15 setembro 2022

A mulher de branco, de Wilkie Collins: Em busca da consciência perdida

 






Jorge F. Isah




Wilkie Collins foi, entre outras coisas, amigo de Charles Dickens, com quem escreveu algumas obras: "A viagem preguiçosa de dois aprendizes vadios" e "A casa misteriosa" (também com Elizabeth Gaskell), p.ex. Foi também o pioneiro dos romances policiais, algo inexistente à época, unindo o estilo gótico ao sensacionalista, de onde originar-se-ia o novo estilo e termo “romance de sensação”, e que marcaria a era vitoriana.

A “Mulher de branco” foi escrito entre 1859 e 1860, em uma série jornalística (publicados semanalmente em fascículos, e atraiam a atenção do leitor e insuflava as vendas de periódicos) muito comum à época, e finalmente impresso no formato livro em 1860.

O que dizer então da obra?

Em primeiro lugar, e a despeito de ser um “calhamaço” escrito há mais de 170 anos, a escrita de Collins é fluída, cativante e desbravadora. Neste aspecto, em particular, ela sobrepuja qualquer obstáculo que se apresente como impeditivo para abandoná-lo, desde que o leitor não seja preguiçoso ou procrastinador. E, cá para nós, esse não é um livro para se abandonar ou mesmo negligenciar.

Em segundo lugar, não existe um único narrador; várias situações e desenlaces são narrados ora por um, ora outro personagem. A tríade do bem consiste em Walter Hartright, Marian Halcombe e Laura Fairlie/Ann Catherick, enquanto a tríade do mal são Conde Fosco (um dos grandes vilões da literatura mundial, a meu ver, do qual muitos autores utilizaram-se para compor seus próprios vilões. P.ex., o Juiz Holden, em Meridiano de Sangue, de Cormac McCarthy), Frederick Fairlie e Sir Percival Glyde.

Em terceiro lugar, a impressão inicial é de uma história de amor que não dá certo mas que se sabe terá um final feliz. É uma definição enganosa e simplista quanto à riqueza de detalhes a explorar as várias facetas da natureza humana, percalços, dúvidas e mistérios, e segredos intocados aliados às descrições pormenorizadas da sociedade vitoriana, apresentando-nos uma história de emoções turbulentas em meio a ações meticulosas ou febris.

Em quarto lugar, não existe uma pitada sequer de niilismo e a rejeição de valores e verdades tão comuns em obras do século XX. Nele encontramos a expressão exata de que valores e verdades não são meros conceitos ou ilações, mas a realidade como se apresenta: onde existe certo e errado, moral e imoral, vida e morte, o bem e o mal. Destes princípios emerge uma gama de situações onde o leitor é constantemente colocado, e porque não confrontado, diante de uma vida objetiva, factível, por meio do instrumento ficcional. Conta-se ter Collins reunido informações relativas a crimes com mulheres para compor o seu romance. E muito do permear as páginas de “A mulher de branco” pode ser encontrado em qualquer boletim de ocorrência ou atas de audiências em processos civis e criminais. O fato de o autor ter sido bacharel em Direito explica boa parte da trama e as suas inerentes minúcias e plausibilidade.

Em quinto lugar, esse talvez seja o melhor exemplo do que seria, e deveria ser, um romance popular, ao estilo best seller (sem se parecer com ele. A maioria dos B.S. de hoje são histórias rasas, água com açúcar, mal escritas e inverossímeis. Não que sejam fantasias, no sentido de se explorar a imaginação, mas apenas são desprovidas do labor e a construção necessários para um bom enredo e bons personagens). No primeiro dia de vendas, esgotou-se toda a primeira edição de “A mulher de branco”. Isso mostra o poder da boa literatura, não apenas a despretensiosa diversão (como já disse, vazia, chata e emburrecedora), mas uma forma eficiente de se conhecer o mundo, a si mesmo e seus pares, em meio a todas as complexidades, discrepâncias e contrassenso, mas também da solidariedade, compaixão e sacrifício e outras tantas peculiaridades humanas.

É difícil e duro constatar que o homem prescinda da leitura e do quanto poderia ser esclarecido e, porque não dizer, enobrecido com as vidas e valores impressos nas mais dignas e preciosas páginas da literatura mundial, ao trocá-los por momentos de mera ilusão, entre tapas, mortes e tiros e sexo irresponsável e animalesco, a extravasar os mais débeis sentimentos de entorpecimento (normalmente disponíveis em filmes, jogos e reality-shows abomináveis). Penso haver espaço para essas “formas de expressão”, afinal, como a minha avó dizia, uns gostam dos olhos outros da remela, mas sem a exclusividade e onipresença dessas. O homem tem se empobrecido espiritualmente, moralmente, em favor da emancipação dos seus vícios e pecados, de uma maneira a fazer-se a si mesmo o pior que possa encontrar ou fabricar, enfraquecido, exaurido, tal qual o suicida e uma gilete na banheira... E não me venha falar dos filmes de guerra ou cowboys do passado, pois mesmo os considerados filmes “B” carregavam algo além do sangue, do susto e da escaramuça gratuitas, ao contrário dos jogos e disputas modernos, uma espécie de “pão e circo virtuais” que até podem “encher a barriga”, mas antes envenenam a alma.

“A mulher de branco” foi um sucesso à sua época, e ainda é publicado e republicado em diversos idiomas mundo afora, não pelo aspecto meramente sensacionalista ou o suposto apelo escandaloso da narrativa, mas por imprimir uma história elaborada, com personagens críveis e humanos (a despeito da alegação de excessos em Ann Catherick, p. ex.), e os dilemas e escolhas complexos a atravessar os tempos, nada muito diferente dos primórdios, remontando a Adão, Caim e Abel.

Portanto, não há como não indicar a leitura da obra-prima de Collins, por esses e vários outros aspectos, os quais deveriam instigar o leitor a percorrê-los. Não é um Dickens, reconheço, mas tem méritos e trunfos suficientes para ser apreciado e contemplado; e em tempos de pouca ou nenhuma consciência, a cultivar e exercitá-la.

Leitura recomendada.


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Avaliação: (***)

Título: A mulher de branco

Autor: Wilkie Collins

Páginas: 829

Sinopse: "Inspirado por diversos crimes que haviam chamado a atenção pública, em uma época de jornais sensacionalistas e de leitores que clamavam por escândalos, Wilkie Collins começou a escrever "A mulher de branco" em 15 de agosto de 1859. O leitor é transportado para a Inglaterra vitoriana ao presenciar o encontro misterioso de Walter Hartright com a Mulher de branco, que cruza seu caminho em uma rua de Londres. A obra apresenta o que ficou conhecido como "romance de sensação", com um estilo que prende o leitor da primeira à última página. Repleto de mistérios, segredos, episódios de loucura e mansões cravadas no interior da Inglaterra, "A mulher de branco" segue sendo um dos títulos exponenciais do romance vitoriano inglês"




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