15 março 2021

Um pouco sobre o cristão, políticas sociais e salvação

 




Jorge F. Isah


    Li o seguinte comentário no facebook, cuja autoria foi apontada ao Ariovaldo Ramos (não há indicação da fonte; mas, como foi um comentário elogioso, não vejo motivos para duvidar da autoria. Entretanto, esquivar-me-ei de aludir ao seu nome como arquiteto do comentário, a fim de não fazer-lhe injustiça, caso não seja o seu mentor. O chamarei apenas de "Ideólogo").
    Farei um pequeno comentário ao final do texto copiado:
    Mateus 25.31-40:  O grande julgamento

    "Quando vier o Filho do Homem na sua majestade e todos os anjos com ele, então, se assentará no trono da sua glória; e todas as nações serão reunidas em sua presença, e ele separará uns dos outros, como o pastor separa dos cabritos as ovelhas; e porá as ovelhas à sua direita, mas os cabritos, à esquerda; então, dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu Pai! Entrai na posse do reino que vos está preparado desde a fundação do mundo. Porque tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; era forasteiro, e me hospedastes; estava nu, e me vestistes; enfermo, e me visitastes; preso, e fostes ver-me. Então, perguntarão os justos: Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer? Ou com sede e te demos de beber? E quando te vimos forasteiro e te hospedamos? Ou nu e te vestimos? E quando te vimos enfermo ou preso e te fomos visitar? O Rei, respondendo, lhes dirá: Em verdade vos afirmo que, sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes."
    Agora, o Ideólogo interpreta a exortação do Senhor Jesus à "luz" de Marx:
    "Somos salvos pela graça, logo, esse texto não se enquadra na perspectiva da salvação pessoal. Este texto é sobre o juízo das nações.
    O Senhor Jesus julgará as nações, e o critério será o que chamamos de políticas públicas.
    Será acolhida a nação que tiver desenvolvido políticas de socorro aos mais vulneráveis.
    As demandas divinas exigem contrapartida: tive fome - política de segurança alimentar; tive sede - política de saneamento; era forasteiro - política de direitos humanos; estava nu - política de moradia, transporte e educação; enfermo - política de saúde; preso - política penitenciária.
    O Senhor Jesus está atento aos movimentos em relação aos mais necessitados.
    Há uma demanda de Jesus por políticas que diminuam a desigualdade social, e que promovam um tratamento justo, e que promova recuperação do ser humano, inclusive aos que estão em estado prisional.
    Em tempo de voto, estes são elementos a serem levados em conta, diante da urna indevassável" (grifo em amarelo para acentuar o comentário do Ideólogo) .
    Bem, não me assusta tal discurso, demonstrando uma completa ignorância bíblica, na qual o Ideólogo distorce o Texto Sagrado para enquadrá-lo ideologicamente em suas convicções pessoais (algo que Pedro condenou como "particular interpretação"¹).
     Cristo está a falar de amor e piedade individuais, de cada crente para com o seu próximo, assim como ele também ensina na parábola do Bom Samaritano; mas o Ideólogo consegue colocar palavras na boca do Senhor que jamais disse, a favor de "políticas sociais" patrocinadas pelo estado (se não é essa a sua intenção, por que aludir ao julgamento de nações, como se o Brasil ou EUA ou Cuba pudessem ir para o Inferno; e ao "voto" em época de eleição?). Novamente, a mente marxista (e que nada tem de Cristo) remete a responsabilidade individual do cristão ao estado (um deus?!!), transferindo algo inalienável e sem o direito de fazê-lo a um terceiro que não é cristão nem pode sê-lo, não tem vontade própria nem pode tê-la.
    Outro aspecto a ser notado é que o Senhor Jesus está a falar de salvação, sim. Por "ovelhas" temos não um arranjo social/governamental/político ou algo que o valha. Por "ovelhas" temos aquelas pelas quais o sumo Pastor juntou para Si, pela sua morte expiatória e redentora na cruz. "Ovelhas" jamais podem ser nações, ongs, partidos políticos, embaixadas, cortes, parlamentos ou qualquer outra invenção humana. Assim como, por cabritos, está a falar daqueles pelos quais não morreu na cruz, nem levou sobre Si os pecados desses, e jamais teve o objetivo de ajuntá-los.
    Outrossim, o bem em ajudar o próximo é prerrogativa das "ovelhas", pois são as únicas capazes de cumprir adequadamente (em fé, propósito e meios necessários) a vontade de Deus. Cujo fim sempre é a glória do próprio Deus. O que sabem disso nações, estados, congressos ou repartições governamentais? Já que são eles, em sua maioria, os proponentes de mortes, miséria, torturas e injustiças? Muitas com a alegada falsa piedade de fazer justiça?². Mas ainda assim, não são as repartições e órgãos a serem responsabilizados, pois não haverá nações e países no Tribunal de Cristo, nos últimos dias. Serão os homens condenados pelo que fizeram ou deixaram de fazer, não como causa, mas consequência do desprezo e pouco caso com a obra redentora do nosso Senhor. Ou seja, em última instância, homens e mulheres sem a fé salvadora, e que jamais creram em Jesus como único e suficiente Salvador e Senhor. E o juízo, por mais que possa ser coletivo, no sentido de multidões serem lançadas no inferno ou mesmo sujeitas às desgraças mundanas, é sempre individual, mesmo estando muitas delas juntas ou agrupadas. Não serão as ações estatais, corporativas ou legais a salvar o homem do juízo vindouro; o estado apenas pode empurrá-lo um pouco mais para dentro do fogo.
   Então, mesmo o Ideólogo tentando, de todas as maneiras, fazer malabarismo e distorcendo vergonhosamente as palavras de Cristo, a ideia de justiça social nada mais é do que uma construção humana bem moderna, diga-se, e nada tem a ver com o Evangelho e a missão de resgatar vidas. Em outras palavras, o Ideólogo está estabelecendo dois tipos de salvação; equivalente a dois tipos de redenção; dois tipos de sacrifícios; indicando haver dois tipos de salvadores, cuja eficiência, se não é a mesma em termos sobrenaturais, é em termos práticos: absolver as pessoas da ira divina através de ações e justiça social, seja lá o que isso represente na mente confusa de pastores impregnados por ideologias, e que nada tem a ver com piedade, perdão e misericórdia, no fim das contas. É, quase sempre discurso para "boi dormir"; e fazer os adeptos dessa diabólica teologia presas da própria presunção, orgulho e pedantismo.
     A própria igreja institucional, cuja missão é reunir os crentes para realizar o obra de Deus, não pode salvar, muito menos aplacar a ira sobre aquele que, mesmo sendo membro local, não é eleito, não foi regenerado nem salvo, mas permanece morto em seus delitos e pecados, porque nunca teve o encontro pessoal com Cristo. Portanto, resta condenar a mentira descarada do Ideólogo, condenável em todos os aspectos, digno de ser colocado no rol dos falsos-mestres, daqueles que, caso Deus não os converta das trevas à luz, serão alvos da sua santa e justa ira, sem que possam apelar para o estado e seus pares, incapazes de lhe dar qualquer escudo ou proteção.
    
Notas: 1- II Pedro 1:20;
2-"Tendo aparência de piedade, mas negando a eficácia dela. Destes afasta-te." (2Tm 3.5)
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08 fevereiro 2021

As Mortes e Vidas de Mattia Pascal

 




Jorge F. Isah


Este romance estava no aguardo de uma brecha em minhas leituras já há algum tempo. Para ser sincero, comprei o livro há uns cinco anos, mas somente agora, em meio a Santo Agostinho, Murilo Rubião, Santo Atanásio e J.M. Coetzee, pude me debruçar sobre o volume. E qual não foi a minha surpresa com o tom farsesco, cínico e debochado da narrativa de Pirandello? Humor refinado e reflexivo, permeado por uma escrita ágil, límpida e agradável, que me fez concluir a leitura em menos de três dias.

Mas, de que se trata? Bem, não farei uma sinopse ou resumo, pois sabe que não é minha maneira de resenhar qualquer leitura. Existem, contudo, algumas perguntas que podemos fazer:

1)      É possível deixar de ser quem se é? E transformar-se em outra pessoa?

2)      Quais as implicações em assumir outra identidade?

3)      Qual o custo para se construir uma nova história de vida e caráter?

4)      Por que se quer abandonar uma vida/identidade e assumir outra?

5)      O fracasso é individual? Ou pode ser colocado na conta de outro?

Essas são algumas perguntas que o autor se dispõe a responder (sem necessariamente respondê-las), com uma porção de ironia e troça que transforma o protagonista em motivo de boas risadas, em meio as análises e impressões de sua conduta como fugitivo de si mesmo. Não é um livro escrachado, pelo contrário. A escrita de Luigi é elaborada, afiada, esmerada, mesmo diante da aparência de simplicidade, e atinge em cheio os objetivos propostos: o questionamento moral, ético e filosófico do que é a vida, a individualidade e sociabilidade.  Em alguns momentos, ela resvala no estilo folhetinesco, sem contudo adentrá-lo. É um namoro que não se concretiza.

A partir da futilidade e indolência com que trata a própria vida e as relações sociais, Mattia se vê na encruzilhada de assumir a culpa ou reputá-la a outrem, no caso, a sogra e o casamento. A ruína financeira, a mediocridade intelectual, a perda do estilo de vida hedonista, e a busca pelo sustento, são fatores com os quais ele não pode conviver. Para um jovem capaz de liquidar o patrimônio familiar com vulgaridades e desperdício, ociosa e levianamente, o trabalho era um dos piores dos seus temores. E o assédio de credores, e as ininterruptas censuras da sogra, tornava tudo ainda mais insuportável e claustrofóbico. A vida lhe era uma prisão, de forma a não ver qualquer possibilidade de se libertar.

Entretanto, em um golpe de sorte, Mattia recebe uma grande soma, uma fortuna capaz de dispensar-lhe uma existência tranquila, sem excesso de conforto, mas capaz de conservá-lo distante do trabalho e responsabilidades. Para isso, seria necessário abdicar da antiga vida, fugir e esconder-se em outra personalidade. Em nova reviravolta, é dado como morto, facilitando, e acelerando, os planos da nova estratégia: abandonar quem era para tornar-se em quem quisesse. Não é esse o desejo da maioria? Mesmo que apenas em algum momento da vida? Não nos escondemos nas histórias alheias para sonhar um novo roteiro existencial? Não é este o papel dos livros, filmes, novelas? Criar um mundo virtual ao qual nos apegar? E assim arrastar-nos, com algum frescor, no curso própria da vida?

 Na verdade, a fuga de Pascal é interior, muito mais do que qualquer fator exterior possa representar. Ao pensar nos seus problemas como oriundos dos credores, da fortuna dilapidada, do casamento corriqueiro, da esposa controlada pela sogra, ele preservava a si mesmo de qualquer responsabilidade e dever de mudança. Para isso, nada melhor do que deixar “morrer” o velho Pascal, e das suas cinzas nascer o Meis, certo?... Talvez. Por que o novo homem seria mesmo novo? E não incorreria nos velhos erros e vacilos do velho homem? Haveria nele a capacidade de levar até o limite a sua nova figura? E manter intocada a nova reputação? Ou tudo estaria, como antes, sob a ameaça do seu caráter sucumbir à vontade? E desta não ser suficiente para encobrir aquela?

Em uma reviravolta na reviravolta, Meis se vê acuado; e a solução é outra senão ... a morte! Matar o novo homem para que o velho sobreviva, reviva. Porque o novo se mostrou tão ou mais insuficiente e medíocre do que o antigo. E, se no fim das contas, viver a fantasia ou o sonho de uma nova vida se mostrou ineficiente e aflitiva, o retorno à personalidade original, com todos os elementos de uma história real, ainda que inexpressiva, se configurou em única saída. Talvez não seja possível apagar ou destruir aquilo que se é ou se fez; e entre o sonho e a realidade, encarar a segunda seja um passo para o amadurecimento, alívio e antídoto para a mentira.

Pois, nem mesmo a paixão pela sóbria, frágil e doce Adriana foi suficiente para adequá-lo à nova vida, e fazer de Meis um vivo entre tantos mortos. De alguma maneira, o bem que Adriana merecia era-lhe impossível dá-lo, então, por que subsistir a farsa se ele mesmo não se convencia do seu sucesso? Melhor era reviver o morto e torná-lo vivo entre tantos outros, vivos e mortos; e não fugir como um cão do que fora, e ainda era, e de quem não podia se desvencilhar.

O fato é que nem mesmo uma ou outra vida foram capazes de satisfazer e trazer paz ao angustiante e atribulado Mattia, que feito novo, preferiu mesmo as agruras do velho, em meio às estripulias de um sátiro.

Este livro, certamente, aguçou-me a conhecer melhor a obra de Pirandello. E espero, com a graça de Deus, fazê-lo!


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Avaliação: (***)

Título: O Falecido Mattia Pascal

Autor: Luigi Pirandello

No. Páginas: 320

Editora: Abril Cultural

Sinopse: "Maldito seja Copérnico!”. Assim o personagem Mattia Pascal resume e define o sentimento de irremediável solidão do ser humano quando toma consciência de si mesmo e da sua pequenez diante do universo. Obra-prima de humor peculiar, O falecido Mattia Pascal (1904) é o mais célebre romance de Luigi Pirandello (1867-1936), no qual o autor, ao abandonar definitivamente os esquemas narrativos tradicionais, denuncia a miséria das relações humanas e a angústia existencial que acompanha o início do século XX. Mattia Pascal é um homem que, por uma maquinação do acaso, vê a possibilidade de assumir uma nova vida, fugindo de uma existência medíocre e humilhante. Nessa nova vida, ele é outra vez envolvido pelas convenções e regras das quais tentou escapar. No retorno à sua cidade natal, descobre-se enredado em uma situação paradoxal da qual é possível sair somente com a autoexclusão da vida. Autor do igualmente consagrado texto teatral Seis personagens em busca de um autor e Prêmio Nobel de Literatura em 1934, Luigi Pirandello criou uma das obras mais originais do início do século passado, marcada por buscar uma reflexão sobre a fragilidade da condição humana diante da espiral sem saída que é a vida. No momento mais crítico de sua vida – desprezado pela família, acossado por credores, com um trabalho medíocre –, um golpe do acaso muda a vida do jovem Pascal, que ganha uma pequena fortuna num cassino e, ao mesmo tempo, é dado como morto, pois o confundem com um cadáver achado em sua cidade natal. Decide, então, assumir uma nova identidade e parte em viagem pela Europa, de modo aventureiro, envolvendo-se em contínuos contratempos"




21 janeiro 2021

Raymond Chandler: "O Sono Eterno" pode durar uma noite...

 



Jorge F. Isah


Não é o primeiro livro de Chandler que leio, mas “O Sono Eterno” tem todos os elementos que fariam de Raymond Chandler o expoente dos romances policiais “noir” (para quem não sabe, a palavra francesa significa escuro, preto); até mais do que o seu “mestre”,  Dashiell Hammett (“O Falcão Maltês”, entre outros), provavelmente o “pai” do estilo. Ao contrário dos clássicos policiais de Poe, Chesterton, Christie, Conan Doyle, entre outros, Phillip Marlowe e San Spade (o antecessor daquele) diferem-se dos protagonistas tradicionais ao assumirem um estilo menos nobre, culto, intelectual. Parecem tropeçar nas pistas a desvendarem os crimes, ao invés de engendrar, com cuidado meticuloso, os caminhos que os levarão aos criminosos e à solução dos dilemas. Marlowe, assim como Spade, é mulherengo, etilista, circunspecto, rude, sem muitas ambições. A despeito do caráter moral, a impedi-lo de se confundir com os bandidos, suporta uma linha tênue entre o bem e o mal sem ultrapassá-la, ao menos no que concerne mantê-lo no escopo do “herói”, mesmo utilizando-se de métodos pouco ortodoxos e alguns censuráveis. Não é uma mente brilhante como a do Padre Brown ou Poirot, mas, como eles, é obstinado em resolver dilemas criminais e capturar malfeitores. Em suma, a luta entre o bem e o mal está presente, e, podemos dizer, sempre aquele prevalecerá, no final, sobre esse.

O estilo de Chandler é linear sem rupturas na narrativa, idas e voltas, mas com reviravoltas e surpresas no enredo. É uma característica corrente em sua obra, e aqui também se faz presente.  A construção dos personagem não busca o aprofundamento psicológico, muito menos conhecer-lhes o íntimo, suas perplexidades e índole. Em princípio, elas são “peças” em um tabuleiro cujo objetivo é demonstrar que todos estão dispostos, em maior ou menor grau, a cometer pecados. E isso não é uma crítica, mas um acerto de Chandler. Entretanto, não sabemos a motivação ou circunstâncias que levaram os personagens a agir de maneira delituosa. Basta saber o necessário para o desenrolar da trama; tendo-se a certeza de ninguém, nem mesmo o “caçador de culpados”, estar imune aos deslizes e pequenos delitos. Esses são tratados com condescendência, como o “mal menor” e, em alguns casos, justificáveis. Da jovem fisicamente frágil e psicologicamente perturbada até ao velho, inválido e doente terminal, nenhum deles escapa à natureza humana, seja o egoísmo a mover-lhes, seja o exibicionismo, sejam os vícios, a megalomania, a ganância, etc. Todos compartilham da porção de pecado, e ninguém é inocente, mesmo se provando o contrário. Até mesmo a mulher que não tem qualquer impulso desonesto é acusada e condenada, por sua beleza atordoante.

Um ponto que me incomodou bastante durante a leitura, foi o excesso de comparações, metáforas, a cada página, tornando a escrita artificial e forçosamente engraçadinha. Chandler é irônico, e nesses momentos ele conseguia manter o fascínio do texto. Ao contrário, quando o desejo era o de ser “espirituoso”, o efeito fazia-se contrário, causando tédio e desagrado. Particularmente, resultava na ideia de um trecho mal escrito, descuidado, e por demais rijo (no sentido de engessado). P. Ex: “Então o general falou de novo, lentamente, utilizando sua força com extremo cuidado, do mesmo modo que uma atriz desempregada usa seu último par de meias boas.” (grifo meu). O recurso, se não fosse utilizado de forma compulsiva e inapropriada muitas vezes,  alcançaria êxito, mas, ao nos deparar com constantes metáforas, como se fossem jogadas no texto, o intuito torna-se tíbio e, não poucas vezes, ridículo. Utilizá-lo de maneira equilibrada traria ao texto mais polimento.

Chandler influenciou gerações de autores. Um exemplo é Charles Bukowski que, a despeito dele dar mais crédito a Dostoievski, Céline, e, especialmente Fante, inspirou-se naquele quanto à forma rude, seca e objetiva de escrever, sem floreios, elegância e a complexidade de outros autores. Quanto ao humor, ou à maneira de rir de si mesmo e dos outros, Chandler não alcança grande sucesso, ao passo que o “velho safado” tem esse como um dos pontos altos da sua escrita; talvez o melhor em toda a sua linguagem.

Não é um livro para se desprezar; e pode ser lido em um final-de-semana. Tenho por base ler livros menos “complexos” enquanto me debruço sobre outros mais “solenes”; e sempre recorro a Chandler ou Hammett, Ágata Christie, Simenon, para “descansar”. E entre todos eles, Chandler é um dos meus preferidos. Pena não ter escrito muito (se perdeu, quero dizer, perdeu tempo com roteiros de cinema, em Hollywood), mas sempre existe a chance de reler os seus clássicos.

Em suma, “O sono eterno” é um exemplar típico da literatura noir, e um dos seus expoentes. Não é uma obra-prima; mas não é preciso sê-lo para cumprir ao que se propõe: ser literatura de qualidade.

E o é!


____________________________ 

Avaliação: (***)

Título: O Sono Eterno

Autor: Raymond Chandler

Editora: Brasiliense

No. de Páginas: 243

Sinopse: "Philip Marlowe, detetive particular em Los Angeles, é chamado à mansão do velho General Sternwood para investigar um caso de chantagem, aparentemente banal, envolvendo uma de suas filhas. Em pouco tempo, Marlowe percebe que algo se esconde atrás desse pedido, e que as duas filhas do General, Vivian e Carmen Sternwood, podem ser mais perigosas do que aparentam. Em uma cidade chuvosa e enevoada, ele aos poucos se envolve com a pornografia ilegal e a máfia dos jogos. Nesta primeira aventura de Marlowe, publicada originalmente em 1939, Raymond Chandler deu nova vida ao romance policial, mesclando uma trama envolvente a um estilo inigualável - corrosivo, cômico e extremamente original."





09 dezembro 2020

Os Anelos Espírituais do Padre Brown

 




Jorge F. Isah


Este é um livro com algumas histórias do Padre Brown, o alterego de Chesterton, dada a baixa estatura e a rotundidade, transformando-o em uma figura comum e sem atrativos, ou destaque, significando, até mesmo, a falta de personalidade marcante. Contudo, a despeito da sua insignificância física, ele se sobressaí por seu intelecto e a capacidade de desvendar os crimes mais intricados e que, muitas vezes, fez o seu amigo, o detetive Flambeau, alto e de boa aparência, parecer um idiota ou um homem sem qualquer preparo investigativo.

O livro tem as sutilezas estilísticas de Chesterton, uma narrativa bem costurada (necessária em livros do gênero), mas alguns componentes o tornam diferente da maioria dos autores do gênero: Padre Brown não procurava apenas desvendar mais um crime, como um desafio à sua inteligência e argúcia. Não é o simples caso do detetive à caça do bandido. A sua capacidade de ver os detalhes mais desprezíveis e que nenhum outro vislumbrava, ou o raciocínio capaz de ligar fatos aparentemente dissociados que, contudo, faziam parte da "teia" tecida pelo criminoso, pode se parecer com o estilo de outros grandes personagens da literatura policial.

Entretanto, mais do que um desafio mental, uma disputa intelectual e arguta, o calmo e tranquilo religioso buscava a redenção do criminoso (em outras palavras, realizar o seu ministério sacerdotal, sua missão primeira), que poderia alcançá-la a partir da confissão do crime. E isso, se não se desse pelos meios judiciosos, que o levassem à condenação, bastava-lhe, como padre (e como tal ele estava impossibilitado de acusar o réu confesso por direito inalienável de sacerdócio), ouvir a confissão, o arrependimento do criminoso, e ter concluída mais uma etapa da sua missão. Satisfazia-o não apenas vencer o criminoso, em seu próprio campo; antes levá-lo à compunção, a reconhecer-se pecador, um transgressor, e alcançar a liberdade da alma, do espírito, pela graça.

Mais do que a preocupação com as questões policiais (o que não negligenciava), elas o levariam ao encontro da alma necessitada, desesperadamente, de perdão; atormentada pela culpa (ainda que não o soubesse claramente), e mesmo na condição de recluso encontraria finalmente a paz.

Pode parecer incoerência o fato do sacerdote, para quem a defesa da moral é um princípio caro, desprezar a prisão e punição do infrator, em algum aspecto no curso da história. No entanto, transparece nele o desejo de que, após a confissão, o criminoso, em paz consigo e com Deus, se entregue voluntariamente à justiça, provando assim o seu arrependimento sincero e verdadeiro. Ou seja, a redenção somente é possível se houver a voluntariedade do aflito na busca libertação e a definitiva liberdade.

Para alguém pouco versado em teologia talvez esse aspecto passe desapercebido. Entretanto, ele está lá, a apontar para um redentor e salvador, para a graça, única capaz de trazer ao homem caído, em sua condição de humanidade perfeita, a harmonia, a paz definitiva e o fim da inimizade com Deus.

Ler Chesterton é sempre agradável e instigante. Mesmo em histórias aparentemente banais como as policiais.


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Avaliação: (****)

Título: A Inocência do Padre Brown

Autor: G. K. Chesterton

Editora: L&PM

No. Páginas: 256

Sinopse: 

            "Esta obra traz doze histórias. Uma delas, 'A cruz azul', na qual o personagem, Padre Brown, faz sua primeira aparição, o clérigo de Essex precisa lançar mão de métodos excêntricos para impedir o roubo de um valioso artefato religioso."




25 novembro 2020

Promoção Amazon: Prefácio do livro "O Morto Inacabado".

 



        Em mais uma promoção conjunta com a Amazon, a Kálamos Editora disponibiliza o livro "O Morto Inacabado", para download gratuito, em promoção até o dia 27 próximo. 

        Para baixar, basta ter uma conta "Amazon", preencher o nome do livro na caixa de pesquisas, fazer o download, e pronto! Agora resta apenas lê-lo. 

        Por isso, disponibilizo o prefácio do livro, escrito por Michel Salomão, como instigador, uma inspiração, para adquirir a obra. Espero, realmente, que se sinta motivado a fazê-lo, bem como à sua leitura. 

        Abraço.

    Jorge F. Isah

        

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PREFÁCIO AO LIVRO "O MORTO INACABADO", 
POR MICHEL SALOMÃO



     A desolação e a dúvida da morte permeiam essa obra de Jorge F. Isah, que traz um personagem cheio de angústias, as mesmas que todos nós possuímos e procuramos ignorar, as incertezas da existência, as impressões acerca do pai agonizante, da mãe sofredora, de parentes e amigos que passam e deixaram suas marcas, os remorsos, os medos, o abandono, um futuro que não se concretizou, um amor rompido premeditadamente, filhos que não nasceram, entre outros sofrimentos que fazem de nós, humanos, tão parecidos. 

    Não, o livro não fala de zumbis, mas é quase isso: fala sobre o vivo quase morto, ou sobre o morto ainda vivo, condição que muitos de nós passamos a assumir por inconsciente negligência. Fala sobre as impressões de uma vida quase sempre entediante, bem diferente do que acontece na maioria dos filmes e livros. 

    Amigos há três décadas, aconteceu de conhecer o Jorge em uma sala de aula do curso de Direito, na Universidade Federal de Minas Gerais, quando vi aquele rapaz entediado, sentado no fundo da sala, olhando para o vazio através da janela. Eu tinha 17 anos à época, era um rebelde tímido, me aproximei e logo começamos a disparar sobre literatura. Daí começou a nossa amizade, que teve longos intervalos, pois cada um foi cuidar de sua vida, de sua família, da profissão, mas o laço permaneceu, mesmo que por longos telefonemas ou por intermináveis textos trocados pelas redes sociais, além de encontros esporádicos que quase sempre davam continuidade ao assunto interrompido no anterior; e não foi com surpresa que recebi este convite para fazer o prefácio de seu novo livro, “O Morto Inacabado”, quando alertei para o fato de que talvez não tivesse capacidade para tal, pois, sem falsa modéstia, considero-me um escritor “descompromissado”. Bem diferente do Jorge, que é muito técnico e dedicado. 

   Eu o aconselhei a dar títulos aos capítulos, para facilitar o entendimento dos leitores (entendo o porquê dele não ter aplicado a sugestão, mas não vem ao caso expô-la), pois não é uma leitura fácil, a não ser que você esteja acostumado a ler Dostoievski, na minha opinião, sua mais forte influência, pois ele entra com facilidade daqueles questionamentos existenciais entrecortados com pequenos diálogos triviais, possivelmente, apenas para comprovar que seus personagens estão mesmo vivos. 

  Também conheço seu incansável trabalho religioso, na tentativa de salvar as pessoas dessa “morte em vida”, e aprecio sua determinação, apesar de, nesse trabalho, não entrar tão profundamente nessas questões como em seus outros livros, talvez para despertar determinados questionamentos nas pessoas que passam por idêntica situação de seu personagem central, que vive essa aparente morte. 

   Uma aventura instigante e investigativa da alma de todos nós. 


   Michel Salomão


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18 novembro 2020

"Arpeggios Insulares" grátis na Amazon: Leia o Prólogo!

 






Jorge F. Isah



Nesta semana, de 16 a 20 de Novembro, a Amazon disponibilizou o meu segundo livro de poesias, "Arpeggios Insulares", aos interessados em baixá-lo no formato ebook/kindle. 

        Publicado em 2018, reúne quarenta e seis poesias escritas entre meados de 2017 e o primeiro semestre de 2018, que tratam de temas variados, extraídos do mais profundo da alma, com tudo de bom e ruim derivado da natureza humana. 

        Entretanto, talvez o sentimento mais presente em toda a obra seja o de gratidão a Cristo, pelo seu eterno e infinito amor, capaz de tornar as trevas interiores em um dia intensamente ensolarado, e da mesma penumbra tocar os mais doces e consoladores acordes; um bálsamo a aliviar e curar qualquer espécie de dor, angústia e sofrimento. 

       Deixo o "prólogo" do livro, abaixo, para a sua apreciação; e caso se sinta instigado, vá até a amazon.com.br, digite na barra de pesquisas o título "Arpeggios Insulares" e baixe a sua cópia. E, talvez, entenda o que não fui capaz de descrever por aqui. 

       Um fraterno abraço!

          Jorge F. Isah


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"PRÓLOGO DE ARPEGGIOS INSULARES"


        O tempo passa...

Iniciei a escrita deste livro logo após a publicação do meu primeiro, “A palavra não escrita”, em formato ebook. Transcorridos pouco mais de um ano e meio, apresento ao leitor o trabalho demorado em dias, e exíguo em linhas. São quarenta e seis poemas que tratam de vários temas, mas que têm a mesma visão central: a fé cristã como cosmovisão, essência e fundamento da minha vida, ao menos nos últimos quatorze anos.

Por isso, em quase tudo, não é difícil perceber a orientação dos versos e a sujeição deles à pessoa de Cristo. Ainda que não seja citado diretamente, a inferência ao seu governo é recorrente e está nas entrelinhas e subliminarmente. Não podia ser de outra maneira, visto a excelência da sua Pessoa e a minha completa dependência dEle.

Alguém pode dizer que a minha impressão, estilo e imaginação, é excessivamente pessimista em relação à vida, às pessoas e o futuro. Realmente, não posso ser considerado um otimista quanto a este mundo. Não nutro qualquer esperança no homem, nas ideologias, nos sistemas, no intelectualismo, ou nas ciências; de alguma forma, muito menos nas religiões. Entretanto, não sou um pessimista completo e incorrigível, pois nutro a esperança viva de que, naquele glorioso dia, o dia do Senhor, o verei face a face, e nenhuma tristeza, angústia, dor, e dúvidas se farão presentes na vida.

O cristianismo somente vive na pessoa de Jesus e sua Igreja (a verdadeira, aquela resgatada pelo seu sangue), e ainda que possa ser interpretado por várias correntes, a verdade existe e subsiste nele e por ele. Então, se o pessimismo exagerado quanto ao mundo em si se sobressai no meu pensamento, em contrapartida existe uma esperança viva, otimista, exultante, em relação ao Porvir, naquele que é o Senhor do tempo, do passado, presente e futuro, mas também da eternidade.

Com isso, alguns podem sugerir que haja uma visão dicotômica da vida e que eu seja incoerente. A verdade, contudo, é que o homem sem Deus não me inspira qualquer confiança (ainda que eu tenha compaixão, assim como também necessitei de piedade), e mesmo a bondade possível nele, somente se realiza por meio dAquele que é, em si mesmo, o Bem por atributo; a natureza que o torna quem é, e da qual não pode prescindir, nem ser anulada.

E é nesse Bem que deposito a esperança, a expectação de uma existência em que, mais do que eu mesmo, serei mais dele, ao ponto em que nele serei encontrado. Como o apóstolo Paulo escreveu aos Gálatas, este é o meu mais puro e ansiado desejo, o de proferir sinceramente: “Já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim!”[1].

Essa é a glória a se buscar, a “cobiça” maior à qual o homem deveria se entregar, perseguindo-a como o bem mais precioso e enlevado, e na qual, desde algum tempo, tem sido o anelo da minha vontade. E que ela, como todo o meu ser, esteja cativa e submetida à perfeição, santidade e graça do Filho.

Se eu conseguir, de alguma maneira, que você leitor veja-o assim como o vejo, já me darei por satisfeito, e em plena alegria. Porque a vida, sem dar a glória e o louvor devidos a Cristo, é como uma sinfonia tocada à perfeição para uma plateia de surdos.



[1] Gálatas 2:20

09 novembro 2020

A Jornada no Império - A vida do Dr. Robert Kalley, ou a mordaça secular que não silencia.

 




Por Jorge F Isah


    Biografia do Dr. Robert Reid Kalley, médico escocês, que possuía um forte chamado missionário; e, desejando ir à China, acabou na Ilha da Madeira (colônia portuguesa), em virtude dos cuidados que a sua esposa necessitava, acometida de tuberculose, e do clima ameno da ilha, favorável ao seu tratamento. Ali o Dr. Kalley realizou um trabalho filantrópico de atendimento aos necessitados, doação de medicamentos e internação em sua clínica particular, enquanto se dedicava à proclamar o Evangelho de Cristo aos moradores daquela colônia. 

    Como a evangelização suscitou a rebelião de forças religiosas antagônicas, o sucesso do trabalho missionário, com a crescente conversão de almas, provocou a perseguição ao Dr. Kalley e à Igreja estabelecida em Madeira. Muitos foram presos, deportados para colônias na África, e alguns condenados à morte por heresia e blasfêmia. O próprio Kalley permaneceu preso por seis meses; sem que, contudo, os crentes negassem Cristo e abandonassem a fé uma vez dada aos santos, mesmo sobre forte opressão e oposição das autoridades eclesiásticas e governamentais da ilha. 

   Kalley tinha um espírito independente, provocando-lhe vários dissabores (muitos decorrente do seu desejo em manter-se livre até mesmo da vinculação a uma denominação específica). 

     Por ser herdeiro de um rico comerciante, ele patrocinou a quase totalidade das despesas oriundas do seu trabalho missionário e filantrópico, consumindo não somente a integralidade do seu tempo e dons, mas a totalidade dos seus recursos, renunciando a qualquer conforto e primazia sobre o seu patrimônio. 

    A grande comissão era, e sempre foi, o seu grande desejo de realização, servindo ao nosso bom Deus, proclamando o Evangelho de vida e salvação de nosso Senhor Jesus Cristo. 

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     A perseguição sofrida pela Igreja foi amostra cabal do quanto o homem está em rebeldia contra Deus, e de como a Verdade é combatida por aqueles que amam a mentira e o engano. Desde a época dos apóstolos, crentes em nosso Senhor são perseguidos mundo afora, muitos pagando com seus bens, família, liberdade e a própria vida (Mc 8.34). Mas a Igreja do Senhor jamais será destruída (Mt 16.18), porque ele é quem a conserva, preserva, e separou-a exclusivamente para si, como parte do seu corpo, noiva e amada. 

    Fica o exemplo de vida cristã desses irmãos que perderam tudo por amor a quem os amou primeiro; especialmente nos tempos atuais onde a gratidão, o servir a Deus e ao próximo, a fé e o rigor dos princípios bíblicos, deram lugar à covardia, à omissão, à indiferença, ao egoísmo, à descrença, tornando muitos em “igreja morna”, a qual certamente será vomitada pelo Senhor (Ap 3.16), e dele ouvirá naquele dia: “Nunca vos conheci; apartai-vos de mim, vos que praticais a iniquidade”(Mt 7.23). 

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     William Forsyth escreveu um livro dinâmico, agradável e fácil de se ler (ainda que aponte o constante sofrimento e aflição dos servos dedicados ao ministério evangelístico, mas também a glória de sê-los guiados por Deus à realização de obra tão sublime e santa), recheado de fatos, incidentes e testemunhos, muitos deles relegados ao completo esquecimento, como se o exemplo do passado merecesse o ostracismo, a obscuridade, não havendo qualquer valor; obliterando os feitos dos verdadeiros heróis para, em seu lugar, erguer ídolos de papel, homens que jamais seriam dignos de sequer lustrar-lhes os calçados. Talvez, pela própria ineficiência, descaso e falta de compromisso de muitos dos crentes das últimas gerações, a lembrança deve ser apagada a fim de não revelar o verdadeiro desastre e fracasso em que estamos naufragando. Infelizmente, vivemos tempos em que a memória, para o bem e para o mal, tem de se refugiar na inutilidade dos desejos “modernos” contemporizados. 

    Dr. Kalley foi um missionário perseguido por onde passou. O seu trabalho resultou em frutos para o Reino em todas as classes sociais. Ao contrário do movimento social nas igrejas atuais, originado na elite intelectual (seria antes o remorso ou uma nova forma de demonstrar superioridade sobre os mais fracos?), Kalley pouco importava-se com a condição e reputação dos seus ouvintes; pregava tanto a brancos como negros, a ricos e marginalizados, homens e mulheres, nativos ou estrangeiros, crianças e velhos, como todo cristão faria ou deveria fazer. Não foi preciso ninguém alertá-lo quanto a “isonomia” na pregação do evangelho, ou seja, do chamado geral de todas as pessoas a Cristo (falo do chamado geral, não do chamado particular; já que esse somente é feito pelo Espírito de Deus), em tempos que, como os atuais, existiam preconceitos e impeditivos a tentar frear a propagação das “Boas Novas”. E esse é o cumprir verdadeiro da Grande Comissão (a qual devemos fazer por amor a Cristo e ao próximo. Qualquer outro motivo não passará de pecado, dissimulado ou factual); que vai muito além do simples discurso, da retórica, da “teoria” se sobrepor à prática: de que somos, como igreja, chamados a evangelizar, mas também viver o evangelho, mesmo à força de perdas, infortúnios, abusos e intolerância. 

    O "Lobo da Escócia", como foi alcunhado, estabeleceu a igreja evangélica no Brasil, atingindo o objetivo pelo qual muitos antes dele tentaram e pagaram com as próprias vidas, sem sucesso, como os franceses, holandeses e ingleses (Forsyth dá um apanhado geral da tentativa de cristãos europeus em fundar "colônias" protestantes no Novo Mundo, o que não ocorreu a seu tempo, rechaçados e dizimados por clérigos e governantes hostis). 

    Muito do que os protestantes conseguiram na liberdade de culto no país, ao desagrado da Igreja Católica (o que não impediu que fomentassem e insuflassem ataques populares ao patrimônio e à vida dos "hereges" calvinistas) se deveu a intervenção direta do Imperador D. Pedro II, que tornou-se amigo pessoal do Dr. Kalley. É claro que, tanto Kalley como o Imperador, foram alvos da soberana vontade de Deus, sem a qual nada do que foi feito seria feito, nem as sementes lançadas no passado germinassem em solo Tupiniquim, dando frutos para a glória do nosso Senhor. 

     Este livro é um alerta para toda a Igreja, de que não vale a pena se sentar nos louros do passado e acreditar que as perseguições, abusos e coerções cessaram, pois em um mundo que odeia Cristo, e afasta-se cada vez mais do seu Evangelho, o povo de Deus sempre será alvo das forças malignas e destrutivas, contudo, jamais vencedoras; daqueles que não desistem do anseio de remover à força a verdade, de apagar a vida, e em dispor ciladas e armadilhas a fim de disseminar a traição e mentira e morte. 

     E muitos, dentre nós, serão instrumentos para que a injustiça, o sofrimento e a tirania alcance o povo de Deus. Mas, ao contrário deles, devemos seguir os exemplos do Dr. Kalley e outros tantos servos fiéis, e nos negar a viver a pior entre todas as hipocrisias: o silêncio autoimposto, ou medroso, da mordaça secular. 

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    PS: Parece que até mesmo a Editora Fiel se sentiu "amordaçada" secularmente, ao esgotar a primeira edição e não republicar o livro, que se encontra fora de catálogo. 


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Avaliação: (***)

Título: A Jornada no Império - Vida e Obra do Dr. Kalley no Brasil

Editora: Fiel

Páginas: 256

Sinopse: 

"Jornada no Império retrata a vida de um médico que ousou desafiar os poderosos de uma época, colocando em risco a sua própria vida, por amor ao Senhor Jesus e às almas perdidas. 
Uma das mais desafiadoras e emocionantes biografias missionárias, que narra os esforços do escocês Dr. Robert Kalley, que, em meio a perseguições e dificuldades aparentemente intransponíveis, pregava ousadamente a palavra de Deus nas ruas ensolaradas da Ilha da Madeira e depois, no Rio de Janeiro.
Volte ao tempo do Brasil império e acompanhe a jornada do Dr. Robert Kalley. Veja um pouco do quadro da perseguição ao avanço no Evangelho na época do império português e o nascimento da igreja evangélica brasileira em meio às provações e sofrimentos do evangelismo em países tomados pela idolatria."





26 outubro 2020

Conta-Gotas: 3 - Cristo fez!

 


Jorge F. Isah


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        Como Igreja, cada um de nós é visto pelo Pai como que por um filtro, no qual nossos pecados e inimizade são apagados, atravessados pela luz, pulverizados pelo poder gracioso de Cristo, o qual nos substituiu, tomando o nosso lugar, pagando o que era para nós impossível pagar; fazendo o que estava irremediavelmente inalcançável diante de nós. 
        Em suma: tudo o que precisávamos e não podíamos fazer, Cristo fez!
        Honra e glória e louvor somente a ele!


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16 outubro 2020

O amanhã póstumo em "Ópera dos Mortos", de Autran Dourado

 




Jorge F. Isah


Nos últimos meses, me aventurei pela leitura da ficção mineira, algo negligenciado há muito; e me fazia sentir um senso de injustiça quanto à minha própria terra. Por isso, comecei com Fernando Sabino e o seu “Encontro Marcado” (concluído, e cuja resenha pode ser lida aqui mesmo), ando às voltas com “Crônica da Casa Assassinada”, de Lúcio Cardoso (a conclusão desse demandará ainda um bom tempo) , “Obra Completa”, de Murilo Rubião (em fase de leitura), e “Ópera dos Mortos”. Ah, não posso me esquecer de Luiz Ruffato e o seu “Flores Artificiais” (resenha por aqui, também), e a próxima leitura, já adquirida, de “Verão Tardio”, do mesmo autor.

“Opera dos Mortos” é considerado o maior romance de Autran Dourado, que é comparado a Guimarães Rosa, de quem ainda não consegui concluir nenhuma leitura, e me é, em algum aspecto, um escritor intragável. Espero mudar de ideia, pois pretendo novas tentativas de leitura dos seus principais livros, e talvez ele se torne digerível. Mas entendo a comparação, já que Rosa é considerado o maior prosista mineiro e, ao lado de Machado de Assis, do Brasil. Mostra a envergadura de Autran Dourado, e um pouco de quem estamos a falar. Escrito em 1967, o livro é o primeiro volume da trilogia cuja sequência se dá com “Lucas Procópio” e “Um Cavalheiro de Antigamente”.

A história se passa no interior mineiro, e tem como principal personagem um “Casarão”, isso mesmo, onde se desenrolam os conflitos, intrigas e a solidão dos demais personagens. Esses são como vultos, fantasmas, a assombrarem com seus desvios e pecados as paredes, tetos e pisos da construção, numa sequência interminável de feridas expostas e das quais é impossível se esquecer; sem alívio, uma dor interminável. O ressentimento, o orgulho, a amargura áspera, permeia a vida dos ocupantes e o restante da cidade, em um sentimento de culpa sem qualquer perdão. Tudo porque, no passado, a cidade traiu a confiança e boa-fé do patriarca da família Honório Cota, pai de Rosalina, moça que conserva a tradição familiar de isolar-se em casa e evitar, a todo custo, o contato com os demais habitantes da cidade. Do avô, Lucas Procópio, odioso em seu comportamento desumano, frio e egoísta, Rosalina parece herdar a loucura, uma loucura melancólica, trágica, quase inofensiva (a não ser a si mesma), enquanto o ancestral impregnou-se de uma demência maligna, perversa.

Moram no casarão a empregada Quiquina, uma descendente de escravos e que criou Rosalina, tendo-a por filha, após a morte da patroa. E a chegada do maledicente e preguiçoso e errante Juca Passarinho, exímio caçador, a despeito de ter apenas um olho bom; o outro, era uma névoa branca. Ele se apaixona pela figura nobre, circunspecta e altiva de Rosalina. Com o tempo, angaria alguma simpatia dela e a aversão de Quiquina. Com o tempo também, as coisas mudam; se de dia o aspecto geral da casa e suas relações é austera, formal e corriqueira, a solidão de Rosalina, que não tem com quem conversar, já que Quiquinha é muda, acaba por “ceder” à bisbilhotice atrevida de Juca; e este passava as tardes ouvindo as resenhas da patroa, atropelando-a vez ou outra com os seus palpites despropositados e perguntas indelicadas. À noite, o convívio tomava ares completamente distinto, fazendo lembrar ao narrador (indistinguível) as diatribes do velho Procópio.

O Casarão contém, em seu espaço, duas realidades diferentes, em que as vidas se encontram no limiar de uma tragédia grega. E acaba por consumar-se.

É impossível não relacionar o título da obra com o enredo, no qual se vislumbra a realidade em que os mortos de verdade estão vivos, e tão vivos que impregnam os habitantes da casa com a própria morte; como se a resistência estivesse no estigma de leva-los, os ainda vivos, à morte, de forma a unirem-se a eles. E se os ainda vivos agem como mortos, e os mortos como vivos, nas lembranças, objetos, e condução da vida na velha mansão, ali se enterram, e são enterradas, as esperanças, os desejos, as almas dos moradores. Nem mesmo quando a casa é aberta e os habitantes da cidade têm a oportunidade de invadirem os seus cômodos, a tortura, o martírio permanecem como presenças graves em cada parte, cada detalhe, cada som, sem que ninguém se sinta ou esteja livre da mancha a gravar o vestígio da condenação e a clausura de todo o povo, dentro ou fora do Casarão. Ele é o centro da sociedade, da atividade, da vida pregressa e futura da cidadezinha.

Ópera dos Mortos é uma grata surpresa. Um livro em que Autran Dourado traça a ponte entre o passado e o presente, e um futuro tão embebido neles que se transforma em “amanhã póstumo”, onde a morte traz da vida outros defuntos.


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Avaliação: (****)

Título: Ópera dos Mortos

Autor: Autran Dourado

No. Páginas: 212

Editora: Civilização Brasileira

Sinopse: 
           "O senhor atente depois para o velho sobrado com a memória, com o coração", adverte o narrador, que aos poucos se confunde com a própria cidade onde mandava o coronel Lucas Procópio Honório Cota. Tratava-se de um homem valente, que impunha respeito pela força e truculência, traços que passavam distante da personalidade de seu filho e herdeiro, João Capistrano. Melancólico, em luta permanente para se livrar do fantasma do pai, João fracassa na política ― sua única chance de se impor na cidade ― e passa o resto de seus dias trancado no sobrado que ergueu como uma espécie de monumento à família. Com o correr dos anos, o casarão vai se impregnando cada vez mais dos fantasmas dos antepassados, que transformam tudo, de objetos a ambientes, em signos da morte. É neste ambiente opressivo e desolado que Rosalina, filha única de Capistrano, vai viver depois da morte dos pais. Solteira, isolada do mundo e tendo como única companhia a empregada Quiquina, que é muda, ela passa seus dias fazendo flores de pano e vagando entre paredes carcomidas e relógios parados. Mas a rotina do sobrado será alterada com a chegada de José Feliciano – ou Juca Passarinho, como é conhecido. O biscateiro vai à cidade em busca de trabalho e acaba entrando aos poucos no universo enigmático da casa e, principalmente, na vida da austera Rosalina. Lançado pelo célebre romancista mineiro em 1967, Ópera dos Mortos foi incluído pela Unesco numa coleção das obras mais representativas da literatura mundial. Autor vencedor do Prêmio Camões (2000) e do Prêmio Machado de Assis (2008)."




29 setembro 2020

Conta-Gotas: 2 - Teologia

 



Jorge F. Isah

      

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        A luta contra a Teologia é uma luta contra a Escritura também, que é o foco da Teologia. Há bons e maus teólogos, boas e más doutrinas, boas e más aplicações e práticas, mas isso não depõe contra a Teologia em geral. 

        Se alguém faz mau uso dela, a culpa não lhe pode ser imputada. Que se ataquem os maus teólogos, as más doutrinas, as igrejas e pessoas que as defendem. Mas, para isso, o sentimento, ou sensações, ou achismo e senso comum, será de pouca ou nenhuma utilidade.

                                                           ➺➺➺➺➺




31 julho 2020

Luz em Agosto: O mundo idiossincrático de Faulkner






Jorge F. Isah


Gastei um bom tempo lendo este livro. Para ser mais exato, quase um ano. E não foi uma leitura fácil. Em muitos momentos me vi refletindo em algo do texto, sem poder continuar. Um certo “peso” me fazia parar e buscar uma literatura mais digerível, menos estafante. Com isso não estou dizendo que não gostei de “Luz em Agosto”, pelo contrário, já estou engatilhando o próximo livro do autor.

Como Thomas Mann, Faulkner não é para leitores apressados, ao menos, é o que penso. Em um mundo onde a literatura se tornou refém das imagens, como subproduto criado para a TV ou Cinema, é possível afirmar que a maioria das pessoas não se interessará pelo livro. Alguns o considerarão difícil. Outros indesejado. Para muitos outros, ignorado. É o preço a se pagar por gerações e gerações de pessoas cada vez mais apequenadas em seu mundo tubular, de lcd ou led. Mesmo os e-readers pertencendo ao “mundo” dos LEDs, a grande massa ignora-os por completo.

 Faulkner tece a sua linguagem de forma minuciosamente orquestrada, onde cada palavra parece desempenhar uma função além do próprio significado. Ela transcende a si mesma, revelando um mundo muito mais vasto do que o sentido que se atribui. Como se fosse um tubo de imagem (os mais velhos saberão do que estou falando) a emitir uma explosão de ondas capazes de formar uma paisagem nem sempre nítida, nem sempre identificável, mas sempre abrangente. Ainda que os indivíduos tenham nome, endereço e cpf, qualquer um de nós pode se identificar ou identificar algum conhecido entre as figuras criadas pelo autor.  

Os personagens desfilam sua ordinariedade (no sentido trivial, comum), mas por meio de uma narrativa sofisticada e, por vezes, hermética. Penso que nenhum escritor deseja ser impenetrável ou complexo, mas são características que permeiam grandes nomes da literatura (James Joyce me parece o expoente entre todos). Eles gostam de “brincar” com o leitor, em um jogo de charadas intricadas, ou não tão reveladoras, deixando a cargo da imaginação e da intuição o complementar a informação. Há quem goste. Há quem desgoste. Há quem não se importe. O certo é que, uma mesma história pode ser contada de maneiras diferentes. Algumas afloram asco, outras indiferença, ainda outras encanto. Faulkner está no terceiro e último grupo, bastando a atenção necessária, e a paciência ainda mais primordial para degustá-la calma e parcimoniosamente.

O livro conta a história de Christmas (e não é por aqui que cessam as referências cristãs), um homem branco que se considerava negro. Desde a mais tenra idade, viveu o dilema de carregar um sangue que não refletia a cor da sua pele. Na verdade, na casa dos 30 anos, não se identificava com qualquer dos aspectos da sua origem. Apenas se sentia abandonado, jogado à própria sorte. Não se sentia branco, apesar de parecer; e atormentava-se com a negritude, a qual assumiu e alardeou aos quatro ventos, mas que o consumia. Na parte sul da América, onde a escravidão havia sido abolida, mas a segregação estava a pleno vapor, ser negro não era o melhor dos mundos. E Christmas parecia se autoflagelar, ou não ser capaz de escapar do estigma que supunha distingui-lo. Era uma espécie de autoexpiação, de purgar a si mesmo pelo que não tinha, enquanto abandonava o que lhe restava.

Antes, e a narrativa principia daí, temos uma jovem grávida, Lena, prestes a conceber, que atravessa metade do país em busca do pai do seu filho, o qual prometera se casar, mas fugiu, deixando pistas ambíguas do seu paradeiro. Ela viaja solitária, contando com a ajuda de estranhos para alimentar-se e cruzar os territórios à caça do aspirante a marido.

Talvez a figura mais marcante e atormentada seja a do pastor Hightower, homem confuso quanto a sua fé, o relacionamento com Deus, e as lembranças de sua esposa nada sincera. Ele faz várias reflexões, sem contudo chegar a alguma conclusão. Passa boa parte do tempo se torturando com as lembranças e o próprio rumo que a sua vida tomou, quando não está a desgraçar os outros. Não somente através dele, e pelo viés de outros personagens, Faulkner utiliza-se das descrições de lugares, situações e ações para “filosofar”, e trazer um certo aspecto racional, ou intelectual, à profusão de sentimentos. Enigmas que precisam ser desvendados, na busca da verdade, mas que são abandonados pelos dilemas cotidianos. Apenas como aperitivo, transcreverei dois trechos em que Hightower pondera:


“‘Mas no céu e na terra há outras coisas além da verdade’, pensa... ‘Muitas outras coisas’, refletindo em que a inteligência foi, segundo parece, dada ao homem para, nos momentos de crise, ele poder proporcionar a si mesmo formas e sons com que defender-se da verdade” (Pg. 390). 

“‘Talvez tivessem razão em introduzir o amor nos livros’, pensava Hightower. ‘Talvez ele não pudesse viver em nenhuma outra parte’” (Pg. 392)

Não falarei mais sobre a obra em si, dado o meu desprazer em escrever resumos e estragar a curiosidade e o divertimento do futuro leitor.

“Luz em Agosto” não pretende iluminar a vida dos personagens, como se viesse reabilitá-los. Não existe a pretensão de tirá-los da escuridão, na qual todos parecem estar imersos, de uma forma ou de outra. Apenas reconhece-os como são, com todos os seus pecados, dúvidas e as complexidades da natureza humana, permeadas por um mundo tão humano e, por isso, idiossincrático em suas relações. Não há heróis. Há, sim, indiferença, ódio, conflitos, mas também bondade ingênua, como a de Burch. Se existe desapego de um lado, há obstinação do outro. E nem mesmo o desapego sobrevive ao crivo do apego, teimoso.

Este é um livro altamente recomendado para não preguiçosos, e que buscam uma leitura “quase idílica”.



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Avaliação: (****)

Livro: Luz em Agosto

Autor: William Faulkner

No. Páginas: 448

Editora: Cosac & Naify

Edição: 3a, 2015


Sinopse: "Este livro de William Faulkner em nova tradução é um romance de arquitetura complexa. A ruptura com a linearidade desconcerta o leitor. O tempo é estilhaçado e é pela valorização dos estilhaços que Faulkner multiplica os pontos de vista, iluminando figuras sublimes e grotescas. Da atmosfera de violência e horror do Mississippi surgem personagens profundamente humanas. Mas a história não termina aí. Toda a maestria da construção de "Luz Em Agosto" se confirma no último capítulo, numa reviravolta narrativa que o consagrou definitivamente. O leitor, guiado pelo autor, encerra o livro em estado de assombro. Viveu intensamente o horror, tomou contato com os recônditos da alma. Percebeu o passado como um inimigo que não dá trégua. Será assombrado por imagens poderosas. Um livro que não tem fim."