Gastei um bom
tempo lendo este livro. Para ser mais exato, quase um ano. E não foi uma
leitura fácil. Em muitos momentos me vi refletindo em algo do texto, sem poder
continuar. Um certo “peso” me fazia parar e buscar uma literatura mais
digerível, menos estafante. Com isso não estou dizendo que não gostei de “Luz
em Agosto”, pelo contrário, já estou engatilhando o próximo livro do autor.
Como Thomas
Mann, Faulkner não é para leitores apressados, ao menos, é o que penso. Em um
mundo onde a literatura se tornou refém das imagens, como subproduto criado
para a TV ou Cinema, é possível afirmar que a maioria das pessoas não se
interessará pelo livro. Alguns o considerarão difícil. Outros indesejado. Para
muitos outros, ignorado. É o preço a se pagar por gerações e gerações de
pessoas cada vez mais apequenadas em seu mundo tubular, de lcd ou led. Mesmo os
e-readers pertencendo ao “mundo” dos LEDs, a grande massa ignora-os por
completo.
Faulkner tece a sua linguagem de forma
minuciosamente orquestrada, onde cada palavra parece desempenhar uma função
além do próprio significado. Ela transcende a si mesma, revelando um mundo
muito mais vasto do que o sentido que se atribui. Como se fosse um tubo de
imagem (os mais velhos saberão do que estou falando) a emitir uma explosão de ondas
capazes de formar uma paisagem nem sempre nítida, nem sempre identificável, mas
sempre abrangente. Ainda que os indivíduos tenham nome, endereço e cpf,
qualquer um de nós pode se identificar ou identificar algum conhecido entre as
figuras criadas pelo autor.
Os personagens
desfilam sua ordinariedade (no sentido trivial, comum), mas por meio de uma
narrativa sofisticada e, por vezes, hermética. Penso que nenhum escritor deseja
ser impenetrável ou complexo, mas são características que permeiam grandes
nomes da literatura (James Joyce me parece o expoente entre todos). Eles gostam
de “brincar” com o leitor, em um jogo de charadas intricadas, ou não tão
reveladoras, deixando a cargo da imaginação e da intuição o complementar a
informação. Há quem goste. Há quem desgoste. Há quem não se importe. O certo é
que, uma mesma história pode ser contada de maneiras diferentes. Algumas
afloram asco, outras indiferença, ainda outras encanto. Faulkner está no
terceiro e último grupo, bastando a atenção necessária, e a paciência ainda
mais primordial para degustá-la calma e parcimoniosamente.
O livro conta
a história de Christmas (e não é por aqui que cessam as referências cristãs),
um homem branco que se considerava negro. Desde a mais tenra idade, viveu o dilema
de carregar um sangue que não refletia a cor da sua pele. Na verdade, na casa
dos 30 anos, não se identificava com qualquer dos aspectos da sua origem. Apenas
se sentia abandonado, jogado à própria sorte. Não se sentia branco, apesar de
parecer; e atormentava-se com a negritude, a qual assumiu e alardeou aos quatro
ventos, mas que o consumia. Na parte sul da América, onde a escravidão havia
sido abolida, mas a segregação estava a pleno vapor, ser negro não era o melhor
dos mundos. E Christmas parecia se autoflagelar, ou não ser capaz de escapar do
estigma que supunha distingui-lo. Era uma espécie de autoexpiação, de purgar a
si mesmo pelo que não tinha, enquanto abandonava o que lhe restava.
Antes, e a
narrativa principia daí, temos uma jovem grávida, Lena, prestes a conceber, que
atravessa metade do país em busca do pai do seu filho, o qual prometera se
casar, mas fugiu, deixando pistas ambíguas do seu paradeiro. Ela viaja
solitária, contando com a ajuda de estranhos para alimentar-se e cruzar os
territórios à caça do aspirante a marido.
Talvez a
figura mais marcante e atormentada seja a do pastor Hightower, homem confuso
quanto a sua fé, o relacionamento com Deus, e as lembranças de sua esposa nada
sincera. Ele faz várias reflexões, sem contudo chegar a alguma conclusão. Passa
boa parte do tempo se torturando com as lembranças e o próprio rumo que a sua
vida tomou, quando não está a desgraçar os outros. Não somente através dele, e
pelo viés de outros personagens, Faulkner utiliza-se das descrições de lugares,
situações e ações para “filosofar”, e trazer um certo aspecto racional, ou
intelectual, à profusão de sentimentos. Enigmas que precisam ser desvendados,
na busca da verdade, mas que são abandonados pelos dilemas cotidianos. Apenas
como aperitivo, transcreverei dois trechos em que Hightower pondera:
Não falarei
mais sobre a obra em si, dado o meu desprazer em escrever resumos e estragar a
curiosidade e o divertimento do futuro leitor.
“Luz em
Agosto” não pretende iluminar a vida dos personagens, como se viesse
reabilitá-los. Não existe a pretensão de tirá-los da escuridão, na qual todos
parecem estar imersos, de uma forma ou de outra. Apenas reconhece-os como são,
com todos os seus pecados, dúvidas e as complexidades da natureza humana,
permeadas por um mundo tão humano e, por isso, idiossincrático em suas
relações. Não há heróis. Há, sim, indiferença, ódio, conflitos, mas também
bondade ingênua, como a de Burch. Se existe desapego de um lado, há obstinação
do outro. E nem mesmo o desapego sobrevive ao crivo do apego, teimoso.
Este é um
livro altamente recomendado para não preguiçosos, e que buscam uma leitura
“quase idílica”.
Sinopse: "Este livro de William Faulkner em nova tradução é um romance de arquitetura complexa. A ruptura com a linearidade desconcerta o leitor. O tempo é estilhaçado e é pela valorização dos estilhaços que Faulkner multiplica os pontos de vista, iluminando figuras sublimes e grotescas. Da atmosfera de violência e horror do Mississippi surgem personagens profundamente humanas. Mas a história não termina aí. Toda a maestria da construção de "Luz Em Agosto" se confirma no último capítulo, numa reviravolta narrativa que o consagrou definitivamente. O leitor, guiado pelo autor, encerra o livro em estado de assombro. Viveu intensamente o horror, tomou contato com os recônditos da alma. Percebeu o passado como um inimigo que não dá trégua. Será assombrado por imagens poderosas. Um livro que não tem fim."
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