02 julho 2024

Os Belos e os Malditos - F. Scott Fitzgerald

 





Jorge F. Isah



       Scott Fitzgerald é um dos meus autores prediletos. Ele é de uma geração de escritores a primar pela clareza, objetividade e, por que não, sinceridade. Tal qual, por exemplo, Hemingway, guardadas as diferenças de estilo, narrativa e mundos, Fitzgerald parece falar do que entende muito bem, e desnuda o universo no qual transita e, também, seus personagens circulam. Tal qual o especialista em assuntos gerais e intrínsecos, ele esmiúça o que existe de melhor, em pequenas porções, e o mais acintosamente infame, em larga escala, na alma. Em alguns momentos, o abjeto e o frívolo se unem em sua desgraça, ao ponto de trazer ao leitor um mal-estar intenso e profundo. Como se não houve luz, apenas trevas, eles são incapazes de notar onde estão e para aonde vão, cegados por seus vícios e a incapacidade de entendê-los para assim se libertarem.

Outro aspecto perceptível em seus livros é o constante “deslocamento” dos personagens, sejam rebeldes, flexíveis, ambiciosos, desprendidos, pacíficos ou belicosos. Nenhum deles parece conhecer o seu lugar no mundo, e está nele muito mais pela falta de opções do que escolhas. Este sentimento leva-os, cada um, a buscarem distrações, compensar o incômodo existencial com sexo, drogas, bebidas e farras intermináveis. É o dispender-se sem sentido, em um tipo de niilismo levado às últimas consequências, onde viver é o mero exercício do instinto, mecânico, fortuito, mas ainda assim, pretensioso e cabotino. De forma a cada elemento mover-se na direção do grupo, e o grupo satisfazer-se na aquiescência de cada indivíduo; amálgamas do desatino e da fleuma vadia. Uns mais, uns menos, é como uma teia onde convivem, até certo ponto, a presa e o predador, em um jogo igualmente encarniçado e fatal.

      Em “Os Belos e Os Malditos” não é diferente. Segundo livro publicado pelo autor (1922), ele retrata o ambiente efusivo e degradante, porque também não, o declínio de uma geração que se ofuscou em devaneios, caprichos e futilidades. Jovens a imaginarem-se heróis de si mesmos, algo muito comum na maioria dos imaturos, e velhos arraigados ao anti-heroísmo, mormente egoísta e autoritário. No primeiro caso, temos Anthony Patch, universitário e herdeiro de um magnata dogmático e austero. No segundo caso, há Adam Patch, o avô milionário de Anthony, que vê o desregramento do neto como impeditivo para herdar os seus negócios. A inabilidade de Anthony em gerir a própria vida faz o avô imaginar o mesmo para a sua fortuna. E ele não está errado: o neto frustra completamente o patriarca a cada desafio recebido, por menor que seja.

      Anthony aguarda a morte do avô para refestelar-se na fortuna que considera sua por direito inalienável. Praticamente, conta os dias, semanas, meses, em uma espera macabra e aflitiva. Para o seu desespero, o alcoolismo é o maior dos pesadelos, pois o velho Adam, homem respeitado na sociedade, abomina todos os vícios e, em especial, o etilismo. Anthony vive em apuros, vivendo com uma módica mesada (ao seu ver, e para a qual não faz qualquer esforço em merecer), enquanto se esbalda nas noitadas e mais noitadas regadas a Whiskey, lugares da moda, e a despender seus recursos, tanto financeiros como físicos, em uma existência fútil e pueril, ansiando o dia a deter os fundos suficientes para expandir essa tragédia.

      As coisas parecem tomar, inicialmente, outro rumo quando conhece Glória, prima do seu amigo, Dick; este almeja a carreira de escritor e, ao contrário de Anthony, em curto tempo alcança sucesso, fama e dinheiro. Glória é a socialite esnobe, narcisista, cuja beleza estonteante é a única coisa a importar-lhe realmente. Satisfaz-se com levadas de homens aos seus pés, exibindo-se noite sim, outra também, nos salões mais prestigiados de Manhattan. A despeito das diferenças, Anthony se considera um intelectual e Glória uma debutante, algo os atrai: o álcool e a inconsequência. Para quem conhece um pouco da biografia de Fitzgerald e do seu casamento com Zelda, este parece ser o quase retrato da relação entre eles. Algo que Hemingway, amigo de Scott, descreveu no livro “Paris é uma festa”.

      Em suas mais de 300 páginas, o autor fala de decadência, obsessão, frustrações e quão aparente eram os vínculos dos jovens nos anos da geração perdida do Jazz. Com o passar do tempo, as relações se acidificaram, e a aparente harmonia no caos se tornou somente em algo babélico, o verdadeiro “salve-se quem puder”, onde praticamente nenhuma expectativa consolidou-se tal como idealizada. Em meio ao mundo destroçado pela 1ª Grande Guerra, a vida jamais seria a mesma, e caberia a cada um adaptar ou sucumbir aos efeitos gerais, e aos deslizes e equívocos individuais.

      Não custa lembrar: não faço sinopses ou resumos de livros. A ideia é dar um panorama e com ele aguçar o interesse do futuro leitor. Por isto, se você é novo por aqui, desista, não vou lhe entregar a história na bandeja. O meu esforço é o de tentar, às vezes funciona, outras não, contar o mínimo, mas suficiente para que se decida a comprar o livro e explorá-lo. Igualmente, não faço uma crítica, ainda que sempre haja algumas no decorrer da resenha; mais uma apreciação dentro da perspectiva otimista de influenciar e seduzir o leitor com elementos a encorajá-lo em sair do lugar cômodo (na verdade, incômodo) de privar-se das experiências universais, amadurecer, e refletir sobre si, os outros, seu lugar, dos demais, e assim evitar os erros, tonificar os acertos, e no microcosmos a cercá-lo, promover benefícios a todos. Como está escrito: “O meu povo foi destruído, porque lhe faltou o conhecimento” (Oseias 4:6). Neste trecho, o conhecimento se refere a Deus, ao Ser divino, mas pode-se remetê-lo a qualquer aspecto da vida, sem perda de sentido.

            Neste aspecto, Scott Fitzgerald revela em suas narrativas quanto o homem pode ser supérfluo, instável e imprevisível, em uma contingência desordenada e quase sempre desconectada da realidade. Talvez, por isso, o homem insista tanto em fugir da verdade, em uma busca fastigiosa e inexequível. Não raras são as cenas de homens e mulheres a desdenharem, ultrajarem, conspurcarem-se. O poço é fundo, mas pode-se descer ainda mais; e ainda assim, o orgulho, a soberba e a desfaçatez parecem subsistir em meio à lama e entulho... A constatação de serem eles, em última instância, a promoverem e impulsionarem os indivíduos para um fim nada ditoso.   Ainda que se gaste uma vida inteira e não se perceba o aracnídeo prestes a capturá-lo.

            Fitzgerald parecia entender... mas não conseguiu, ou não quis, fugir a tempo.

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Avaliação: (***)

Título: Os Belos e Os Malditos

Autor: F. Scott Fitzgerald

Editora: Record

Páginas: 340




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