01 setembro 2021

Tiros na Noite: Nenhum pela Culatra

 




Jorge F. Isah


O que esperar de uma compilação de contos de um ícone do gênero policial noir, sendo a maioria deles escritos para publicações baratas, as chamadas Pulp fiction[1], muito antes da fama?

Para ser sincero, foi uma surpresa positiva. Ao contrário de alguns que não veem mérito no processo de formação do escritor, tenho certo interesse por ler os primeiros trabalhos, aqueles raramente tidos como obras-primas ou relevantes (seja lá qual significado carregue) para, exatamente, descobrir, ainda que um pouco, a trajetória e caminhos pelos quais o autor atravessou. Dashiell Hammett não é o meu predileto do gênero. Gosto mais de Chandler, apesar de ter algumas ressalvas. Mas, dizer que ele não foi importante ou um mau escritor, vai uma diferença enorme. Considero, como já disse em outro lugar, O Falcão Maltês acima da média e, para mim, disparado o melhor livro de Hammett (mas suponho que este seja um ponto sem discordância entre a maioria dos seus leitores).

E “Tiros na Noite”[2]? Bem, são 20 contos escritos entre 1920 e 1930, publicados aqui e acolá em revistas populares, alguns muito bons, outros nem tanto. Mas os primórdios estão lá: o detetive durão, seco, que desconfia de tudo e de todos e não mede esforços para desvendar crimes e levar os autores à prisão. Diferente dos livros policiais clássicos, onde a linguagem mais sofisticada, personagens aristocratas, sutilezas e uma trama onde o protagonista é um mero coadjuvante, as histórias de Chandler, Goodis e Hammett colocam o “herói” (se podemos chamá-lo assim) no papel de proeminência no texto. Não sei se me fiz entender mas Agatha Christie, Edgar Wallace, George Simenon, entre outros, privilegiavam a trama, ou melhor, o crime em si, e desvendá-lo era mais importante do que criar personagens bem delineados e concebidos. Com isso, não digo inexistir marca ou valor nos protagonistas desses autores, apenas são mais conhecidos pela capacidade de elucidar dilemas do que exatamente por suas personalidades.

Ao contrário, os autores “noir” primam pela concepção do herói e a trama se ajustará ao caráter dele (não faço qualquer tipo de comparação aos talentos, no sentido de Chandler ser maior que Simenon, p.ex.; a diferença é estrutural). O enigma é importante, contudo, tão ou mais importante é o agente a desnudá-lo. Então, temos Spade ou Marlowe, homens comuns (mesmo em suas singularidades), obstinados, intransigentes em suas missões, dispostos às últimas consequências, mas muito mais próximos do cidadão com o qual trombamos todos os dias. A força dos seus caráteres, aliada à necessidade de comer, beber e pagar o aluguel, e o senso de “utilidade” pública, move a narração até o seu desfecho final. Nem sempre é a soma do intelecto, da razão, perspicácia ou engenho; as vezes são coincidências, fortuitas, ambíguas, obscuras. Os “tropeços” nas evidências e provas.

Pois assim são os contos deste volume. Um mundo onde o crime é crime, em sua vulgaridade, doença, crueldade, sem adornos ou disfarces, apenas a realidade nua a despojar-se diante do leitor. Quase ninguém está disposto a desempenhar um papel benigno ou satisfatório em suas relações pessoais. A maioria é covarde, bêbada, violenta, nociva, mesmo em suas superfícies de aparência indelével, de caráter nobre e virtuoso. Ainda que a alma humana não seja exposta em argúcia e lúcido propósito, o autor a apresenta em flashes, pegadas em terra dura, capazes de fornecer muitos traços e aspectos daqueles a marcá-la. Estão lá, para todos verem, e cada um meça a si mesmo pela régua de Hammett; não quanto à criminalidade mas a humanidade.

Como disse, há boas estórias e outras nem tanto. Nelas se vê, pela primeira vez, a aurora de Sam Spade, ainda anônimo, sem os holofotes a iluminá-lo no panteão dos heróis detetivescos, mas os sinais do brilho advir fazem-se notar. Encontramos os indícios do que Hammett viria a se tornar, nos anos seguintes, e de como a sua escrita impactaria e influenciaria a categoria por gerações.

É um livro a introduzir os não iniciados em “Noir” ou “Hammett”, e a perscrutar um dos principais modeladores do gênero. Com isso, não há como não indicar o livro, e esperar que o leitor encontre, como encontrei, as muitas faces do mal moldadas nas mais díspares figuras: gordas, altas, baixas, magras, homens, mulheres, gays, muita cobiça e devassidão, e um pouco, um tiquinho de decência e honradez, a mostrar que mesmo no pior dos mundos a Imago Dei não se extinguiu por completo.  Afinal, no homem se trava a maior de todas as lutas entre o bem e o mal, e nem sempre este vence; porque o sopro de vida, o vento a conceber a alma, não extingue.

 


[1]  Quanto ao título desta postagem, não resisti a tomá-lo na linha “Pulp”, estilo com o qual muitas das estórias criadas por Hammett se integraram.  

[2] “Tiros na Noite”, volume único, foi o que li. Existe nova edição da LP&M dividida em dois volumes.

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Avaliação: (***)

Título: Tiros na Noite - Volume ùnico

Autor: Dashiel Hammett

Páginas: 567 Páginas

Editora: LP&M

Sinopse: 

"Em Tiros na noite, o leitor encontrará reu­nidas vinte histórias de Hammett que permaneceram fora das livrarias nos quarenta anos após a morte do autor. São contos ambientados em um mundo corrupto, onde o crime organizado é rei e em que o ganho desonesto e paixões violentas regem as vidas humanas. Este primeiro volume é dominado pela figura de Con­tinental Op, um durão e taciturno detetive particular de San Francisco sempre cercado por vítimas, traidores e cadáveres, e dono de uma habilidade única para chegar à verdade das coisas.
O próprio Hammett dizia que sua ambição era elevar as histórias de mistério a grande arte. Tiros na noite comprova o absoluto sucesso do autor."


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