Jorge F. Isah
Nos últimos
meses, me aventurei pela leitura da ficção mineira, algo negligenciado há
muito; e me fazia sentir um senso de injustiça quanto à minha própria terra.
Por isso, comecei com Fernando Sabino e o seu “Encontro Marcado” (concluído, e
cuja resenha pode ser lida aqui mesmo), ando às voltas com “Crônica da Casa
Assassinada”, de Lúcio Cardoso (a conclusão desse demandará ainda um bom tempo)
, “Obra Completa”, de Murilo Rubião (em fase de leitura), e “Ópera dos Mortos”.
Ah, não posso me esquecer de Luiz Ruffato e o seu “Flores Artificiais” (resenha
por aqui, também), e a próxima leitura, já adquirida, de “Verão Tardio”, do mesmo autor.
“Opera dos
Mortos” é considerado o maior romance de Autran Dourado, que é comparado a
Guimarães Rosa, de quem ainda não consegui concluir nenhuma leitura, e me é, em
algum aspecto, um escritor intragável. Espero mudar de ideia, pois pretendo
novas tentativas de leitura dos seus principais livros, e talvez ele se torne
digerível. Mas entendo a comparação, já que Rosa é considerado o maior prosista
mineiro e, ao lado de Machado de Assis, do Brasil. Mostra a envergadura de
Autran Dourado, e um pouco de quem estamos a falar. Escrito em 1967, o livro é
o primeiro volume da trilogia cuja sequência se dá com “Lucas Procópio” e “Um
Cavalheiro de Antigamente”.
A história se
passa no interior mineiro, e tem como principal personagem um “Casarão”, isso
mesmo, onde se desenrolam os conflitos, intrigas e a solidão dos demais
personagens. Esses são como vultos, fantasmas, a assombrarem com seus desvios e
pecados as paredes, tetos e pisos da construção, numa sequência interminável de
feridas expostas e das quais é impossível se esquecer; sem alívio, uma dor
interminável. O ressentimento, o orgulho, a amargura áspera, permeia a vida dos
ocupantes e o restante da cidade, em um sentimento de culpa sem qualquer
perdão. Tudo porque, no passado, a cidade traiu a confiança e boa-fé do
patriarca da família Honório Cota, pai de Rosalina, moça que conserva a
tradição familiar de isolar-se em casa e evitar, a todo custo, o contato com os
demais habitantes da cidade. Do avô, Lucas Procópio, odioso em seu
comportamento desumano, frio e egoísta, Rosalina parece herdar a loucura, uma
loucura melancólica, trágica, quase inofensiva (a não ser a si mesma), enquanto
o ancestral impregnou-se de uma demência maligna, perversa.
Moram no
casarão a empregada Quiquina, uma descendente de escravos e que criou
Rosalina, tendo-a por filha, após a morte da patroa. E a chegada do maledicente e preguiçoso e errante
Juca Passarinho, exímio caçador, a despeito de ter apenas um olho bom; o outro,
era uma névoa branca. Ele se apaixona pela figura nobre, circunspecta e altiva
de Rosalina. Com o tempo, angaria alguma simpatia dela e a aversão de
Quiquina. Com o tempo também, as coisas mudam; se de dia o aspecto geral da
casa e suas relações é austera, formal e corriqueira, a solidão de Rosalina,
que não tem com quem conversar, já que Quiquinha é muda, acaba por “ceder” à
bisbilhotice atrevida de Juca; e este passava as tardes ouvindo as resenhas da
patroa, atropelando-a vez ou outra com os seus palpites despropositados e
perguntas indelicadas. À noite, o convívio tomava ares completamente distinto,
fazendo lembrar ao narrador (indistinguível) as diatribes do velho Procópio.
O Casarão
contém, em seu espaço, duas realidades diferentes, em que as vidas se encontram
no limiar de uma tragédia grega. E acaba por consumar-se.
É impossível
não relacionar o título da obra com o enredo, no qual se vislumbra a realidade
em que os mortos de verdade estão vivos, e tão vivos que impregnam os
habitantes da casa com a própria morte; como se a resistência estivesse no
estigma de leva-los, os ainda vivos, à morte, de forma a unirem-se a eles. E se
os ainda vivos agem como mortos, e os mortos como vivos, nas lembranças,
objetos, e condução da vida na velha mansão, ali se enterram, e são enterradas,
as esperanças, os desejos, as almas dos moradores. Nem mesmo quando a casa é
aberta e os habitantes da cidade têm a oportunidade de invadirem os seus cômodos,
a tortura, o martírio permanecem como presenças graves em cada parte, cada
detalhe, cada som, sem que ninguém se sinta ou esteja livre da mancha a gravar
o vestígio da condenação e a clausura de todo o povo, dentro ou fora do Casarão.
Ele é o centro da sociedade, da atividade, da vida pregressa e futura da
cidadezinha.
Ópera dos
Mortos é uma grata surpresa. Um livro em que Autran Dourado traça a ponte entre
o passado e o presente, e um futuro tão embebido neles que se transforma em
“amanhã póstumo”, onde a morte traz da vida outros defuntos.
_______________________
Avaliação: (****)
Título: Ópera dos Mortos
Autor: Autran Dourado
No. Páginas: 212
Editora: Civilização Brasileira
Wow! E pensar que nestes dias falei dele para vc. Li este livro em 1989, aí em BH. Li para o vestibular na UFMG. Etam dois, este o Sinos da agonia. Vc me fez querer revisitar Autran!
ResponderExcluirFábio, que legal!
ResponderExcluirConversamos mesmo sobre Autran Dourado. E só de saber que ensejei-lhe o desejo de revisitar seus livros, me enche de alegria. Pois este é o objetivo das resenhas: estimular leitores a ler bons livros, de autores que não são muito badalados nem estão nas listas dos mais vendidos.
Grande e forte abraço!