Jorge F. Isah
O que esperar
de uma compilação de contos de um ícone do gênero policial noir, sendo a
maioria deles escritos para publicações baratas, as chamadas Pulp fiction[1],
muito antes da fama?
Para ser
sincero, foi uma surpresa positiva. Ao contrário de alguns que não veem mérito
no processo de formação do escritor, tenho certo interesse por ler os primeiros
trabalhos, aqueles raramente tidos como obras-primas ou relevantes (seja lá
qual significado carregue) para, exatamente, descobrir, ainda que um pouco, a
trajetória e caminhos pelos quais o autor atravessou. Dashiell Hammett não é o
meu predileto do gênero. Gosto mais de Chandler, apesar de ter algumas
ressalvas. Mas, dizer que ele não foi importante ou um mau escritor, vai uma
diferença enorme. Considero, como já disse em outro lugar, O Falcão Maltês acima da média e, para mim, disparado o melhor livro de Hammett (mas suponho
que este seja um ponto sem discordância entre a maioria dos seus leitores).
E “Tiros na
Noite”[2]?
Bem, são 20 contos escritos entre 1920 e 1930, publicados aqui e acolá em
revistas populares, alguns muito bons, outros nem tanto. Mas os primórdios
estão lá: o detetive durão, seco, que desconfia de tudo e de todos e não mede
esforços para desvendar crimes e levar os autores à prisão. Diferente dos
livros policiais clássicos, onde a linguagem mais sofisticada, personagens
aristocratas, sutilezas e uma trama onde o protagonista é um mero coadjuvante,
as histórias de Chandler, Goodis e Hammett colocam o “herói” (se podemos
chamá-lo assim) no papel de proeminência no texto. Não sei se me fiz entender
mas Agatha Christie, Edgar Wallace, George Simenon, entre outros, privilegiavam
a trama, ou melhor, o crime em si, e desvendá-lo era mais importante do que
criar personagens bem delineados e concebidos. Com isso, não digo inexistir
marca ou valor nos protagonistas desses autores, apenas são mais conhecidos
pela capacidade de elucidar dilemas do que exatamente por suas personalidades.
Ao contrário,
os autores “noir” primam pela concepção do herói e a trama se ajustará ao
caráter dele (não faço qualquer tipo de comparação aos talentos, no sentido de
Chandler ser maior que Simenon, p.ex.; a diferença é estrutural). O enigma é
importante, contudo, tão ou mais importante é o agente a desnudá-lo. Então,
temos Spade ou Marlowe, homens comuns (mesmo em suas singularidades),
obstinados, intransigentes em suas missões, dispostos às últimas consequências,
mas muito mais próximos do cidadão com o qual trombamos todos os dias. A força
dos seus caráteres, aliada à necessidade de comer, beber e pagar o aluguel, e o
senso de “utilidade” pública, move a narração até o seu desfecho final. Nem
sempre é a soma do intelecto, da razão, perspicácia ou engenho; as vezes são
coincidências, fortuitas, ambíguas, obscuras. Os “tropeços” nas evidências e
provas.
Pois assim são
os contos deste volume. Um mundo onde o crime é crime, em sua vulgaridade,
doença, crueldade, sem adornos ou disfarces, apenas a realidade nua a despojar-se
diante do leitor. Quase ninguém está disposto a desempenhar um papel benigno ou
satisfatório em suas relações pessoais. A maioria é covarde, bêbada, violenta, nociva,
mesmo em suas superfícies de aparência indelével, de caráter nobre e virtuoso.
Ainda que a alma humana não seja exposta em argúcia e lúcido propósito, o autor
a apresenta em flashes, pegadas em terra dura, capazes de fornecer muitos traços e
aspectos daqueles a marcá-la. Estão lá, para todos verem, e cada um meça a si
mesmo pela régua de Hammett; não quanto à criminalidade mas a humanidade.
Como disse, há
boas estórias e outras nem tanto. Nelas se vê, pela primeira vez, a aurora de
Sam Spade, ainda anônimo, sem os holofotes a iluminá-lo no panteão dos heróis
detetivescos, mas os sinais do brilho advir fazem-se notar. Encontramos os
indícios do que Hammett viria a se tornar, nos anos seguintes, e de como a sua
escrita impactaria e influenciaria a categoria por gerações.
É um livro a
introduzir os não iniciados em “Noir” ou “Hammett”, e a perscrutar um dos
principais modeladores do gênero. Com isso, não há como não indicar o livro, e
esperar que o leitor encontre, como encontrei, as muitas faces do mal moldadas
nas mais díspares figuras: gordas, altas, baixas, magras, homens, mulheres,
gays, muita cobiça e devassidão, e um pouco, um tiquinho de decência e
honradez, a mostrar que mesmo no pior dos mundos a Imago Dei não se
extinguiu por completo. Afinal, no homem
se trava a maior de todas as lutas entre o bem e o mal, e nem sempre este
vence; porque o sopro de vida, o vento a conceber a alma, não extingue.
[1] Quanto ao título desta postagem, não resisti a tomá-lo na linha “Pulp”, estilo com o qual muitas das estórias criadas por Hammett se integraram.
[2] “Tiros
na Noite”, volume único, foi o que li. Existe nova edição da LP&M
dividida em dois volumes.
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Avaliação: (***)
Título: Tiros na Noite - Volume ùnico
Autor: Dashiel Hammett
Páginas: 567 Páginas
Editora: LP&M
Sinopse: