24 outubro 2022

Deus é vermelho: o evangelho sem cor!

 



 

Jorge F. Isah

 

O autor, Liao Yiwu, não é cristão. Está mais interessado no movimento de resistência ao comunismo na China do que propriamente com o Cristianismo, ainda que o Cristianismo tenha-lhe chamado a atenção como um "movimento de resistência". Ou seja, seus interesses são muito mais voltados para a política, sociologia e antropologia (e até mesmo a história do Cristianismo na China) do que o Cristianismo como fé bíblica. E isso é normal, pois qual interesse um descrente envolvido com a revolução à contrarrevolução teria com o Cristianismo?

Ainda que ele chame pastores, missionários e líderes cristãos de "ativistas" (um claro exemplo de como a mente revolucionária funciona, ao vislumbrar posicionamentos como meros arquétipos ideológicos), se permite relatar as declarações de fé que deveriam mover o cristão: Jesus Cristo como Senhor e Salvador do homem. São poucos esses momentos, tenho de convir, mas eles existem; e alguns são realmente tocantes, revelando o amor à verdade e a entrega em proclamá-la, mesmo com o risco de prisão e morte.

Ele se atém mais à questão do Cristianismo como movimento histórico que sobreviveu aos tempos de chumbo do governo Maoísta, momentos críticos nos quais homens, mulheres e crianças, diante da expropriação dos bens das igrejas, a perseguição aos cristãos professos, prisões, morte, tortura, e tudo o mais que envolve um regime totalitário onde o estado e o seu líder máximo são considerados "deuses", cultuados e venerados como se o fossem, suas vidas abrirem-se sob os pés.

A revolução cultural de Mao foi apenas isto: uma tentativa de tornar todos os chineses em um só corpo e mente (o corpo rotundo e atarracado de Mao, e a mente patológica e destrutiva do “estado chinês”); mas eles mesmos perceberam não haver força capaz de destruir a fé do povo (boa parte da população campeou e se iludiu com os clichês revolucionários dos vermelhos, enquanto outra, não tão iludida, viu-se obrigada a aceitá-la em troca da própria sobrevivência); por isso, criou-se uma igreja oficial e estatal, onde as regras eram ditadas pelo Partido Comunista, numa forma um pouco menos explícita de se corromper a alma, ainda que mantendo-se o mesmo objetivo (regimes comunistas e fascistas são pródigos em controlar tudo, desde bens, trabalho, vida, pensamentos e, se possível fosse, até mesmo o espírito de cada um).

Ele parece não entender como uma religião que chegou ao país havia pouco mais de um século e não tinha raízes na cultura milenar chinesa, sobreviveu a todas as tentativas de erradicação.

A criação de uma religião nacional e estatal, aos moldes da religião oficial do Nazismo no III Reich¹, onde os cristãos eram obrigados a renegar a sua fé em favor da fé no estado chinês e em seu líder máximo, parecia resultar na destruição de qualquer influência cristã no império do centro. Entretanto, para a surpresa geral, e do próprio autor, ele encontrou uma igreja perseguida, à margem da sociedade, escondida em lares e cavernas, a florescer e crescer em meio ao maior país ateísta do mundo, ao menos em termos geográficos e demográficos, a despeito de todos os esforços do partido comunista no combate insistente a qualquer manifestação que não seja o culto a seus ídolos criados à força, leis e decretos despóticos e insanos.

O Cristianismo vai muito além de simples "fenômenos" sociais e antropológicos, pois é fruto da ação sobrenatural e direta do próprio Deus na alma humana. Liao Yiwu não entende isso, e parece não se importar com isso. A descrição de prodígios é escassa; o autor não parece se interessar ou se dispor muito a eles; os relatos até aqui do mover de Deus no meio do povo ocorrem na forma de uns poucos milagres,  narrados com nítida descrença e ceticismo, mesmo diante das evidências e vários testemunhos oculares, fontes primárias.

Ele tenta relacionar o Cristianismo com outros movimentos religiosos que se opõem à igreja oficial chinesa, como se fossem quase a mesma coisa, diferindo apenas no tipo de "Deus" que cada um cultua e na forma em que se rebelam, ou se revelam. Não faltam relatos comoventes de cristãos perseguidos, presos, torturados e mortos pelo regime mais assassino do mundo em todos os tempos, e isso dá a verdadeira dimensão daquilo a diferenciar boa parte da igreja no Ocidente, confortável, preguiçosa e negligente quanto a proclamar o evangelho de Cristo; e o Oriente e suas grandes batalhas, a despeito das terríveis consequências pelas quais terá de pagar pela desobediência jurídica. Tal qual a igreja primitiva, nossos irmãos não se calam, levam luz e sal onde estão, e não se negam a fazê-lo mesmo pagando alto preço.

E, de certa forma, fico pensando que raios de cristãos são os que defendem a conciliação entre marxismo e o Cristianismo². É algo impossível e inimaginável para qualquer cristão que não se ilude com a mentira e falácia de que o marxismo é inofensivo. Por mais que as evidências e os fatos históricos comprovem as atrocidades, perseguições, execuções e a tentativa de destruição da fé, alguns de nós não querem ver, ou teimam não ver, o quão maligno e anticristão são os fundamentos e premissas marxistas. Desta forma, o ateísmo somente pode ser substituído pela religião do estado³, onde líderes são cultuados, venerados, como entes sobrenaturais, enquanto faz apenas apontar para aquilo de mais depravado e ignóbil carregam em seus íntimos desejos.

Liao escreveu um livro de leitura fácil, agradável, e que, a despeito de não tocar nos pontos cruciais à fé: a perseverança sobrenatural diante da mais virulenta e sangrenta perseguição, o flagelo a corroer e dizimar vidas, cuja única finalidade é a tentativa de controle integral e absoluto das pessoas (a falsa liberdade de se estar livre enquanto arrasta-se em cadeias), não deixam de ser relatos a fazer os entrevistados testemunhas de Cristo, e de o evangelho não parar e continuar em sua missão de revelar o amor e a graça divinas, a subsistir não pela força humana, mas pelo poder do Espírito; não por leis e decretos, mas pela justiça e martírio de Cristo; não por promessas passageiras e irrealizáveis, mas pela viva esperança e o juramento de Deus a torná-las reais e efetivas, não em um futuro distante, porém agora, já!

Em princípio, a leitura deste livro é o suficiente para os cristãos verdadeiros fugirem de qualquer aliança com o marxismo, ainda que seja apenas por simpatia, pois, como Paulo diz, que união há entre luz e trevas? Entre Cristo e Belial? A questão é, sem querer demonizá-lo, de o marxismo ser fruto do desejo de aniquilar qualquer traço divino na Criação, e qualquer traço divino no homem, feito à imagem de Deus. Para isso, há de se controlar não somente o corpo e alma mas também o espírito humano. E se isto não é diabólico em sua proposição, em seu axioma mais furtivo e sigiloso, nada mais o é!  

Não obstante, é impossível não notar os méritos do autor, Liao Yiwu, e reconhece-los; equivale dizer que a minha crítica inicial foi parcialmente injusta após refletir um pouco mais em pontos e narrativas a superar à minha própria suspeita e, porque não dizer, avaliação. Tendo a sua atenção voltada para o Cristianismo como movimento contrarrevolucionário na China (uma espécie de rebelião à revolução maoísta), ele abre espaço para o testemunho pessoal e de fé, com relatos de conversão, de mudança de vida e propósitos, bem diferente do ufanismo e triunfalismo atualmente vigente no Ocidente, especialmente aquele a manter de pé, sabe-se lá como, a teologia da prosperidade e no neopentecostalismo. Neste aspecto, ele construiu um relato, se não totalmente fiel à igreja chinesa, ao menos não omitiu a marca mais evidente do Cristianismo: a transformação do homem de criatura a filho de Deus, de pecador a santo, de escravo a liberto, de perverso a amoroso. Portanto, chamar de “movimento”, “contrarrevolução”, “revolução” ou qualquer outro jargão ideológico demonstrará algum grau de ignorância quanto à verdade, de não ser possível qualquer transformação profunda no homem sem o seu espírito atravessar os tortuosos caminhos do autonomismo e alcançar o caminho perfeito do servilismo a Cristo, e somente a ele. Mais vale um servo livre no amor do seu Senhor do que um autocrata insuficiente, a espalhar o seu ódio generalizado, inclusive a si mesmo.

Relatos como o do Dr. Sun, um dos mais renomados e influentes médicos chineses, e que abandonou todo o "status" que a sua profissão poderia lhe dar (dinheiro, poder, fama e holofotes) para se arriscar à ajuda humanitária nos grotões chineses (a quem poderíamos chamar de um "médico ambulante" ou itinerante), onde não havia serviços públicos e o povo vivia em miséria absoluta, proclamando o evangelho e vivendo-o, é de fazer qualquer um de nós, cristãos ocidentais, queimar de vergonha.

Outro relato contundente e pungente é o do filho do mártir cristão, o pr. Wang Zhiming, condenado única e injustamente por sua fé em Cristo, à qual teve a oportunidade de renegar por diversas vezes, e se manteve firme, assim como sua família, e assistiu à brutal e despótica execução de um inocente. Curiosamente, mais de uma década depois da morte do pr. Zhiming, ele foi inocentado pelo próprio governo que o assassinou.

Por essas e outras exposições, "Deus é vermelho" faz-se necessário, inclusive para aqueles acostumados com o "modus operandi" esquerdista/marxista/fascista. Nossa fé, de certa forma, é colocada à prova diante dos testemunhos inimagináveis dos verdadeiros e fiéis servos de Cristo que, perseguidos, humilhados, execrados e, muitas vezes mortos, permanecem firmes na Rocha, recusando-se a negar quem os amou eternamente, se entregou completamente e se fez maldição para que o seu povo fosse bendito.

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Notas: 1- As similaridades entre Comunismo e Nazismo não param aí, no endeusamento dos seus líderes, que assumem um caráter "messiânico", de salvadores da nação e do povo. Existem outras tantas semelhanças que os tornam quase gêmeos; esta porém, o culto ao líder, é o elemento "religioso" a uni-las.

2- É um movimento crescente na igreja reformada, especificamente entre os proponentes da TMI e outras vertentes liberais.

3-  Já que o ateísmo em última análise é o culto ao homem, à natureza, às leis cósmicas, à ciência ou qualquer outra coisa a considerar “não religiosa”, mas acaba por se tornar, em seus efeitos, tão ou mais religiosa como qualquer outra religião, pois o homem não pode prescindir do culto e adoração; e não será a falta de “deuses” a impedir-lhe de concretizar este desejo entranhado em sua natureza.

4- Na verdade, Deus não é vermelho. O autor quis afirmar algo impensável até mesmo para o adepto mais pessimista do comunismo, e até para o fiel mais otimista entre os cristãos, de que Deus não abandonou o seu povo sob a égide marxista na China (a alusão à cor dos símbolos da esquerda é evidente). Nesse sentido, Deus é sim, vermelho. 

5- A China está constantemente na lista do “Portas Abertas” como um dos países que mais perseguem cristãos no mundo, de maneira cruel, pérfida e insana. Juntamente com Coreia do Norte, Cuba, Laos, Vietnam, Nicarágua e outros mais, parecem ter o objetivo de aniquilar o “inimigo comum”. Em alguns casos, nem mesmo os estados islâmicos, outros contumazes assassinos de cristãos, usam de táticas tão violentas e desumanas como países de comunistas.

6- O livro encontra-se esgotado até mesmo em sebos. Não consegui uma única cópia, mesmo fazendo uma pesquisa detalhada na web. Normalmente não indico baixar ebooks gratuitos, a não ser livros em domínio público. Neste caso, contudo, deixarei o link de uma página que disponibiliza o exemplar em epub, pdf ou mobi: Lê Livros

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Avaliação: (***)

Título: Deus é Vermelho

Autor: Liao Yiwu

Editora: Mundo Cristão (esgotado)

No. Páginas: 240

Sinopse: "Na China comunista, sob o regime de Mao Tsé-tung, todas as práticas religiosas foram banidas. O comunismo tornou-se a religião nacional e Mao foi entronizado, deificado e adorado. Apenas a igreja oficial era permitida, mas em seus cultos, apenas palavras de honra e louvor ao regime e ao líder Mao. Mas debaixo de tanta opressão, a semente do cristianismo brotou e floresceu. Deus é vermelho percorre pequenos vilarejos e grandes cidades, trazendo narrativas emocionantes e assombrosas sobre dezenas de milhões de cristãos chineses que vivem a fé debaixo do duro regime socialista. Indo de casa em casa, reunindo-se porões e sótãos, vivendo à margem da religião oficial do Estado, assim caminham os cristãos chineses. Correndo perigo de prisão, castigos e até morte, assim vivem os que desafiam o regime para manter e cultivar a fé em Jesus Cristo. Conversas sussurradas, códigos cifrados, bíblias e material evangelístico contrabandeados, assim o evangelho é pregado cotidianamente. Deus é vermelho é o relato tocante e desafiador de uma Igreja viva que cresce e floresce no regime mais fechado do planeta.”




10 outubro 2022

A montanha (in)acessível em "A Montanha Mágica", de Thomas Mann





 

Jorge F. Isah

 

           

Demandou-me cerca de um ano a leitura do calhamaço de Thomas Mann, pois desde o início percebi não ser uma obra para se prescrutar rapidamente, dada a profundidade dos assuntos, personagens, e quaisquer conclusões levianas e precipitadas impossibilitará o leitor de apreender, e se aprofundar cautelosamente, do pensamento requintado e, porque não dizer, laborioso do autor. Ninguém pode se aproximar de “A Montanha Mágica” se não estiver imbuído do espírito de tenaz analista e decodificador. Não é, portanto, um livro de passatempo (mesmo sendo), ou de amenidades (ainda que se encontre), ou de perífrases a suavizar a realidade (talvez, uma ou outra aqui e acolá). Mann conta histórias dentro da história, e até mesmo a História, íntima e intensamente detalhada, tal qual um observador dedicado, nada relapso ou estouvado.

São muitos os exemplos, mas gostaria de deter-me nos diálogos espetaculares (ou debates) entre Naphta e Settembrini, um primor, em vários aspectos. Além da qualidade dos argumentos e dos temas, existe a cumplicidade entre ambos, a despeito da divergência de posições e defesas intransigentes. Mesmo sem o desejo de reconhecer a necessidade um do outro, cujos antagonismos parecem tornar ainda mais imprescindível a coexistência intelectual, não existe ódio ou desprezo, pelo contrário, parecem se alimentar mutuamente, o que não é mau, e pode, talvez, fazer um e outro adequarem os seus pensamentos ao escrutínio da verdade. Bem diferente dos tempos hodiernos, em que a maioria dos intelectuais prima pelo “orgulho” de ouvir a própria voz (quando muitos dos próprios pares), e afastam-se do espírito a permear a cultura por milénios: as ideias se façam audíveis, seja ela qual for, e as inconsistentes e amorfas sucumbam à própria incapacidade de respirar, e não por serem asfixiadas, com a finalidade de haver o monopólio de uma única ideia, seja ela filosófica ou não, ideológica ou não, científica ou não. Em tempos de monomania intelectual e do politicamente correto, Mann sinaliza para o debate, a discussão, sem a necessidade de destruir ou silenciar o oponente, pois somente através dele e de seus argumentos pode-se crescer e aperfeiçoar a verdadeira, e a tão pouco desejada experiência humana de coexistir pacificamente, sem a obrigatoriedade de todos se tornarem unânimes neste ou naquele aspecto.

Por isso, faço questão de ressaltar não somente os diálogos/debates entre o padre comunista e o humanista italiano, mas também dos demais membros da confraria do “Sanatório”, em Davos, nos Alpes, onde se desenrola a narrativa. Perceber-se-á divagações e furos no pensamento de todos, mas assim não é o homem?... Contudo, pode-se ter uma aula, inclusive de convívio organizado (mesmo havendo algum grau de superioridade, presunção, de um em relação ao outro, quanto ao que pensam) com os longos debates entre eles, cujas testemunhas são sempre o Hans Castorp e Joachim (primo de Hans), os jovens a observarem os embates dos velhos.

Este capítulo, em especial, é um exemplo do nível de escrita do autor, e se chama : "Da cidade de Deus e a redenção do mal", inequívoca alusão a Santo Agostinho e o seu “A Cidade de Deus”. Ele aponta para a interessante afirmação de os movimentos revolucionários modernos, p. ex. a Revolução Francesa, Russa, etc., serem fomentados pelos escritos de Tomás de Aquino, e disseminados pelos tomistas, séculos depois. Algo realmente inusitado mesmo entre os clássicos; um nível de debate altíssimo e muito pouco visto ou lido.

No mínimo, uma experiência filosófico-teológica em estado puro.

De todos os capítulos, este foi um dos mais chamativos, por tratar de questões reais mas, também, indo além em termos metafísicos e subjetivos, sem deixar de adentrar no "mundo dos vivos". Questões como liberdade, responsabilidade, revoluções, política, juventude, movimentos de massa, teologia e muita filosofia, estão presentes, ainda que alguns pontos sejam tocados superficialmente e de maneira incipiente, os diálogos são capazes de aguçar a mente do mais desinteressado leitor. O título do capítulo, já citado, é "A cidade de Deus e a redenção do mal", e constitui-se em algo primoroso, escrito por Mann, revelando o alto grau de conhecimento e informação (com certeza decorrente de anos e anos de estudos) para imprimir, durante tantas páginas, uma discussão incomum e detalhada, e, ao mesmo tempo, prender a atenção do leitor sem levá-lo ao tédio ou exaustão, mas chamando-o para o diálogo, e a tirar por si mesmo as necessárias conclusões.

Mann defende exatamente o mesmo que advogo: os escolásticos, e boa parte da igreja romana medieval, foram os reais fomentadores do comunismo e dos movimentos revolucionários posteriores.

Ao contrário do que alguns católicos "iluminados" afirmam, não foram os Reformadores, mas eles próprios a semente do marxismo, muitos séculos antes. Na verdade, trabalharam, e muito, por ele. E ainda trabalham, na companhia de evangélicos, em sua minoria, e também, e especialmente, de boa parte da mídia, celebridades e intelectuais que desconhecem, por ignorância e preguiça em sua quase totalidade, as verdadeiras raízes do que defendem.

A exposição é muito mais longa, e muito bem detalhada no referido capítulo. Deixo apenas a indicação, a quem se interessar, para ler a partir da página 543. Asseguro, vale cada palavra; e a igual meditação, sem se precipitar, lembre-se!

Falando um pouco do livro, no geral, ele não é para qualquer um. O autor parece não estar nem um pouco interessado em "agradar" o leitor comum, pois não temos reviravoltas, surpresas, mudanças repentinas de atitudes e ações abruptas (notadamente aquelas colocadas para assustar ou impactar). O livro está em um desenvolvimento lento, progressivo, e, ao nos depararmos com um movimento menos convencional, não somos pegos desprevenidos, pois ele fora insinuado e se desenvolveu páginas antes (no geral, muitas).

Por outro lado, há um circunlóquio necessário (insinuei, no 1º parágrafo), diria imprescindível, faz o leitor se apaixonar, pouco a pouco, e cada vez mais, com a narrativa. E crie intimidade, empatia com os personagens, tão díspares e ao mesmo tempo tão comuns, como qualquer um de nós, a compartilharem suas angústias, medos, alegrias, esperanças, trivial e complexa humanidade. O ponto central da obra, e me arriscarei a ser confundido entre a ousadia e petulância, refere-se à morte, mais detidamente a descoberta da morte e todas as suas consequências para o bem e o mal... Após algumas dezenas de páginas, não há volta: está-se fisgado até o final.

Também é necessário paciência; não é um livro para apressados. Como em uma lauda refeição, se comer a entrada rápida e vorazmente, não haverá espaço para degustar o prato principal, quiçá a sobremesa.

Mas, certamente, o leitor será contemplado e recompensado com uma farta, deliciosa e inesquecível refeição, para a maioria dos apreciadores. Entretanto, sempre haverá aqueles com indigestão. Para esses, não haverá antiácido a aliviar-lhes a aguda perturbação.

 

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Avaliação: (*****)

Livro: A Montanha Mágica

Autor: Thomas Mann

Páginas: 865

Editora: Cia das Letras

Sinopse: “Neste clássico da literatura alemã, Mann renova a tradição do Bildungsroman - o romance de formação - a partir da trajetória do jovem engenheiro Hans Castorp. Durante uma inesperada estadia em um sanatório para tuberculosos, Hans relaciona-se com uma miríade de personagens enfermos que encarnam os conflitos espirituais e ideológicos que antecedem a Primeira Guerra Mundial. Um dos grandes testamentos literários do século xx e uma das obras inesgotáveis da ficção ocidental.”




29 setembro 2022

O sangue nas mãos da TMI e TL, ou os traidores que não se arrependem.



Jorge F. Isah


    A teologia da libertação e da missão integral (com minúsculas, mesmo) insistem em dizer o indizível: Jesus Cristo era socialista (usam o termo como um suavizador do comunismo, para não escandalizar os incautos¹), mas, o primeiro exemplo de comunista nos evangelhos é o de Judas Iscariotes² que, alegando uma coisa, dizendo sê-la boa e necessária genericamente (cuidar dos pobres e suas necessidades), tinha em mente outra coisa, o benefício próprio e exclusivo (enriquecimento ilícito e criminoso ao apropriar-se do que não lhe pertencia, mas sistematicamente furtar a fim de satisfazer os seus desejos e pecados); além do próprio Cristo afirmar que sempre haveria pobres. Se o próprio Senhor disse isso, por que os homens insistem em criar um "paraíso" na terra ou se fazerem de "salvadores da pátria", em busca de uma "justiça" a torná-los mais e sempre injustos? Não apenas potencialmente injustos, mas realmente injustos?
    
    Com isso não estou propondo qualquer tipo de cinismo, do não dever da igreja em minimizar e atenuar os efeitos injustos da realidade, e efetivamente cuidar os pobres, órfãos, viúvas e qualquer outro a carecer de abrigo, alimento, saúde ou coisas essenciais para a vida. Na verdade, pouco ou nada os proponentes da TMI e TL fazem em favor dos pobres e miseráveis, do ponto de vista cristão, utilizando-os como instrumento e meio de propaganda ideológica e/ou partidária em seus discursos diabolicamente elaborados para enganar e distrair a atenção do real intento e objetivo dos seus "movimentos" (são as plataformas, os palanques nos quais subirão e lá não querem descer). Como sempre, são lobos travestidos de ovelhas, com seus estratagemas a engabelar, onde a piedade é apenas o mote para satisfazer o espírito revolucionário e manter corações e almas aprisionados a um delírio salvífico, fictício e traiçoeiro; onde o verdadeiro Messias é substituído por falsos salvadores, sem graça, paz, amor e misericórdia. São os tais que dizem: "paz, paz", quando desejam a guerra (Jr 8:11).

       Senão, vejamos o texto bíblico:

"Então Maria, tomando um arrátel de unguento de nardo puro, de muito preço, ungiu os pés de Jesus, e enxugou-lhe os pés com os seus cabelos; e encheu-se a casa do cheiro do unguento.
Então, um dos seus discípulos, Judas Iscariotes, filho de Simão, o que havia de traí-lo, disse:
Por que não se vendeu este unguento por trezentos dinheiros e não se deu aos pobres?
Ora, ele disse isto, não pelo cuidado que tivesse dos pobres, mas porque era ladrão e tinha a bolsa, e tirava o que ali se lançava.
Disse, pois, Jesus: Deixai-a; para o dia da minha sepultura guardou isto;
Porque os pobres sempre os tendes convosco, mas a mim nem sempre me tendes." (João 12:3-8)

    O texto é claro, mais límpido do que água, e não pode haver dúvidas quanto a sua intenção: Cristo deve ser glorificado acima de qualquer coisa, qualquer esquema, qualquer situação, qualquer pensamento ou desejo, acima de tudo e todos, e não ser um mero expediente para proselitismo filosófico, ideológico, sociológico ou qualquer outra coisa que, antes de exaltá-lo, o barateia³. A simples menção de Cristo ser socialista ou capitalista ou anarquista ou outra coisa do tipo é abominável e diabólica; à tentativa de se conformar a ideia de um "deus" criado ideologicamente, como resultado de corações impenitentes e enganosos, por homens revestidos de uma pretensa piedade e zelo social, e nada mais fazem, com suas vidas, a negar o seu discurso "amoroso" e "fraternal", numa nítida atitude de imoralidade³³, de péssima teologia e ainda pior "benevolência", quando misturam a justiça bíblica, espontânea e verdadeira, à "justiça" estatal, artificial e dissimulada. O papel da igreja jamais pode ser substituído pelo de governos, ong's, fundações ou organismos alheios ao evangelho; por isso, tentam forjar "outro evangelho" a fim de abarcar, de legitimar, ideologias e políticas nitidamente anticristãs. 

       Onde existem palavras doces e acolhedoras, esconde-se o ódio, a ira e aversão a tudo o que se chama Deus, desprezam a mensagem redentora, acolhedora e santificadora do evangelho de Jesus Cristo, para transformá-la em um joguinho nojento e perverso de interesses pessoais, exibicionismo e autodistinção; é a vida dando lugar à morte. 

     Como Paulo disse: 

"Traidores, obstinados, orgulhosos, mais amigos dos deleites do que amigos de Deus, tendo aparência de piedade, mas negando a eficácia dela. Destes afasta-te... Que aprendem sempre, e nunca podem chegar ao conhecimento da verdade. (2Tm 3.5, 7)

     São pecadores, covardes, cúmplices do sofrimento e morte de milhões de irmãos; e considerá-los como parte da igreja, se sujeitando à sua lábia, dissimulação e desfaçatez (vá lá, pode ser apenas ignorância, mas ela não absolve ninguém da culpa, não é!), faz de qualquer um pior do que eles; e torna-os em inimigos declarados de Deus, ao desprezarem o corpo de Cristo, sua igreja, perseguida e afligida pela sanha doentia de satanás e seus asseclas, sejam anjos caídos ou homens depravados. 

    É de estarrecer o quão longe pode chegar uma mente dominada pelas forças e poderes deste mundo, a ponto da defesa intransigente e desfaçada de títeres, algozes e lacaios do diabo, muitos arrazoados, letrados e autointitulados "mestres", em flagrante irracionalidade e contradição, ao "abandonarem" o sofrimento, perseguição e morte de irmãos sem emitir um único pronunciamento ou denúncia, antes ignorando-os por completo, a bajular líderes integralmente adversários e inimigos de Cristo. Quando digo "adversários e inimigos" não me refiro a não cristãos pura e simplesmente, os não identificados com a nossa fé, e não estão a se importar com qualquer religião, preferindo agir em favor do bem comum e geral. Não é deles, mas daqueles a se colocarem frontalmente em hostilidade e o desejo de suprimir Cristo, a igreja e a fé, dizendo-se servos e irmãos. Como o apóstolo exortou: "não amemos de palavra, nem de língua, mas em obra e em verdade" (1Jo 3.18). 

    Em outras palavras, são sabotadores, instalados no nosso meio para, se possível, ruir e solapar os alicerces da verdadeira fé. São esses, muito mais do que qualquer manifestação a favor de Cristo que um dia postularam, os proponentes da TMI e TL a se refestelarem em homenagens, afagos e mimos aos êmulos e rivais da igreja e da verdadeira fé dada por Cristo e os apóstolos. 
   
     Desses, afastemo-nos; pois eles sempre irão de mal a pior, enganando e sendo enganados (2 Tm 3.13).

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Notas: 1-Em si mesmo um eufemismo, visto defenderem caudilhos e ditadores como Fidel Castro, Hugo Chaves (e seu sucessor, Maduro), Evo Morales, Stálin, Lênin, Mao, Kim Jong-un, e outros menos votados; quando não, assassinos confessos do nível de Che Guevara, Lamarca, e o movimento guerrilheiro dos anos 60 e 70, no Brasil,  e Farc, Sendero Luminoso entre outros,  na América do Sul.

2-Enquanto cristãos são perseguidos, expropriados, torturados e mortos nos países onde os seus "ídolos" governam, os proponentes da TMI e TL não levantam uma voz (ou o dedo) para defenderem-os. Pelo contrário, são sistemática e constantemente ignorados pelos ideólogos esquerdistas, em uma prova cabal de espírito anticristão, anti-fraternal e anti-amoroso, muito distante e antagônico ao discurso com o qual tentam ganhar os tolos; igualando-se ao seu mestre, Judas, o qual se apressou em trair Aquele e aqueles que dizia serem seus irmãos (e alvo de sua "preocupação"). Ver 1 Coríntios 5:9-13. 

3-Nesse sentido, até mesmo o aspecto teológico não pode contê-lo, nem ser utilizado para descaracterizá-lo e a sua mensagem de vida, verdade e redenção. Qualquer tentativa neste sentido deve ser encarada como heresia e blasfêmia, e jamais ser tratada com indulgência, comiseração, pois é fel e veneno a matar a sã doutrina.

33-O texto bíblico mostra-nos Judas a trair Jesus por dinheiro, mas também por poder e incredulidade, já que ele não creu n'Ele como o Filho de Deus, entregando-se ao seu  ignóbil pecado de satisfazer-se com a morte ou destruição alheia (um dos vários tipos de idolatria). Da mesma forma, a omissão ou desinteresse pelos irmãos espalhados pelo mundo, é a marca mais visível da incredulidade, desconhecimento e ganância (o poder quase onipresente no qual a ideologia controla mentes e corações dos defensores da TMI e TL) dos chamados cristãos "marxistas" (um termo auto excludente em sua formulação desde o início). 

 

15 setembro 2022

A mulher de branco, de Wilkie Collins: Em busca da consciência perdida

 






Jorge F. Isah




Wilkie Collins foi, entre outras coisas, amigo de Charles Dickens, com quem escreveu algumas obras: "A viagem preguiçosa de dois aprendizes vadios" e "A casa misteriosa" (também com Elizabeth Gaskell), p.ex. Foi também o pioneiro dos romances policiais, algo inexistente à época, unindo o estilo gótico ao sensacionalista, de onde originar-se-ia o novo estilo e termo “romance de sensação”, e que marcaria a era vitoriana.

A “Mulher de branco” foi escrito entre 1859 e 1860, em uma série jornalística (publicados semanalmente em fascículos, e atraiam a atenção do leitor e insuflava as vendas de periódicos) muito comum à época, e finalmente impresso no formato livro em 1860.

O que dizer então da obra?

Em primeiro lugar, e a despeito de ser um “calhamaço” escrito há mais de 170 anos, a escrita de Collins é fluída, cativante e desbravadora. Neste aspecto, em particular, ela sobrepuja qualquer obstáculo que se apresente como impeditivo para abandoná-lo, desde que o leitor não seja preguiçoso ou procrastinador. E, cá para nós, esse não é um livro para se abandonar ou mesmo negligenciar.

Em segundo lugar, não existe um único narrador; várias situações e desenlaces são narrados ora por um, ora outro personagem. A tríade do bem consiste em Walter Hartright, Marian Halcombe e Laura Fairlie/Ann Catherick, enquanto a tríade do mal são Conde Fosco (um dos grandes vilões da literatura mundial, a meu ver, do qual muitos autores utilizaram-se para compor seus próprios vilões. P.ex., o Juiz Holden, em Meridiano de Sangue, de Cormac McCarthy), Frederick Fairlie e Sir Percival Glyde.

Em terceiro lugar, a impressão inicial é de uma história de amor que não dá certo mas que se sabe terá um final feliz. É uma definição enganosa e simplista quanto à riqueza de detalhes a explorar as várias facetas da natureza humana, percalços, dúvidas e mistérios, e segredos intocados aliados às descrições pormenorizadas da sociedade vitoriana, apresentando-nos uma história de emoções turbulentas em meio a ações meticulosas ou febris.

Em quarto lugar, não existe uma pitada sequer de niilismo e a rejeição de valores e verdades tão comuns em obras do século XX. Nele encontramos a expressão exata de que valores e verdades não são meros conceitos ou ilações, mas a realidade como se apresenta: onde existe certo e errado, moral e imoral, vida e morte, o bem e o mal. Destes princípios emerge uma gama de situações onde o leitor é constantemente colocado, e porque não confrontado, diante de uma vida objetiva, factível, por meio do instrumento ficcional. Conta-se ter Collins reunido informações relativas a crimes com mulheres para compor o seu romance. E muito do permear as páginas de “A mulher de branco” pode ser encontrado em qualquer boletim de ocorrência ou atas de audiências em processos civis e criminais. O fato de o autor ter sido bacharel em Direito explica boa parte da trama e as suas inerentes minúcias e plausibilidade.

Em quinto lugar, esse talvez seja o melhor exemplo do que seria, e deveria ser, um romance popular, ao estilo best seller (sem se parecer com ele. A maioria dos B.S. de hoje são histórias rasas, água com açúcar, mal escritas e inverossímeis. Não que sejam fantasias, no sentido de se explorar a imaginação, mas apenas são desprovidas do labor e a construção necessários para um bom enredo e bons personagens). No primeiro dia de vendas, esgotou-se toda a primeira edição de “A mulher de branco”. Isso mostra o poder da boa literatura, não apenas a despretensiosa diversão (como já disse, vazia, chata e emburrecedora), mas uma forma eficiente de se conhecer o mundo, a si mesmo e seus pares, em meio a todas as complexidades, discrepâncias e contrassenso, mas também da solidariedade, compaixão e sacrifício e outras tantas peculiaridades humanas.

É difícil e duro constatar que o homem prescinda da leitura e do quanto poderia ser esclarecido e, porque não dizer, enobrecido com as vidas e valores impressos nas mais dignas e preciosas páginas da literatura mundial, ao trocá-los por momentos de mera ilusão, entre tapas, mortes e tiros e sexo irresponsável e animalesco, a extravasar os mais débeis sentimentos de entorpecimento (normalmente disponíveis em filmes, jogos e reality-shows abomináveis). Penso haver espaço para essas “formas de expressão”, afinal, como a minha avó dizia, uns gostam dos olhos outros da remela, mas sem a exclusividade e onipresença dessas. O homem tem se empobrecido espiritualmente, moralmente, em favor da emancipação dos seus vícios e pecados, de uma maneira a fazer-se a si mesmo o pior que possa encontrar ou fabricar, enfraquecido, exaurido, tal qual o suicida e uma gilete na banheira... E não me venha falar dos filmes de guerra ou cowboys do passado, pois mesmo os considerados filmes “B” carregavam algo além do sangue, do susto e da escaramuça gratuitas, ao contrário dos jogos e disputas modernos, uma espécie de “pão e circo virtuais” que até podem “encher a barriga”, mas antes envenenam a alma.

“A mulher de branco” foi um sucesso à sua época, e ainda é publicado e republicado em diversos idiomas mundo afora, não pelo aspecto meramente sensacionalista ou o suposto apelo escandaloso da narrativa, mas por imprimir uma história elaborada, com personagens críveis e humanos (a despeito da alegação de excessos em Ann Catherick, p. ex.), e os dilemas e escolhas complexos a atravessar os tempos, nada muito diferente dos primórdios, remontando a Adão, Caim e Abel.

Portanto, não há como não indicar a leitura da obra-prima de Collins, por esses e vários outros aspectos, os quais deveriam instigar o leitor a percorrê-los. Não é um Dickens, reconheço, mas tem méritos e trunfos suficientes para ser apreciado e contemplado; e em tempos de pouca ou nenhuma consciência, a cultivar e exercitá-la.

Leitura recomendada.


____________________________ 

Avaliação: (***)

Título: A mulher de branco

Autor: Wilkie Collins

Páginas: 829

Sinopse: "Inspirado por diversos crimes que haviam chamado a atenção pública, em uma época de jornais sensacionalistas e de leitores que clamavam por escândalos, Wilkie Collins começou a escrever "A mulher de branco" em 15 de agosto de 1859. O leitor é transportado para a Inglaterra vitoriana ao presenciar o encontro misterioso de Walter Hartright com a Mulher de branco, que cruza seu caminho em uma rua de Londres. A obra apresenta o que ficou conhecido como "romance de sensação", com um estilo que prende o leitor da primeira à última página. Repleto de mistérios, segredos, episódios de loucura e mansões cravadas no interior da Inglaterra, "A mulher de branco" segue sendo um dos títulos exponenciais do romance vitoriano inglês"




31 agosto 2022

Deus não tem escolhas

Farei algo que nunca fiz por aqui antes, nestes mais de cinco anos. Republicarei um texto. O que é inédito. Se o texto não é, ao menos a iniciativa será. Os motivos são vários, desde o cansaço [são mais de dez anos sem férias], um pouco de preguiça e, principalmente, por considerar este um dos meus melhores textos [ao menos um dos que mais gosto], e ele está meio que negligenciado pelos leitores. Deveria estar no "Top Ten" do Kálamos e não sei se está entre os 20 ou 30 mais lidos. Acalento esta idéia há algum tempo, e o momento parece-me propício. Mesmo aos que já o leram, seria bom uma nova leitura. E aos que ainda não leram, leiam... Ah, e não se esqueçam de ler os comentários, também, na postagem original, que podem ser acessados AQUI
Sem mais delongas, vamos a ele!


Deus não tem escolhas

       














Por Jorge F. Isah

Algo complexo e de difícil definição é o conceito de liberdade. Ela pode representar várias perspectivas, de vários pontos de vista diferentes, e serem completamente antagônicos entre si. Daremos uma olhada em como o Priberam define-a:

liberdade
(latim libertas, -atis)
s. f.1. Direito de proceder conforme nos pareça, contanto que esse direito não vá contra o direito de outrem.2. Condição do homem ou da nação que goza de liberdade.3. Conjunto das ideias liberais ou dos direitos garantidos ao cidadão.4.Fig. Ousadia.5. Franqueza.6. Licença.7. Desassombro.8. Demasiada familiaridade.

A definição parece restringir-se ao relacionamento entre homens, seja individual ou coletivamente, mas afeita exclusivamente a eles. É basicamente sociológica, menos filosófica, não-metafísica, pouco abrangente.

Uma definição mais ampla é encontrada no Michaelis:

liberdade
li.ber.da.de
sf (lat libertate) 1. Estado de pessoa livre e isenta de restrição externa ou coação física ou moral. 2. Poder de exercer livremente a sua vontade. 3. Condição de não ser sujeito, como indivíduo ou comunidade, a controle ou arbitrariedades políticas estrangeiras. 4. Condição do ser que não vive em cativeiro. 5. Condição de pessoa não sujeita a escravidão ou servidão. 6. Dir Isenção de todas as restrições, exceto as prescritas pelos direitos legais de outrem. 7. Independência, autonomia. 8 Ousadia. 9 Permissão. 10 Imunidade.

Aqui há uma gama de descrições que se aplicam diretamente ao homem, mas que têm também conotações filosóficas como a definir, por exemplo, o livre-arbítrio, o qual é, entre outras coisas, o “estado de pessoa livre e isenta de restrição externa ou coação física ou moral”; e, ainda que seja apenas uma proposição improvável, “exercer livremente a sua vontade”.Porém, o assunto deste texto não é discutir o famigerado livre-arbítrio e sua impossibilidade de garantir a liberdade da indiferença ou o indeterminismo, mas apenas demonstrar a dificuldade e o campo minado em que se entra quando a questão é demarcar e, especialmente, aplicar o conceito de liberdade.

Se definir liberdade é algo complexo, em se tratando da condição humana, o que se poderá dizer de Deus? Os cristãos bíblicos concordarão que Ele é livre; e a Criação resultou de Sua decisão livre, ao decretar que tudo criado, seja material e espiritual, viesse a existir a partir do nada. É o relato bíblico: “No princípio criou Deus o céu e a terra” [Gn 1.1]. Mas isso significa dizer que Deus teve escolhas? Que num leque de possibilidades escolheu uma delas? Ou até mesmo a hipótese de não escolher criar absolutamente nada era provável? Seria possível para Ele pensar em modelos ineficazes e falhos? Para, então, descartá-los? E ficar com o mais aceitável ou perfeito? Pode Deus cogitar algo imperfeito? E o que garante a escolha certa? Em quais bases, escolheu? Quais foram os critérios que o levaram à Criação? Era-lhe possível não criar? E qual a certeza de que o plano daria certo? E efetivamente escolhera o correto? Não parecem variáveis de um pensamento imperfeito, e não provindos de uma mente perfeita?

Talvez o grande problema aqui não sejam as respostas nem as perguntas, mas o fundamento através do qual elas são formuladas. Em linhas gerais, tentamos entender Deus a partir do padrão humano, como se fosse um de nós, e estivesse sujeito à mesma imperfeição que resultará na maioria das vezes em distorções, em inadequações da realidade. Se acredito que o Senhor é capaz de ter escolhas, no sentido de dar a Si mesmo opções do que escolher, havendo em princípio boas e más opções, ao descartar-se uma em detrimento de outra resultará na deficiência do conjunto daquela, como uma obra “menos perfeita”, não-ideal, enquanto esta demonstrará ser “mais perfeita”. Mesmo que todas as opções fossem“integralmente” perfeitas, o ato de escolha indicaria que, em algum aspecto, haveria imperfeição em um ou mais modelos. E se há imperfeição, pode provir de Deus? A mente absoluta, incomparável, única, e que reúne todas as qualidades concebíveis, um padrão irrepreensível, impecável e insuperável em sua própria essência, poderia imaginar o mais remoto e inverossímil plano? Pode-se imaginá-lo a arquitetar o inacreditável? Algo que contradiz a Sua natureza? O ser eterno, infinito, perfeito e santo cogitaria [como a mais improvável conjectura] o que não estivesse em conformidade com a Sua divindade?

Veja bem, estamos falando do decreto eterno, o qual é santo e perfeito, e não das contingências e particularidades dele. Não há como negar que, por exemplo, o mal seja mal, o pecado seja pecado, a Queda seja a Queda, a corrupção seja corrupção, o imoral seja imoral, mas eles são partes de um todo que não pode ser superado em seu aspecto determinado como a expressão da vontade santa, excelente, completa e irretocável de Deus. Como conseqüência e resultado de Sua mente absoluta.

O que estou a dizer é que escolhas pressupõem a superioridade de uma em relação à outra, ou a superioridade do nosso conhecimento ou perspectiva em relação a elas. Para que Deus escolhesse entre algumas ou muitas opções seria necessário não deterem o mesmo nível de perfeição. Em maior ou menor grau, haveria variáveis, e variáveis levarão inevitavelmente à mutabilidade. O próprio fato de Deus cogitar principiar duas ou mais coisas, ainda que no campo imaginário, apontaria para sua mutabilidade ao exercer o seu direito de escolha, e ao fazê-lo, não se terá a certeza do decreto acabado, mas sujeito às transformações durante o seu desenvolvimento no tempo.

Entendo que há muitos atributos divinos ligados à questão, e caso decida-se pelas “possibilidades de Deus”, estar-se-á comprometendo cada um deles, ao ponto em que, tanto a imutabilidade, a onisciência, a sabedoria, a perfeição, especialmente, estarão prejudicados.

Hipóteses existem para nós, seres corrompidos. Ainda que escolhamos aquela decretada por Deus. Essa forma de pensamento define muito bem a nossa imperfeição, conjecturamos o que Deus poderia fazer [do ponto de vista racional e lógico], mas Ele não teve escolhas, senão o eterno decreto poderia não ter sido a melhor delas, e nem seria eterno. O próprio fato das escolhas em si mesmas revelará uma mente insegura, instável, mutável, não-perfeita. Deus não se ateve a opções, nem as analisou, nem as estudou, nem as cogitou. Isso daria margem para a hipótese de haver algo que não pensasse, e que pudesse ser melhor do que o pensado. Quantas opções a sua mente infinita teria? Porém a infinitude da mente divina não implicaria na infinitude de proposições, em múltiplos planos, em possibilidades de contradição, de se cogitar algo que contrariaria a Sua própria natureza, de implicar na mínima chance de que Ele pudesse errar, ou seja, levá-lo a enganar-se.

Alguém pode dizer que a santidade e a perfeição o conduziriam a optar pelo melhor plano sempre, mas a própria idéia de um plano A, B, C ou D, resultará na inadequação de ao menos três deles. E tanto a santidade como a perfeição seriam postas de lado por não se enquadrarem ao padrão do Seu pensamento. Se levarmos esse conceito de hipóteses para Deus, ele representará que Deus é capaz de pensar imperfeitamente, e até mesmo de criar imperfeitamente, pois o cogitá-los, por si só, já preanunciaria um estado não-perfeito e não-santo. E, convenhamos, o que a Bíblia afirma é a exata e inquestionável perfeição e santidade divinas. Quanto a isso, não há sombra de dúvidas. O problema nunca está em Deus, mas em nós que não assumimos nossa porção de equívocos e distorções diante de Sua majestade e glória refletidas na revelação especial [e perceptíveis na Criação].

Deus, como o Ser, como o Absoluto, não teve escolhas. Ele pensou uma única vez, um único plano, perfeito, acabado, irretocável, infalível, imutável, assim como Ele é. Este plano já era antes da fundação do mundo, assim como Deus é. O que me leva a concluir que Ele é livre, mas não de uma espécie de sub-liberdade que o condicionaria a equívocos possíveis nas escolhas, ou mesmo a exigüidade delas.

Deus pensou o certo desde o princípio. Pensou o perfeito desde sempre. O imutável. Determinou todas as coisas uma única vez, sem a chance de errar. O que está diante dos nossos olhos e o que não está, o que ouvimos e não ouvimos, o que sentimos e não sentimos, o que existe e o não existe, simplesmente é e não pode deixar de ser. O que não é não veio a existência porque Deus não quis, mas porque não poderia vir [como algo insofismável]; já que não há nEle o cogitar, mas o inapelável, o determinado, o absoluto, não o indeterminado, o provável, o dedutível.

Por isso, Ele é Deus. O Criador. Porque Ele simplesmente é o “eu sou” [Ex 3.14, Jo 8.58].
                                                                                      
                                                  






16 agosto 2022

O desconhecido e Mãos vazias, de Lúcio Cardoso: a tragédia inevitável!

 


 






Jorge F. Isah


O Desconhecido é a primeira novela do livro, publicada originalmente em 1940.

Lúcio Cardoso é mais conhecido por seu romance "Crônica da Casa Assassinada", mas foi um escritor prolífico, de livros densos e linguagem invasiva, para poucos amigos.

Nas primeiras páginas, temos o relato intimista, subjetivo, em que não se vê traços de bondade e beleza nos personagens, os quais são descritos em toda a sua feiura e imperfeição.

Da mesma forma, os ambientes aos quais o protagonista, o "desconhecido", apelidado de José Roberto por sua patroa (demonstrando o desinteresse com as pessoas), são pobres, feios, desumanos, ou excessivamente humanos, naquilo que de pior o homem possui ou faz.

Ainda que não saibamos muito ou quase nada dos personagens, a construção narrativa é perpassada por uma "dor", como uma ferida que não quer se cicatrizar. Lúcio deixa claro que eles são incapazes de ser felizes, de que, provavelmente, a felicidade não é algo que lhes foi destinada pela sorte. Por isso a amargura, por isso a tristeza, por isso a mesquinhez, por isso a indiferença, por isso a desilusão, e ainda mais a solidão... há apenas a disputa, e nenhuma possibilidade de afeto. Podem ser comparsas, jamais amigos. Podem relacionar-se, mas quase sempre em um estado de malquerença e ressentimento.

O texto é poético, em tons poéticos, o que pode dificultar um pouco os leitores menos acostumados a uma linguagem pouco coloquial e direta.

Cardoso descreve o homem como se não houvesse culpados pelo que são ou fazem. O destino os tornou feios e cruéis, não podem evitar sê-los, não há o que ser feito para transformá-los.

Na verdade, o homem é culpado pelo que ele é e pelo que constrói ou destrói, e deixado à sua própria natureza, certamente perpetrará o mal. Pena que Cardoso não tenha entendido a mensagem de Cristo, se não saberia que para o homem impossível e impossibilitado, Deus o possibilita e o torna possível no seu amor.

Há traços religiosos ou, pelo menos, o que se pode chamar de religiosidade no livro. A pergunta é: pode o homem livrar-se do pecado e de si mesmo? Ou é refém da sua natureza e das armadilhas do mundo?

Para Lúcio, o homem é o que é, e nada pode impedi-lo de sê-lo. Parte disso esconde a verdade de que Deus controla o mundo, as pessoas e os seus pensamentos, a fim de que o seu eterno propósito se cumpra.

Mas o que Deus tem a ver com literatura? Tudo. E o que quero dizer de Deus num livro sobre o homem e a humanidade?

Bem, se não posso visualizar o maravilhoso e santo projeto de Deus em tudo o que faço, leio, vejo e penso, o que me vale a fé? Tenho de ser capaz de perceber nos mínimos detalhes a mão soberana e justa do bom Deus.

Portanto, o "Desconhecido" tem tudo a ver com Deus.

Lúcio criou um personagem que não se adapta, ao mesmo tempo em que se conforma com a sua condição. Ele delineia traços nitidamente homossexuais ao seu "José Roberto", que nutre uma admiração por Paulo, o jovem másculo com cara infantil (o platonismo do protagonista, antes de ser um alívio é uma perene dor), e uma aversão a Miguel, o protótipo do "bronco", o homem rude que o persegue, e que funciona como uma metáfora à sociedade que rejeita o estigmatizado gay.

Da mesma forma, Aurélia é uma "ode" ao feminismo, ainda que seja uma mulher perversa, odiosa e vingativa. Mas ela é dona do seu nariz, e faz quase tudo o que ele (o nariz) permite fazer.

Elisa, a empregada, pode ser o símbolo do homem/mulher oprimido(a), preso à infalibilidade de sua condição submissa, incapaz de se libertar das amarras sociais/afetivas às quais está atrelado(a).

No fim das contas, pode ser isso, mas sobretudo o autor fala da impossibilidade humana, da incapacidade dele se livrar daquilo que foi previamente traçado pelo destino. Portanto, ele não é culpado, mas uma vítima de algo maior. É prisioneiro em si mesmo.

O desconhecido é um homem solitário, que busca um refúgio, algo que aplaque a dor insidiosa que o aflige. Para ele, não há alívio, nem como se curar. A sua vida está definitivamente marcada, e nada que faça poderá alterá-la.

Há o fatalismo, sem qualquer solução (o fatalismo por si só é indiferente e, portanto, não se preocupa em solucionar nada, apenas o de acrescentar mais sofrimento). Nem para a solidão, nem para a homossexualidade, nem a maldade. O pecado aflige, porém, é inevitável, insolúvel.

Há apenas o desabafo, ou o choro fugidio por entre as sombras.

O homem perdido somente pode se encontrar em Cristo; firmado na Rocha, o pouso é seguro, a paz reina, há esperança, e a certeza de a dor, as lágrimas e o pecado serem destruídos, assim como a morte.

Para Lúcio a morte é parte da solução. Mas creio que, em algum tempo, ele não pensou mais assim.

Para o autor, não há limites à dor e ao sofrimento. A natureza humana é a própria fonte do mal, inesgotável, e por ele é que se vive ou morre.

O protagonista é um homem desiludido consigo e com o mundo. Apesar de ser um homem do campo (parece que era de uma classe social elevada; ao menos recebeu uma boa educação, evidenciada pelos livros que transportava em sua maleta), ele cultiva um certo niilismo, e a própria impossibilidade de ser feliz, ao conviver com uma "doença" (a qual não é citada mas indicada subliminarmente como o homossexualismo) que o consome, não restando qualquer significado para a vida.
Da mesma forma, os demais personagens se agarram a pequenas esperanças, de domínio, de riqueza, de liberdade e de amor, e um a um veem-nas frustradas.

A morte parece a solução encontrada por Lúcio para tanta dor e maldade, mas é apenas o final de um ciclo, e outro se inicia imediatamente, para terminar em destruição.

O mundo de Lúcio Cardoso é um mundo sem esperança, fadado ao fim em si mesmo, onde as pessoas são atormentadas por seus pecados, condenadas a jamais obterem o perdão. É um círculo infindável onde o mal nunca será derrotado.

Uma pena que a visão de Lúcio o coloque em um beco-sem-saída; mas é assim para àqueles que buscam solução em si próprios, como Lúcio (católico praticante) desejou encontrar, e vislumbrou-se e aos demais em suas condições de homens caídos e irregeneráveis. Pois somente em Cristo, e por Ele, o homem se encontra na perfeita imagem de Deus.

*****

Há significado nas coisas? As pessoas podem dirigir seus atos? Ou eles são inevitáveis armadilhas do destino? E a vida não tem nenhum significado pessoal? E não passa de uma avalanche ininterrupta a soterrá-los? Existe esperança? Ou tudo se encaminha para o mais doloroso e prolongado desespero?

Mãos Vazias é a segunda novela do livro, escrita em 1938, em que se aponta, ou melhor, estão presentes os ingredientes que seriam melhor trabalhados em "O Desconhecido", o qual foi escrito num clima menos opressivo e denso, porém, encontram-se ali o mesmo subjetivismo e niilismo do autor.

A narrativa é um esgar doloroso, onde as mulheres (neste caso, Ida) são dominadoras e cruéis, onde os homens são tolos e ingênuos; onde o vazio e o distanciamento da realidade remete-nos a uma narrativa esquizofrênica, a existência a contemplar sarcasticamente a irrealidade incurável.

Então, para se libertar de toda a angústia, sofrimento, solidão e vazio, não lhes resta outra saída senão impor o sofrimento aos outros, distribui-los generosamente, e esperar que esse desejo anelado se realize através do pecado, como se o mal fosse capaz de livrá-las do bem inalcançável, e tocá-lo fizessem-nas esquecer a impossibilidade de se ter o bem.

A vida não é para ser vivida, mas sofrida.

Ida vive o egoísmo, o isolamento e o desprezo aos outros em si mesma, onde a impossibilidade de afeto, carinho e bondade é o sangue que corre nas veias dos mortos: os vivos contam os minutos para serem abatidos.

É como o choro convulsivo sem lágrimas a se derramar inutilmente por elas e pelo mundo condenado e perdido, fatalmente arruinado. Não há culpa nem culpados, simplesmente é-se inevitável viver o fim.

A solução para um mundo suicida é a fuga, mesmo que seja ao encontro da própria morte.

Lúcio não parece tão à vontade nesse livro como em o "Desconhecido"; talvez por causa da protagonista Ida, e do seu pouco contato com o universo feminino (no sentido de entendê-lo).

Isso torna a narrativa mais impessoal, fria (talvez tenha sido o seu propósito), onde as emoções acabam por delinearem-se pela própria ausência de significância (e não insignificância), e pela visão de um mundo desajustado, em que nada tem significado (olha o niilismo aí, novamente). As reações se sucedem como uma bola de neve morro abaixo, sem a objetividade da bola de neve. São acontecimentos irracionais a seguirem fatos igualmente irracionais, que redundarão em sequências igualmente irracionais, num clima de realismo absurdo, bem ao gosto dos existencialistas, onde o subjetivismo torna o existencialista o único designativo da ação, no qual o mundo se molda, numa espécie de esquizofrenia coletiva; onde a desordem individual é a desordem do mundo, e a falta de lógica e razão permeiam a desilusão.

Todos os elementos da prosa de Lúcio estão presentes em "Mãos Vazias" (pelo menos a maioria), mas a novela pode fazer o leitor sentir-se assim, como o título indica, ainda que o livro esteja diante dos olhos e mesmo à mão.

Fica clara a impossibilidade de Lúcio apresentar alguma solução para os seus dilemas¹, o que torna a sua escrita mais desesperadora, encaminhando o desfecho para um final alucinantemente trágico, inevitavelmente trágico, onde a morte não é capaz de esconder a dor, num mundo sujo, estupidamente previsível em sua loucura.

Lúcio retrata bem o cotidiano, onde o pecado, o individualismo e o isolamento só aproximam mais o homem do seu final sórdido, triste, em que resta manter-se cativo à condenação eterna; e a liberdade impossível de encontrar em si mesmo e no mundo, configura-se cada vez mais disposta a capturá-lo.


Nota: 1- Não existe a necessidade dos autores de ficção apresentarem soluções para os dilemas propostos, para as dúvidas e questionamentos; não é isso que estou a exigir. O autor pode, simplesmente, propô-los, indagar, sem a ambição de solucioná-los. É o que Lúcio Cardoso faz nessas duas novelas: revelar os nós sem desatá-los.

_____________________________________ 

Avaliação: (***)

Título: O desconhecido e Mãos vazias (esgotado)

Autor: Lúcio Cardoso

Páginas: 320

Editora: Civilização Brasileira

Sinopse: 
Da vasta obra de Lúcio Cardoso, Mãos vazias (1938) e O desconhecido (1940) são novelas hoje quase esquecidas e, no entanto, das mais felizes e significativas. Sim, se foi a partir de A luz do subsolo, em 1936, que Lúcio se afirmou definitivamente como ficcionista, é, sobretudo, com Mãos vazias e O desconhecido que ele, além de conquistar a sua verdadeira fisionomia de escritor, chegou ao seu mot juste. Da primeira fase de sua obra, talvez sejam os mais instigantes sob o ponto de vista da concepção e da realização artística, tornando evidente a maturidade do criador de estados de alma, entre a razão e a loucura, traços até então bem raros no romance brasileiro. Seus personagens espelham a desconformidade do autor diante dos seus limites, a sua obcecada e torturada busca de redenção como homem e como artista. Demasiadamente humano, demasiadamente Lúcio"