10 outubro 2022

A montanha (in)acessível em "A Montanha Mágica", de Thomas Mann





 

Jorge F. Isah

 

           

Demandou-me cerca de um ano a leitura do calhamaço de Thomas Mann, pois desde o início percebi não ser uma obra para se prescrutar rapidamente, dada a profundidade dos assuntos, personagens, e quaisquer conclusões levianas e precipitadas impossibilitará o leitor de apreender, e se aprofundar cautelosamente, do pensamento requintado e, porque não dizer, laborioso do autor. Ninguém pode se aproximar de “A Montanha Mágica” se não estiver imbuído do espírito de tenaz analista e decodificador. Não é, portanto, um livro de passatempo (mesmo sendo), ou de amenidades (ainda que se encontre), ou de perífrases a suavizar a realidade (talvez, uma ou outra aqui e acolá). Mann conta histórias dentro da história, e até mesmo a História, íntima e intensamente detalhada, tal qual um observador dedicado, nada relapso ou estouvado.

São muitos os exemplos, mas gostaria de deter-me nos diálogos espetaculares (ou debates) entre Naphta e Settembrini, um primor, em vários aspectos. Além da qualidade dos argumentos e dos temas, existe a cumplicidade entre ambos, a despeito da divergência de posições e defesas intransigentes. Mesmo sem o desejo de reconhecer a necessidade um do outro, cujos antagonismos parecem tornar ainda mais imprescindível a coexistência intelectual, não existe ódio ou desprezo, pelo contrário, parecem se alimentar mutuamente, o que não é mau, e pode, talvez, fazer um e outro adequarem os seus pensamentos ao escrutínio da verdade. Bem diferente dos tempos hodiernos, em que a maioria dos intelectuais prima pelo “orgulho” de ouvir a própria voz (quando muitos dos próprios pares), e afastam-se do espírito a permear a cultura por milénios: as ideias se façam audíveis, seja ela qual for, e as inconsistentes e amorfas sucumbam à própria incapacidade de respirar, e não por serem asfixiadas, com a finalidade de haver o monopólio de uma única ideia, seja ela filosófica ou não, ideológica ou não, científica ou não. Em tempos de monomania intelectual e do politicamente correto, Mann sinaliza para o debate, a discussão, sem a necessidade de destruir ou silenciar o oponente, pois somente através dele e de seus argumentos pode-se crescer e aperfeiçoar a verdadeira, e a tão pouco desejada experiência humana de coexistir pacificamente, sem a obrigatoriedade de todos se tornarem unânimes neste ou naquele aspecto.

Por isso, faço questão de ressaltar não somente os diálogos/debates entre o padre comunista e o humanista italiano, mas também dos demais membros da confraria do “Sanatório”, em Davos, nos Alpes, onde se desenrola a narrativa. Perceber-se-á divagações e furos no pensamento de todos, mas assim não é o homem?... Contudo, pode-se ter uma aula, inclusive de convívio organizado (mesmo havendo algum grau de superioridade, presunção, de um em relação ao outro, quanto ao que pensam) com os longos debates entre eles, cujas testemunhas são sempre o Hans Castorp e Joachim (primo de Hans), os jovens a observarem os embates dos velhos.

Este capítulo, em especial, é um exemplo do nível de escrita do autor, e se chama : "Da cidade de Deus e a redenção do mal", inequívoca alusão a Santo Agostinho e o seu “A Cidade de Deus”. Ele aponta para a interessante afirmação de os movimentos revolucionários modernos, p. ex. a Revolução Francesa, Russa, etc., serem fomentados pelos escritos de Tomás de Aquino, e disseminados pelos tomistas, séculos depois. Algo realmente inusitado mesmo entre os clássicos; um nível de debate altíssimo e muito pouco visto ou lido.

No mínimo, uma experiência filosófico-teológica em estado puro.

De todos os capítulos, este foi um dos mais chamativos, por tratar de questões reais mas, também, indo além em termos metafísicos e subjetivos, sem deixar de adentrar no "mundo dos vivos". Questões como liberdade, responsabilidade, revoluções, política, juventude, movimentos de massa, teologia e muita filosofia, estão presentes, ainda que alguns pontos sejam tocados superficialmente e de maneira incipiente, os diálogos são capazes de aguçar a mente do mais desinteressado leitor. O título do capítulo, já citado, é "A cidade de Deus e a redenção do mal", e constitui-se em algo primoroso, escrito por Mann, revelando o alto grau de conhecimento e informação (com certeza decorrente de anos e anos de estudos) para imprimir, durante tantas páginas, uma discussão incomum e detalhada, e, ao mesmo tempo, prender a atenção do leitor sem levá-lo ao tédio ou exaustão, mas chamando-o para o diálogo, e a tirar por si mesmo as necessárias conclusões.

Mann defende exatamente o mesmo que advogo: os escolásticos, e boa parte da igreja romana medieval, foram os reais fomentadores do comunismo e dos movimentos revolucionários posteriores.

Ao contrário do que alguns católicos "iluminados" afirmam, não foram os Reformadores, mas eles próprios a semente do marxismo, muitos séculos antes. Na verdade, trabalharam, e muito, por ele. E ainda trabalham, na companhia de evangélicos, em sua minoria, e também, e especialmente, de boa parte da mídia, celebridades e intelectuais que desconhecem, por ignorância e preguiça em sua quase totalidade, as verdadeiras raízes do que defendem.

A exposição é muito mais longa, e muito bem detalhada no referido capítulo. Deixo apenas a indicação, a quem se interessar, para ler a partir da página 543. Asseguro, vale cada palavra; e a igual meditação, sem se precipitar, lembre-se!

Falando um pouco do livro, no geral, ele não é para qualquer um. O autor parece não estar nem um pouco interessado em "agradar" o leitor comum, pois não temos reviravoltas, surpresas, mudanças repentinas de atitudes e ações abruptas (notadamente aquelas colocadas para assustar ou impactar). O livro está em um desenvolvimento lento, progressivo, e, ao nos depararmos com um movimento menos convencional, não somos pegos desprevenidos, pois ele fora insinuado e se desenvolveu páginas antes (no geral, muitas).

Por outro lado, há um circunlóquio necessário (insinuei, no 1º parágrafo), diria imprescindível, faz o leitor se apaixonar, pouco a pouco, e cada vez mais, com a narrativa. E crie intimidade, empatia com os personagens, tão díspares e ao mesmo tempo tão comuns, como qualquer um de nós, a compartilharem suas angústias, medos, alegrias, esperanças, trivial e complexa humanidade. O ponto central da obra, e me arriscarei a ser confundido entre a ousadia e petulância, refere-se à morte, mais detidamente a descoberta da morte e todas as suas consequências para o bem e o mal... Após algumas dezenas de páginas, não há volta: está-se fisgado até o final.

Também é necessário paciência; não é um livro para apressados. Como em uma lauda refeição, se comer a entrada rápida e vorazmente, não haverá espaço para degustar o prato principal, quiçá a sobremesa.

Mas, certamente, o leitor será contemplado e recompensado com uma farta, deliciosa e inesquecível refeição, para a maioria dos apreciadores. Entretanto, sempre haverá aqueles com indigestão. Para esses, não haverá antiácido a aliviar-lhes a aguda perturbação.

 

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Avaliação: (*****)

Livro: A Montanha Mágica

Autor: Thomas Mann

Páginas: 865

Editora: Cia das Letras

Sinopse: “Neste clássico da literatura alemã, Mann renova a tradição do Bildungsroman - o romance de formação - a partir da trajetória do jovem engenheiro Hans Castorp. Durante uma inesperada estadia em um sanatório para tuberculosos, Hans relaciona-se com uma miríade de personagens enfermos que encarnam os conflitos espirituais e ideológicos que antecedem a Primeira Guerra Mundial. Um dos grandes testamentos literários do século xx e uma das obras inesgotáveis da ficção ocidental.”




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