21 agosto 2024

Fome, de Knut Hamsun

 




Jorge F. Isah

 


Lá pelos meus dezenove, vinte anos, li este livro por indicação de Charles Bukowski, autor que sorvia compulsivamente, cujo estilo “despojado” de escrita admirava. Investi esforço e saí à caça de “Fome”, de Knut Hamsun, autor, inclusive, laureado com o Nobel. Até então, para mim, noruegueses eram pródigos na produção de bacalhau e petróleo; não imaginava que tivessem uma literatura “parruda” e um Nobel, apesar da Academia se instalar concomitantemente em Estocolmo e Oslo, jamais ouvira falar de um grande escritor, não obstante, seria suficiente como sinal de alerta, das coisas não serem como pareciam ser. Pois bem, acabei por encontrar uma reedição publicada pela Civilização Brasileira, com tradução de Carlos Drummond de Andrade.

Exemplar em mãos, passei à leitura, e, depois de três décadas, não me recordava de muitas coisas a não ser as andanças do personagem principal por Cristiânia (atual Oslo) em busca de trabalho, comida e abrigo, e notar algumas tênues semelhanças com Raskolnikov, de Crime e Castigo.

Ao passear pela Amazon, deparei-me com a nova edição da Editora Itatiaia, e resolvi lê-lo novamente. Algumas coisas se confirmaram: para um livro publicado em 1890, “Fome” tem uma simplicidade narrativa e estrutural quase inéditas. Não me lembro, no momento, de outro título, à época, a assumir essa posição.

Durante a leitura, foi possível notar a influência de Hamsun em autores como Hemingway, Fitzgerald, Miller e outros tantos, inclusive o próprio Bukowski. A cada página uma estranheza indefinida vinha intermitente, inexplicável, como alguém a girar em torno de si mesmo sem parar, feito piorra. Entretanto, engana-se quem não percebe as entranhas de “Fome”. O autor vive em constante dilema, seja no aspecto físico, a realidade da sua penúria e miséria, seja no insucesso da sua carreira de escritor, no amor, e em algum auxílio da sociedade, já àquela época tão preocupada e resguardada nas aparências. Se antes era um homem promissor, autor alvissareiro, bajulado por uns e outros, gradualmente se viu obrigado a penhorar livros, objetos pessoais, roupas e até mesmo os botões do seu casaco. Restaram-lhe as roupas de mendigo, sujas, puídas, desbotadas. Seria uma analogia ao seu estado de espírito? À degradação da sua alma? Como Dorian Gray no seu retrato?

“Sentado no banco, e absorto nessas reflexões, sentia-me cada vez mais azedo com relação a Deus, por causa de suas insistentes provações. Se ele supunha chamar-me para junto de si e aperfeiçoar-me pelo martírio, acumulando mortificações em meu caminho, estava um tanto enganado, podia garantir-lhe. Levantei os olhos para o Altíssimo, quase chorando de orgulho desafiador, e disse-lhe essas coisas uma vez por todas, mentalmente.” (pág. 23)

Esta mania que o homem moderno tem de eximir-se invariavelmente de qualquer culpa ou responsabilidade atribuindo-a a outrem, à sociedade ou a Deus, em última instância é apenas o reflexo do Adão perdido no Éden após a sua queda: culpa-se tudo e todos, menos a si mesmo, ao seu desejo ilícito e a sua imoralidade disfarçada, mas não menos exposta e saliente, como a se ver em meio às sombras, a fugir para a escuridão pensando ir à luz.

Se existe algo a propor loucuras na mente é a fome. Se há o “start” da fraqueza, é ela. Não subsistem os princípios morais, éticos e humanitários. Como a avalanche: é capaz de arrastar quem estiver por perto, sem muito esforço.

O personagem principal, cujo nome verdadeiro não sabemos, ao adotar vários no decorrer da trama, em seu orgulho e jactância, desce a escala moral em direção ao fundo do abismo. Entrega-se à mentira, dissimulação, furto, cobiça e tudo o mais que o seu estado deplorável permite. Entretanto, é incapaz de impedir a humilhação, o descrédito e a pilhéria. Vê-se, também, paranoico, enrolado e imerso na própria confusão criada. É a receita do desastre, agravado pelo desprezo à sociedade, à agitação urbana, aos valores impregnados na maioria das pessoas; ainda que, uma e outra, ao perceber-se alvo da gentileza e compaixão alheias, reconhece-as bondosas, mas trata quase imediatamente de despojar-se delas e as suas ações. Não pouco, me vi a perguntar: “Por quê?... Qual o sentido disso? De não se precaver e ser racional?... Parece não haver apenas uma indigência corpórea, mas espiritual; ao perder os sonhos, se encontrava igualmente desnorteado, sem identidade, sujeito às atitudes mais absurdas e levianas. Pode-se dizer estar às portas da loucura, produzida pela empáfia e cinismo. Logo, apesar do estado de penúria, os momentos de arroubos ufanos, predem-no a um mundo intolerável e indigno.

“Não obstante, aquele cobertor verde me importunava. Por outro lado, não condizia com a minha dignidade carregar semelhante pacote debaixo do braço, à vista de toda gente. Que iriam pensar de mim? Caminhando, procurava lembrar-me de um lugar onde pudesse guardá-lo até nova ordem.” (pág.34)

A miséria transtorna e o leva a laivos de hipocrisia. Ao considerar-se melhor do que os outros, incapaz de agir pelos meios deles, de infringir as leis naturais, de ter consciência pura e inocente, numa ilusão e delírio, se mete nos mais banais e caricatos pecados. Vive em paradoxo, onde é incapaz de manter a honra e inocência, e acaba por meter-se num emaranhado desconexo de indulgências e lamentos. Sim, ele é um vitimista, onde todos os problemas, via de regra, concentram-se no exterior, à parte dele. Raramente se dá conta do próprio fracasso e de como contribuiu peremptoriamente à decepção e abandono.

“A consciência de minha honestidade subiu-me à cabeça, inundando-me com o sentimento grandioso de que eu era um caráter, um farol de extrema claridade em meio ao oceano lamacento dos homens, entre destroços flutuantes.” (pág. 43)

Para ele, a fome é a causa de todos os seus problemas, a razão dos dilemas, inclinações e máculas, e não o contrário; dela ser tão somente a consequência das suas escolhas, hábitos e frustrações, guiados pelo orgulho às vezes maior, outras, menor, mas sempre efetivo em algum aspecto nas suas decisões. Paulo escreveu: “Aquele, pois, que cuida estar em pé, olhe que não caia.” (1 Co 10:12).

Ele é um homem que vive na escuridão, com entremeios dispersos de luz ou penumbras, ao ponto em que, de consequência a fome tornou-se também em causa da degradação, em todas as esferas e facetas do ser, a afundá-lo mais e mais na desilusão, em devaneios e reações descabidas. Faltou-lhe o prumo, e o estado famélico elevou o desequilíbrio, em constante amálgama de sonho, delírio e realidade modelados pelo âmago caótico, mas a julgar proveniente do exterior. Se a fome aparenta simplicidade, as emoções, razão e sentimentos são atormentadoramente complexos, às vezes controláveis, na sua maioria exaltados e indômitos.

“Expliquei o caso, contando a mesma história da véspera; menti de olhos abertos, sem pestanejar, menti com sinceridade: ‘infelizmente, farreei um pouco além da conta num café, e perdi a chave...’ ...ninguém me ofereceu um bônus, e não tive coragem de reclamá-lo. Instantaneamente, isso despertaria desconfiança. Começariam a remexer em minhas coisas, descobririam quem eu era realmente. E me deteriam por falsa alegação. De cabeça erguida, com a atitude de um milionário, de mãos presas ao forro do paletó, retirei-me do Depósito” (pág. 67).

Neste círculo vicioso, o protagonista não parece ter saída para a sua alma atribulada, cheia de angústia, humilhada, mas segura em uma altiva inutilidade, incapaz de satisfazer-lhe no desejo mais simples e trivial, a comida. Tudo o afasta dela, e ele é o único promotor a garantir e manter o distanciamento. A despeito da ajuda aqui e acolá, em seus ímpetos atarantados e evasivos, ambíguos e artificiais; pois a fome não lhe dera outra personalidade, apenas a manifestou, retirou-a das entranhas e expô-la, e produziu um tipo de sinceridade traiçoeira e impostora.

“Deixava-me dominar pelo orgulho, saltava à primeira provocação, do alto da minha soberba, atirando dez coroas ao vento, e ia-me embora... Censurei-me severamente por haver deixado o quarto e ter-me posto de novo em apuros.

Afinal, para o diabo com tudo isso! Não pedira aquela nota de dez coroas, mal a tivera na mão, e, logo a passara adiante, em pagamento a alguém que nada significava para mim, e que nunca mais veria.” (pág. 166)

Se o grão não morre, fica só; mas se morrer, produz muitos frutos. Para o personagem sobreviver era a resposta, e de alguma forma, ser herói de si mesmo, bastava-lhe. A solidão e o isolamento persistiram enquanto marinheiro, indo para Leeds. Assim como a sua alma errática. Se trocarmos o homem pelo grão, restar-lhe-ia o quê? Na solidão?

Por fim, seja pela sobrevivência ou a conclusão lógica de todo o aprendizado, se entregou à ajuda, se dispôs à solução, tão óbvia, mas que postergou ao esgotamento, até quase sucumbir.

E, então, “disse adeus por essa vez a Cristiânia, a todas as casas, a todos os lares, a todas as luzes que brilhavam e rebrilhavam nas janelas.”

 

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Avaliação: (***)

Título: Fome

Autor: Knut Hamsun

Editora: Itatiaia

Páginas: 171


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