É deste período o abuso do uso de reticências, de frases soltas, aparentemente desconexas, mas a imprimir no absurdo e sofrimento uma continuidade quase infinita... uma amargura sem fim.

Entre 1938 e 1941 lançou três panfletos antissemitas, nos quais se considerava “o maior inimigo dos judeus”. Isso lhe trouxe a pecha de maldito e também, pelos “méritos” do antigo admirador Jean Paul Sartre, o rótulo de colaboracionista com o Nazismo. Na verdade, Céline além de algumas entrevistas insanas, um ou outro artigo de jornal, nada fez diretamente que apoiasse o Nazismo e sua máquina de guerra. Para um escritor antimilitarista e flagrantemente contra as guerras e suas atrocidades nem em pensamento era de se supor o apoio à essa “causa perdida”. Muitos escritores taxados de colaboracionistas por gente como Sartre e Beauvoir foram linchados publicamente (o editor de Céline teve esse fim), cometaram suícidio (como Drieu La Rochelle), e outros como Malraux, Gidé e Du Gard tiveram suas reputações destruídas por acusações infundadas. O fato era que, como a maioria dos intelectuais franceses, Céline queria apenas continuar a escrever, publicar e receber os seus direitos autorais.

                   
                 Escrito antissoviético                                                                  Dois de três livretos antissemitas escritos entre 1938 e 1941

            

Quando eclodiu a II Grande Guerra, Céline tentou de todas as maneiras convencer os franceses a não entrarem em outro conflito mundial. As lembranças brutais ainda impregnavam as suas retinas, e não desejava ver a nação em novo confronto onde não haveria vencedores. Mesmo assim, alistou-se como médico voluntário em um navio francês, posteriormente afundado pelos nazistas. Na verdade, dotado de mente inquieta, odiava tanto alemães como aliados; para ele eram ambos portavozes de tragédias, destruição e morte.

Próximo do fim da guerra, partiu em uma viagem de fuga à Dinamarca, e os relatos podem ser lidos na trilogia “De Castelo em Castelo”, “Norte” e “Rigodon”, livro póstumo e inédito no Brasil. Na companhia da esposa Lucette e do gato Bérbert (seus fiéis e inseparáveis escudeiros), foi para o exílio salvar-se da prisão e da morte, pois já havia sido condenado publicamente. Perdeu todos os bens, confiscados pelo governo, e viveu até a morte na penúria. Morou vários anos em Copenhagen, conseguindo livrar-se da extradição, mas passou um ano e meio na cadeia. Anistiado, voltou em 1951, clínicando para uma freguesia paupérrima em Meudon, na casa onde viveria até a falecer, em 1961, vítima de aneurisma.

                             


                                                                                                Lápide de Céline, e Lucetteem Meudon, França   



                                                                                                                                 Céline, Lucette e o longevo gato Bérbert                                                               Céline e sua esposa Lucette 

            Céline é das figuras mais complexas e inexpugnáveis da literatura no século XX. Odiado por uns, amado por outros, há aqueles que conseguem distinguir o homem da sua obra, mas também aqueles que desprezam a obra pelo desprezo ao homem. De pensamento e posições contraditórias, alinhavá-lo ou melhor enquadrá-lo em algum grupo e sistema é praticamente impossível. Havia tão somente ele, o gênio criador e a criatura bestial, uma espécie de Dr. Jackyll e Mr. Hyde, onde frases minuciosamente escritas, a amálgama do erudito e do vulgar, da poesia e sonoridade musical, do furor e tristeza, da ira e o humor ousado, atrevido, fez dele, ao mesmo tempo, um autor admirado e desprezível, amado e detestado, condenado e absolvido, em cuja obra se misturam realidade e ficção, sem medidas exatas, sem proporções definidas; a dignidade literária contrastando-se ao palavreado cotidiano. Certamente, muitos dos seus inimigos não podem, nem poderiam, tirar-lhe os méritos literários; era admirado e citado como referencia por inúmeros autores: Henry Miller, Bukowski (e por tabela toda a geração beat), John Updike, Joseph Heller, Pedro Juan Gutierrez, Philip Roth (que afirmou: “na França, meu Proust é Céline”), entre outros. Não esqueçamos da banda “The Doors” que compôs a música “End of the night” influenciada pelo trabalho do Dr. Destauches.


                                                           Céline e seus cães, o gato Bérbert deitado e se lambendo à esquerda, e outro felino

           Antes de morrer, distante do inseparável Bérbert que havia partido, Céline perguntou a sua mulher, Lucette: "Por que escrevo?". E, no mesmo átimo, respondeu a si e a quem pudesse ouvir: "Para tornar os outros escritores ilegíveis." E assim, de alguma maneira, ele se despediu deste mundo como sempre viveu, um “gaiato” a provocar censuras mas também aplausos efusivos.


Lucette, vestida de bailarina, com um desenho de Céline


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Frases



“Eu nunca votei na minha vida... Sempre soube e entendi que os idiotas são a maioria, então é certo que eles vão ganhar.”

“Confiar nos homens é já deixar-se matar um pouco.”

“A pura verdade, devo admitir, é que nunca estive realmente bem da cabeça.”

“A tristeza do mundo tem maneiras diferentes de chegar às pessoas, mas parece ter sucesso quase todas as vezes.”

“Ser médico é uma tarefa ingrata. Quando é pago pelos ricos, corre o risco de ser considerado como um criado, quando é pago pelos pobres, um ladrão.”

“Estar sozinho é treinarmo-nos para a morte.”

“Uma cidade desconhecida é uma coisa boa. Essa é a hora e o lugar em que você pode supor que todas as pessoas que conhece são legais. É hora dos sonhos.”

                                                                                 Charge de Céline                                                                          Rascunho de “Viagem ao Fim da Noite”



“Quando não se tem imaginação morrer é pouca coisa, quando se tem, morrer é demasiado.”

“Não há tirano como um cérebro.”

“Tudo se expia, tanto o bem como o mal, cedo ou tarde se pagam. O bem é mais caro, forçosamente.”

“A alma é a vaidade e o prazer do corpo são.”

“O começo da genialidade é ficar com medo de merda.”

“Quanto à beleza, pelo menos sabemos que acaba por morrer, e por isso, sabemos que existe.”

“Não existe vaidade inteligente.”

“Meu problema é a insônia. Se eu sempre tivesse dormido direito, nunca teria escrito uma linha.”

“A experiência é uma lâmpada fraca que só ilumina quem a carrega.”

“A verdade é uma agonia sem fim. A verdade deste mundo é a morte. É preciso escolher: morrer ou mentir. E eu nunca me consegui matar.”

“Não é porque ela fosse feia, não, ela poderia mesmo ser considerada bonita, como tantas outras, mas era tão prudente, tão desconfiada que parava à margem da sua beleza, como à margem da vida.“

“A melhor coisa a fazer quando você está neste mundo, é sair dele. Louco ou não, com medo ou não.”

“É dos homens, e apenas deles, que se deve sempre ter medo.”

“Muitos homens são assim, suas inclinações artísticas nunca vão além de uma fraqueza por coxas bem torneadas.”

“Quando se torna realmente impossível fugir e dormir, então a vontade de viver evapora por conta própria.”

“Você pode se perder tateando entre as sombras do passado.”

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Nota: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga



2 comentários:

  1. Graça e paz Jorge.
    Eu queria ter essa habilidade para escrever. Admiro sua inteligência e perspicácia.
    Que Deus te abençoe cada vez mais.

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  2. Pr. Silas, meu amigo e irmão!
    Paz e graça!
    Fico muito feliz e agradecido pelo comentário, ainda que eu seja apenas um "operário" das letras; mas é sempre bom ouvir o estímulo, especialmente quando vem de uma pessoa querida como o irmão.
    E sim, o pr. tem habilidade na escrita, apenas temos jeitos diferentes de fazê-la, o que é normal.
    No mais, um grande e forte abraço!
    O Senhor o abençoe, sua família e ministério poderosa e graciosamente!

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