13 julho 2023

A Velhinha de San Andrés

 







Jorge F. Isah [1]




                O mundo é mal, dizem alguns, enquanto comem caviar, lagostas e bebem um Domaine Leroy Chambertin Grand Cru, de U$ 4.000,00 a garrafa. Só se for para as ovas do Huso huso, dos crustáceos decápodes ou das pobres vitis viníferas. Na verdade, o mundo não é mal. O problema é ter gente só pensando o mal e buscando o mal, enquanto dizem querer o bem. Como aquela galerinha que vive falando em paz, amor, na opressão das codorninhas antes dos ovos eclodirem, enquanto, no silêncio dos fones Beats e segura em seu quarto, maquina esquartejar e atear fogo na inofensiva velhinha no GTA San Andrés. Não obstante, alguém pode questionar ser mal um ataque puramente virtual onde não existem vítimas reais? Claro que não. Seria um absurdo. Mas uma semente daninha, se cair no terreno certo, virará uma árvore dos capetas.

            Certa vez, ouvi de um amigo a seguinte história: Estávamos eu, minha esposa e meus filhos no velório da irmã da tia da amiga de minha mulher. Ela morrera muito jovem e prematuramente. O filho mais velho tinha doze anos. Nos sentimos abalados com a notícia, a despeito de esperar o fim trágico havia algum tempo, já que a doença era incurável. Pois bem, eu não conhecia a quase totalidade das pessoas do lugar, e como minha filha estivesse muito triste, ela se aproximou, encostou-se em mim, e abracei-a, consolando-a. Nisso, chegaram algumas mulheres e conversaram com a minha esposa. Eu não sabia quem eram, mas presumi, pela tristeza, serem parentes. Ficaram lá um tempo; e no ambiente de comoção, talvez por descuido, não fizemos as apresentações.

            Então, uma das mulheres, a que mais me observava (desde a chegada, fixou-se em mim, descaradamente), cochichou algo. Minha mulher virou-se, e sorriu encabulada:

            - Este é o meu marido e a minha filha.

            - Ah, bom, a amiga disse, pensei que fosse mais um velho safado enrabichado por uma garotinha.

            Fiquei tão chocado que não disse nada. Apenas imaginei: que raios levou esta mulher a pensar tal coisa?... Devia ser um recalque, trauma ou simplesmente estupidez.

No fundo, todos esses elementos têm origem no mal, normalmente da própria pessoa. Se você não procurar, não encontra. E mesmo se procurar, pode não encontrar. Mas se insistir na busca, por certo, mesmo que não encontre, arrumará um jeito de crer que encontrou. Assim é boa parte das pessoas que pensam maldades, e as veem nas atitudes mais inocentes e castas. Nada é mais deletério do que os pensamentos delas, muito mais do que a produção necessária para entupir a latrina.

            Outro dia, um velho, ostensivamente, olhava uma adolescente em vestes sumárias. Ao ponto de a garota se incomodar, trocar de lugar, e ficar de longe esguelhando- o. Ele não se importou, e manteve-se fixado nela. Por fim, ela desistiu e saiu porta a fora. Então, ele se virou para mim e disse:

            - Viu aquilo?

            - Não. O quê?

            - Ora, essas meninas não sabem mais como se portar em ambiente público. Vestem-se como prostitutas, e não respeitam ninguém.

            Eu verdadeiramente não queria aquela conversa. Mas não me contive, tal a dissimulação do velho gagá.

            - E o senhor, sabe?

            - Sabe o quê?!! – ele estava intrigado, quase assustado, e sem me entender.

            - Portar-se em público?

            - Ora, como ousa! Sabe com quem está falando?

            - Não, não sei. E o senhor, sabe?

            Esperou um instante. Os olhos indecisos e a língua claudicante. Por fim, respondeu:

            - Não, não sei... Quem você é?

            - Sou o homem que vejo um hipócrita a metros de distância, mas um canalha posso senti-lo quilômetros mais.

            Levantei-me, e saí da poltrona onde estava. Do seu lugar, ele me encarou. Até que foi chamado. A secretária do proctologista ao vê-lo, disse sardônica:

            - Por aqui de novo, seu Mário?... – E lhe deu um tampinha nas costas -  Desse jeito, vou ter de arrumar um cantinho para o senhor.

            - Ora, ora, menina, não carece.

            Entrou sorridente, talvez sem entender, talvez entendendo, talvez sem aceitar, talvez aceitando as formulações da enfermeira. De minha parte, estava aliviado de não receber tratamento tão íntimo, mesmo da equipe oftalmológica. 

            É o que sempre digo, a despeito do pecado original, da natureza caída do homem, ainda resta muito do “imago dei”[2] em cada um de nós, e, por isso, existe bondade nas pessoas, talvez não o suficiente, talvez em módicas porções, mas capaz de nos fazer lembrar do que somos, do que não somos, do que deveríamos ser e não podemos ser, mas é sempre Deus a nos mostrar como seremos, se para o bem ou para o mal, é ele quem nos mostra, nos guia e nos orienta e sustém no caminho para o bem. É uma discussão longa, que o exíguo espaço desta revista não permite, mas o fato consiste em: se procurar o mal, o encontrará até mesmo nas coisas boas e saudáveis da vida. Se procurar o bem, é possível que do próprio mal Deus faça o bem, e você se surpreenda.

            Surpreso ou não, existem os incapazes de ver além dos próprios olhos, de enxergar além de si mesmo e, por isso, ninguém ou nada jamais prestará. Os niilistas foram tão eficientes em espalhar seus dogmas, seu pessimismo além do próprio ceticismo e derrota, que mesmo que a vitória caia-lhe nos colos, a tratarão como inimiga, venenosa, absurda e sem sentido. Se um deles, não segundo a realidade ou as exigências da vida, mas segundo a descrença utópica ou melhor, a relutância absoluta, estivesse se afogando e lhe dessem uma boia salva-vidas, ele a recusaria, ciente de não haver nada em seus princípios a consentir com tamanha nulidade. E, ainda por cima, acusariam o bombeiro, a tentar resgatá-lo, de astênico e covarde.

            Certa vez, um jovem foi vendido como escravo por seus irmãos. O seu nome era José. Acabou levado para a casa de um importante figurão em um país distante. Lá, em uma série de encadeamentos providenciais, acabou por ganhar a confiança do rei. Ao se antecipar e prever tempos difíceis, de fome e escassez, e tomar atitudes e medidas para o reino não sofrer as agruras da penúria, se tornou primeiro-ministro. Durante a miséria da região, sem saber, seus irmãos migraram para esse país, em busca de alimento, já que era o único preparado para atender as necessidades não somente do reino mas dos países ao seu redor. Quando perceberam que o segundo homem mais importante era o seu irmão, entregue como escravo na adolescência, imaginaram que seria o momento de vingança e que estariam literalmente ferrados. Não esperavam por misericórdia, mas justiça. Não esperavam perdão, mas sentença. Muito menos afeição. Nada além do castigo.

            Então, o primeiro-ministro ao vê-los, chorou, abraçou-os, mandou alimentá-los, trocar-lhes as roupas, e fazer uma festa. Estarrecidos com aquela situação inesperada, mas ainda temerosos, ouviram de José: “Vós bem intentastes mal contra mim; porém Deus o intentou para bem, para fazer como se vê neste dia, para conservar muita gente com vida.”[3]

            Você pode se lamentar e dizer: ninguém presta!... Este mundo não vale nada!... Mas, na verdade, você é apenas medroso, um poltrão a lançar por todos os lados, e sobre todos, os seus receios e pavores, resumidos nestas palavras: amar e fazer o bem.

     Por incapacidade, escolha ou fingimento, atear fogo ou esquartejar inocentes no GTA certamente é o seu jeito de dizer: dane-se!

             Principalmente, a si mesmo.              


[1] Texto publicado originalmente na Revista Bulunga, No. 19. Disponível em bulunga.com

[2] Imago dei, do latim, imagem divina ou imagem de Deus. Conforme Gênesis 1:26-27 e 5:1

[3] Gênesis 50:20 

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