Jorge F. Isah
O autor, Liao Yiwu, não é cristão. Está mais interessado no movimento de resistência ao
comunismo na China do que propriamente com o Cristianismo, ainda que o
Cristianismo tenha-lhe chamado a atenção como um "movimento de
resistência". Ou seja, seus interesses são muito mais voltados para a
política, sociologia e antropologia (e até mesmo a história do Cristianismo na
China) do que o Cristianismo como fé bíblica. E isso é normal, pois qual
interesse um descrente envolvido com a revolução à contrarrevolução teria com o
Cristianismo?
Ainda que ele chame pastores, missionários e
líderes cristãos de "ativistas" (um claro exemplo de como a mente
revolucionária funciona, ao vislumbrar posicionamentos como meros arquétipos
ideológicos), se permite relatar as declarações de fé que deveriam mover o
cristão: Jesus Cristo como Senhor e Salvador do homem. São poucos esses
momentos, tenho de convir, mas eles existem; e alguns são realmente tocantes,
revelando o amor à verdade e a entrega em proclamá-la, mesmo com o risco de
prisão e morte.
Ele se atém mais à questão do Cristianismo como
movimento histórico que sobreviveu aos tempos de chumbo do governo Maoísta, momentos
críticos nos quais homens, mulheres e crianças, diante da expropriação dos bens
das igrejas, a perseguição aos cristãos professos, prisões, morte, tortura, e
tudo o mais que envolve um regime totalitário onde o estado e o seu líder
máximo são considerados "deuses", cultuados e venerados como se o
fossem, suas vidas abrirem-se sob os pés.
A revolução cultural de Mao foi apenas isto:
uma tentativa de tornar todos os chineses em um só corpo e mente (o corpo
rotundo e atarracado de Mao, e a mente patológica e destrutiva do “estado
chinês”); mas eles mesmos perceberam não haver força capaz de destruir a fé do
povo (boa parte da população campeou e se iludiu com os clichês revolucionários
dos vermelhos, enquanto outra, não tão iludida, viu-se obrigada a aceitá-la em
troca da própria sobrevivência); por isso, criou-se uma igreja oficial e
estatal, onde as regras eram ditadas pelo Partido Comunista, numa forma um
pouco menos explícita de se corromper a alma, ainda que mantendo-se o mesmo
objetivo (regimes comunistas e fascistas são pródigos em controlar tudo, desde
bens, trabalho, vida, pensamentos e, se possível fosse, até mesmo o espírito de
cada um).
Ele parece não entender como uma religião que
chegou ao país havia pouco mais de um século e não tinha raízes na cultura
milenar chinesa, sobreviveu a todas as tentativas de erradicação.
A criação de uma religião nacional e estatal, aos
moldes da religião oficial do Nazismo no III Reich¹, onde os cristãos eram
obrigados a renegar a sua fé em favor da fé no estado chinês e em seu líder
máximo, parecia resultar na destruição de qualquer influência cristã no império
do centro. Entretanto, para a surpresa geral, e do próprio autor, ele encontrou
uma igreja perseguida, à margem da sociedade, escondida em lares e cavernas, a
florescer e crescer em meio ao maior país ateísta do mundo, ao menos em termos
geográficos e demográficos, a despeito de todos os esforços do partido
comunista no combate insistente a qualquer manifestação que não seja o culto a
seus ídolos criados à força, leis e decretos despóticos e insanos.
O Cristianismo vai muito além de simples "fenômenos"
sociais e antropológicos, pois é fruto da ação sobrenatural e direta do próprio
Deus na alma humana. Liao
Yiwu não entende isso, e parece não se
importar com isso. A descrição de prodígios é escassa; o autor não parece se
interessar ou se dispor muito a eles; os relatos até aqui do mover de Deus no
meio do povo ocorrem na forma de uns poucos milagres, narrados com nítida descrença e ceticismo,
mesmo diante das evidências e vários testemunhos oculares, fontes primárias.
Ele tenta relacionar o Cristianismo com outros
movimentos religiosos que se opõem à igreja oficial chinesa, como se fossem
quase a mesma coisa, diferindo apenas no tipo de "Deus" que cada um
cultua e na forma em que se rebelam, ou se revelam. Não faltam relatos
comoventes de cristãos perseguidos, presos, torturados e mortos pelo regime
mais assassino do mundo em todos os tempos, e isso dá a verdadeira dimensão
daquilo a diferenciar boa parte da igreja no Ocidente, confortável, preguiçosa
e negligente quanto a proclamar o evangelho de Cristo; e o Oriente e suas
grandes batalhas, a despeito das terríveis consequências pelas quais terá de
pagar pela desobediência jurídica. Tal qual a igreja primitiva, nossos irmãos
não se calam, levam luz e sal onde estão, e não se negam a fazê-lo mesmo
pagando alto preço.
E, de certa forma, fico pensando que raios de
cristãos são os que defendem a conciliação entre marxismo e o Cristianismo². É
algo impossível e inimaginável para qualquer cristão que não se ilude com a
mentira e falácia de que o marxismo é inofensivo. Por mais que as evidências e
os fatos históricos comprovem as atrocidades, perseguições, execuções e a
tentativa de destruição da fé, alguns de nós não querem ver, ou teimam não ver,
o quão maligno e anticristão são os fundamentos e premissas marxistas. Desta
forma, o ateísmo somente pode ser substituído pela religião do estado³, onde
líderes são cultuados, venerados, como entes sobrenaturais, enquanto faz apenas
apontar para aquilo de mais depravado e ignóbil carregam em seus íntimos
desejos.
Liao escreveu um livro de leitura fácil,
agradável, e que, a despeito de não tocar nos pontos cruciais à fé: a
perseverança sobrenatural diante da mais virulenta e sangrenta perseguição, o
flagelo a corroer e dizimar vidas, cuja única finalidade é a tentativa de
controle integral e absoluto das pessoas (a falsa liberdade de se estar livre
enquanto arrasta-se em cadeias), não deixam de ser relatos a fazer os
entrevistados testemunhas de Cristo, e de o evangelho não parar e continuar em
sua missão de revelar o amor e a graça divinas, a subsistir não pela força
humana, mas pelo poder do Espírito; não por leis e decretos, mas pela justiça e
martírio de Cristo; não por promessas passageiras e irrealizáveis, mas pela
viva esperança e o juramento de Deus a torná-las reais e efetivas, não em um
futuro distante, porém agora, já!
Em princípio, a leitura deste livro é o suficiente
para os cristãos verdadeiros fugirem de qualquer aliança com o marxismo, ainda
que seja apenas por simpatia, pois, como Paulo diz, que união há entre luz e
trevas? Entre Cristo e Belial? A questão é, sem querer demonizá-lo, de o
marxismo ser fruto do desejo de aniquilar qualquer traço divino na Criação, e
qualquer traço divino no homem, feito à imagem de Deus. Para isso, há de se
controlar não somente o corpo e alma mas também o espírito humano. E se isto
não é diabólico em sua proposição, em seu axioma mais furtivo e sigiloso, nada
mais o é!
Não obstante, é impossível não notar os méritos do
autor, Liao Yiwu, e reconhece-los; equivale dizer que a minha crítica
inicial foi parcialmente injusta após refletir um pouco mais em pontos e
narrativas a superar à minha própria suspeita e, porque não dizer, avaliação. Tendo
a sua atenção voltada para o Cristianismo como movimento contrarrevolucionário
na China (uma espécie de rebelião à revolução maoísta), ele abre espaço para o
testemunho pessoal e de fé, com relatos de conversão, de mudança de vida e
propósitos, bem diferente do ufanismo e triunfalismo atualmente vigente no
Ocidente, especialmente aquele a manter de pé, sabe-se lá como, a teologia da
prosperidade e no neopentecostalismo. Neste aspecto, ele construiu um relato,
se não totalmente fiel à igreja chinesa, ao menos não omitiu a marca mais
evidente do Cristianismo: a transformação do homem de criatura a filho de Deus,
de pecador a santo, de escravo a liberto, de perverso a amoroso. Portanto, chamar
de “movimento”, “contrarrevolução”, “revolução” ou qualquer outro jargão
ideológico demonstrará algum grau de ignorância quanto à verdade, de não ser
possível qualquer transformação profunda no homem sem o seu espírito atravessar
os tortuosos caminhos do autonomismo e alcançar o caminho perfeito do
servilismo a Cristo, e somente a ele. Mais vale um servo livre no amor do seu
Senhor do que um autocrata insuficiente, a espalhar o seu ódio generalizado,
inclusive a si mesmo.
Relatos como o do Dr. Sun, um dos mais
renomados e influentes médicos chineses, e que abandonou todo o
"status" que a sua profissão poderia lhe dar (dinheiro, poder, fama e
holofotes) para se arriscar à ajuda humanitária nos grotões chineses (a quem
poderíamos chamar de um "médico ambulante" ou itinerante), onde não
havia serviços públicos e o povo vivia em miséria absoluta, proclamando o evangelho
e vivendo-o, é de fazer qualquer um de nós, cristãos ocidentais, queimar de
vergonha.
Outro relato contundente e pungente é o do filho do
mártir cristão, o pr. Wang Zhiming, condenado única e injustamente por sua
fé em Cristo, à qual teve a oportunidade de renegar por diversas vezes, e se
manteve firme, assim como sua família, e assistiu à brutal e despótica execução
de um inocente. Curiosamente, mais de uma década depois da morte do pr.
Zhiming, ele foi inocentado pelo próprio governo que o assassinou.
Por essas e outras exposições, "Deus é
vermelho" faz-se necessário, inclusive para aqueles acostumados com
o "modus operandi" esquerdista/marxista/fascista. Nossa fé,
de certa forma, é colocada à prova diante dos testemunhos inimagináveis dos
verdadeiros e fiéis servos de Cristo que, perseguidos, humilhados, execrados e,
muitas vezes mortos, permanecem firmes na Rocha, recusando-se a negar quem os
amou eternamente, se entregou completamente e se fez maldição para que o seu
povo fosse bendito.
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Notas:
1- As similaridades entre Comunismo e Nazismo não param aí, no endeusamento dos
seus líderes, que assumem um caráter "messiânico", de salvadores da
nação e do povo. Existem outras tantas semelhanças que os tornam quase gêmeos;
esta porém, o culto ao líder, é o elemento "religioso" a uni-las.
2-
É um movimento crescente na igreja reformada, especificamente entre os proponentes
da TMI e outras vertentes liberais.
3-
Já que o ateísmo em última análise é o
culto ao homem, à natureza, às leis cósmicas, à ciência ou qualquer outra coisa
a considerar “não religiosa”, mas acaba por se tornar, em seus efeitos, tão ou
mais religiosa como qualquer outra religião, pois o homem não pode prescindir
do culto e adoração; e não será a falta de “deuses” a impedir-lhe de
concretizar este desejo entranhado em sua natureza.
4-
Na verdade, Deus não é vermelho. O autor quis afirmar algo impensável até mesmo
para o adepto mais pessimista do comunismo, e até para o fiel mais otimista
entre os cristãos, de que Deus não abandonou o seu povo sob a égide marxista na
China (a alusão à cor dos símbolos da esquerda é evidente). Nesse sentido, Deus
é sim, vermelho.
5-
A China está constantemente na lista do “Portas Abertas” como um dos países que
mais perseguem cristãos no mundo, de maneira cruel, pérfida e insana.
Juntamente com Coreia do Norte, Cuba, Laos, Vietnam, Nicarágua e outros mais,
parecem ter o objetivo de aniquilar o “inimigo comum”. Em alguns casos, nem
mesmo os estados islâmicos, outros contumazes assassinos de cristãos, usam de táticas
tão violentas e desumanas como países de comunistas.
6-
O livro encontra-se esgotado até mesmo em sebos. Não consegui uma única cópia,
mesmo fazendo uma pesquisa detalhada na web. Normalmente não indico baixar
ebooks gratuitos, a não ser livros em domínio público. Neste caso, contudo,
deixarei o link de uma página que disponibiliza o exemplar em epub, pdf ou
mobi: Lê Livros
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Avaliação: (***)
Título: Deus é
Vermelho
Autor: Liao Yiwu
Editora: Mundo
Cristão (esgotado)
No. Páginas: 240
Sinopse: "Na
China comunista, sob o regime de Mao Tsé-tung, todas as práticas religiosas
foram banidas. O comunismo tornou-se a religião nacional e Mao foi entronizado,
deificado e adorado. Apenas a igreja oficial era permitida, mas em seus cultos,
apenas palavras de honra e louvor ao regime e ao líder Mao. Mas debaixo de
tanta opressão, a semente do cristianismo brotou e floresceu. Deus é vermelho
percorre pequenos vilarejos e grandes cidades, trazendo narrativas emocionantes
e assombrosas sobre dezenas de milhões de cristãos chineses que vivem a fé
debaixo do duro regime socialista. Indo de casa em casa, reunindo-se porões e
sótãos, vivendo à margem da religião oficial do Estado, assim caminham os
cristãos chineses. Correndo perigo de prisão, castigos e até morte, assim vivem
os que desafiam o regime para manter e cultivar a fé em Jesus Cristo. Conversas
sussurradas, códigos cifrados, bíblias e material evangelístico
contrabandeados, assim o evangelho é pregado cotidianamente. Deus é vermelho é
o relato tocante e desafiador de uma Igreja viva que cresce e floresce no
regime mais fechado do planeta.”