15 agosto 2024

Prefácio de Eduardo "Doca" Barroso ao livro "A Bula do Placebo"

 



Não é raro nos surpreendermos com a escrita de um autor. E não é preciso esperar muito ou produzir uma vasta obra para se perceberem nuances e mudanças no estilo; igualmente não raro é perceber-se diante do texto completamente diferente quanto ao objetivo, conceito e percepção. A linguagem, já diziam os estudiosos desde sempre, é um fluxo contínuo de mudanças e solidificação. Existem elementos irremovíveis e outros nem tanto. Fato é que a escrita originária da pena de um único autor deve ser versátil e explorar vários aspectos e recursos e se expressar convincentemente, seja qual for o tratamento aplicado à narrativa. Entretanto, nada deve ser tão heterogêneo a ponto de não ser distinguido e suas características tomadas como as de outro. Com isso, não estou ditando regras ou a “enjaular” a imaginação e criação. Nada pode ser diferente o suficiente para desfigurar ou deformar a identidade, as digitais a apontar para si, independentemente das circunstâncias e formas.

Quando se me apresentou este novo trabalho do Jorge Isah, após lê-lo, mesmo acompanhando seus textos na Revista Bulunga, senti-me diante do artista a procurar novos rumos, novas formas, a alterar o estilo, provocado talvez pela ânsia de aventurar-se em terrenos inexplorados, ou a urgência de sondar novos roteiros, personagens e sentidos. Contudo, lá estava o mesmo autor, meticuloso nos detalhes, inquerindo-se, à cata de respostas e cheio de dúvidas. Lá estava, esquadrinhando o universo intocado e carregando-o nas próprias mãos, deixando indelével a sua impressão. Lá estavam a ironia, o cinismo e a capacidade de rir de si mesmo e do outro. Lá estava o homem a examinar as relações, o momento e a sociedade. Em histórias curtas mas de significados intensos. Lá estava a linguagem mais simples, menos rebuscada, quase “Pulp”, a remeter-me, primeiramente, a Nelson Rodrigues, na maneira econômica de contar histórias, para depois mostrarem-se tão ou mais críticas quanto às do “Escritor Maldito”, sem o seu apelo sexual e orgíaco. Assim, me vi a lembrar dos autores “beatnik” e, por que não, do realismo da primeira metade do século passado, contudo sem a claustrofobia, agonia e niilismo de alguns deles. Existem elementos absurdos, sim, claro. Existem componentes existencialistas, sim, claro. E ingredientes psicológicos, também. Mas existe sobretudo o homem, seus dilemas e a necessidade de decifrar a si e os tempos, seja qual for. É a esta universalidade que o autor nos remete, de estar no tempo e também fora dele. Sem isso, não nos resta muita coisa a não ser comer, beber e morrer.

Entre os contos publicados na Bulunga e alguns outros de épocas distintas, os mesmos elementos fundamentais são perceptíveis a qualquer um que desejar vê-los; e, digo, é melhor vê-los para se deliciar ainda mais com esta obra.

Outro aspecto inseparável das entranhas do autor é o transcendental ou metafísico. Para ele é impossível dissociar a vida frugal e terrena das implicações celestes e espirituais. Sei que alguns leitores não concordarão, mas, pior para eles: é o elemento não somente salutar, mas catártico para esta geração, o reencontro com esta proposta. Ela se apresenta como única solução ao mundo embrenhado e envolto nas trevas, e qualquer alusão apenas à materialização de elementos concretos, palpáveis e físicos simplesmente diminui a humanidade ao nível dos animais. Ainda mais quando se percebem nitidamente as opções à mesa; nada, em sã consciência, pode restaurar o homem e trazer à tona virtudes e qualidades à parte da sublimidade, das coisas lá do alto. Enquanto se mantiver cego aos clamores do espírito, o homem não será o que deveria ser, e apenas se tornará a imagem engelhada de si mesmo. Não existe liberdade quando se excluem os meios de alcançá-la, seja por arrogância, teimosia ou ignorância; pois nada disso o inocentará no fim das contas daquilo que não pode ser porque não quis, ainda que pudesse fazê-lo se tateasse a realidade e a verdade à sua volta.

Nestes aspectos, em linhas gerais, imagino ser fiel ao pensamento do autor, ao menos no ponto fundamental e decisivo, entre tantos outros que o leitor descobrirá certamente ao se debruçar sobre esta obra, de maneira sincera e sem os eventuais preconceitos conceituais ou ideológicos.

Portanto, quer você queira ou não, aconselho-o a não prescindir da indispensabilidade de “A Bula do Placebo”. Ah, por falar no título, demandaria outro prefácio, mas, desde já, ele aponta para o inexorável fiasco das tentativas de autocura ou melhor, buscar em si mesmo o remédio para a doença autoinoculada, sem que o antídoto tenha qualquer eficiência.

Eduardo “Doca” Barroso

__________________________ 

Para adquirir o livro: Amazon ou
Kálamos
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário