27 setembro 2021

A Superfluidade Humana em “Retrato de Uma Senhora”, de Henry James

 



Jorge F. Isah


Retrato de uma Senhora é um livro de conflitos, a perpassá-lo em cada página, parágrafo, linha. Henry James é um autor e tanto. Ele penetra e fustiga seus personagens até espremê-los à exaustão e ao limite de suas forças (dele, e deles). E o amor parece ser a causa, a origem de todos os embates e hostilidades nessas relações. Seja o amor à pátria, ou alguém, ou a si mesmo, seus desejos ou convicções, nada é fácil, ou melhor, puro, aos olhos dos personagens. Existe sempre uma áurea de maldade, de oposição, a impedi-lo de se concretizar, materializar-se, em meio às imperfeições e sutilezas aspiradas por almas incapazes de fazer o bem, ainda que o almejem (Ralph, certamente o personagem mais fascinante do livro, mesmo pretendendo fazer o bem, acaba por reconhecer que o bem pretendido não foi além do mal realizado. Ainda que seus esforços sejam nobres, dar à sua prima, Isabel, os meios para realizar o seu idealismo: ser uma mulher do mundo, conhecendo-o, em sua ânsia por liberdade; motiva-o a satisfação de ser o benfeitor anônimo, numa prova de desprendimento, mas também de ascetismo mórbido – Quem ler o livro entenderá).

A ideia do autor de narrar a trajetória de Isabel, no decorrer de alguns anos, menos de uma década, e, especialmente, o que lhe sucederia, sendo uma jovem moderna, independente e visionária, leva-o, contudo, a investigar o fracasso, digo, a frustração de homens e mulheres a circundá-la; satélites em desarmonia, perturbados e caóticos, enquanto a estrela central se implode, incapaz de manter a si mesma, e ao seu círculo, na rota da felicidade. Estão sempre a colidir uns com os outros; e amontoam-se em camadas de orgulho, vaidade e pernosticismo. Não é o retrato de uma senhora, mas da alma humana, de uma sociedade na qual a busca da felicidade e realização tem tão duros e insuperáveis obstáculos que o desgosto parece ser a forma natural de se viver enquanto os sonhos se dissipam, como barcos em naufrágios.

O mal se faz sentir nas doenças, nos encantamentos, nas aspirações, nos convívios, amizades, casamentos, traições e tentativas; percorre os sentimentos, os atos, os desejos, e nem mesmo uma alma angélica e adorável como a de Pansy está imune à tristeza de, sendo cândida, pagar pela impureza dos outros; mais especialmente de seu pai, Osmand e de sua amiga, madame Merle. Esta, com certeza, é ladina, finória, vivendo em uma constante trama, planejando tirar dos outros, em especial o seu círculo mais próximo, as vantagens necessárias para sobreviver, sem ser ela mesmo capaz de retribuir além das intrigas.

É difícil escrever sobre uma história sem contá-la; e é o que venho tentando fazer, sem as vezes obter sucesso. A ideia é relatar o mínimo necessário para aguçar o interesse do leitor, de que ele se disponha a comprar o livro e, ele mesmo, venha a descobrir coisas que não descobri, e ver o que não vi. Tomara que eu possa, com o mínimo, levar alguns a desejarem o muito.

Retrato de uma Senhora é um grande livro, dos melhores que li ultimamente. A trama é elaborada, sem os constantes e desnecessários “sustos” e “perplexidades” que as obras atuais se especializaram, como a maneira mais fácil de fisgar o leitor (de maneira artificial. Escrevem como se fosse um thriller de suspense e emoções “sem pé nem cabeça”). Não é um livro fácil; mas certamente, à medida que se dá voz às personagens, acaba-se por criar uma empatia e cumplicidade com alguns deles. E o grande livro somente o é se amamos e odiamos, apiedamos ou desprezamos certas personagens. Escrito no final do século XIX, é uma obra universal. Talvez, e somente talvez, eu gostaria que James tivesse reduzido o volume total de páginas em algumas dezenas; me parece que cinquenta seria um bom número. Mas, certamente, não serei eu a desprezar uma linha sequer do enredo; pelo contrário, tenho-as, cada uma, como importante para o desenrolar da história.

Voltando a ela, creio que a maioria desprezaria ou não entenderia os percalços, dúvidas e esquemas abusivos e caprichosos em que as pessoas se inseriam ou eram cooptadas. A questão pode ser entendida como o apelo à “primitividade” humana, tão distante da “liberdade” com que se goza atualmente. A verdade é que o livro vai muito além da superficialidade das relações e seus meandros, e que parecem desmerecê-los em prol dos modernosos avanços do sec. XXI. Ledo engano. O homem certamente descrito por James conhecia mais de si mesmo e do outro, e por isso não tinha ilusões, ao menos não se entregava a elas como um cão ao osso. Ao contrário da aparente fleuma de superioridade, da autoconfiança e da quase infalibilidade das apreciações e conceitos “modernos”, o homem permanece o mesmo, em sua busca de felicidade, de satisfação, de realização, mas esquecendo-se de que nelas reside o seu ser. Ele nada mais é do que aquilo que faz ou pensa fazer, para o bem ou para o mal. Ele não é, se não fizer; e mesmo fazendo, deixa de ser. Não o que é, mas o que deseja ser ou pensa ser. Por que isso? Porque a leitura de qualquer obra deve, no mínimo, não ser apenas a apreciação da história pela história, mas o que ela revela do homem, do mundo, do conhecido, do desconhecido, do tangível, do intangível, do natural e do sobrenatural, do homem e de Deus.

Henry James não pretendeu escrever sobre a necessidade do homem de Deus, mas ao descrever a insuficiência humana e o seu fracasso, deixou nas entrelinhas essa exigência; pela falta pode-se saber a ausência, e naquilo em que somos carentes. E, “Retrato de uma Senhora”, é a síntese da superfluidade que em nada preenche ou pode preencher o homem.

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Avaliação: (****)

Título: Retrato de Uma Senhora

Autor: Henry James

No. de Páginas: 680

Editora: Cia das Letras

      Sinopse: "Retrato de uma senhora, publicado pela primeira vez em 1881, é o primeiro grande romance de Henry James, e talvez sua obra máxima. Num século em que a esposa burguesa insatisfeita tornou-se um personagem literário central, e o adultério um motivo romanesco recorrente - o século da Madame Bovary, de Flaubert, e de Anna Karenina, de Tolstói -, Henry James colocou em cena uma heroína singular, cuja carência essencial é de outra ordem. Com uma narrativa que, astuciosamente, começa lenta, quase contemplativa, e aos poucos se acelera, ganhando dramaticidade, James constrói sua história como um jogo em que cada coisa se transmuta em seu oposto: liberdade em destino, afeto em traição, pureza em artimanha - e vice-versa"







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