Jorge F. Isah
Não é o primeiro livro de
Chandler que leio, mas “O Sono Eterno” tem todos os elementos que fariam de
Raymond Chandler o expoente dos romances policiais “noir” (para quem não sabe,
a palavra francesa significa escuro, preto); até mais do que o seu
“mestre”, Dashiell Hammett (“O Falcão
Maltês”, entre outros), provavelmente o “pai” do estilo. Ao contrário dos
clássicos policiais de Poe, Chesterton, Christie, Conan Doyle, entre outros,
Phillip Marlowe e San Spade (o antecessor daquele) diferem-se dos protagonistas
tradicionais ao assumirem um estilo menos nobre, culto, intelectual. Parecem
tropeçar nas pistas a desvendarem os crimes, ao invés de engendrar, com cuidado
meticuloso, os caminhos que os levarão aos criminosos e à solução dos dilemas. Marlowe,
assim como Spade, é mulherengo, etilista, circunspecto, rude, sem muitas
ambições. A despeito do caráter moral, a impedi-lo de se confundir com os
bandidos, suporta uma linha tênue entre o bem e o mal sem ultrapassá-la, ao
menos no que concerne mantê-lo no escopo do “herói”, mesmo utilizando-se de
métodos pouco ortodoxos e alguns censuráveis. Não é uma mente brilhante como a
do Padre Brown ou Poirot, mas, como eles, é obstinado em resolver dilemas
criminais e capturar malfeitores. Em suma, a luta entre o bem e o mal está
presente, e, podemos dizer, sempre aquele prevalecerá, no final, sobre esse.
O estilo de
Chandler é linear sem rupturas na narrativa, idas e voltas, mas com
reviravoltas e surpresas no enredo. É uma característica corrente em sua obra,
e aqui também se faz presente. A
construção dos personagem não busca o aprofundamento psicológico, muito menos
conhecer-lhes o íntimo, suas perplexidades e índole. Em princípio, elas são
“peças” em um tabuleiro cujo objetivo é demonstrar que todos estão dispostos,
em maior ou menor grau, a cometer pecados. E isso não é uma crítica, mas um
acerto de Chandler. Entretanto, não sabemos a motivação ou circunstâncias que
levaram os personagens a agir de maneira delituosa. Basta saber o necessário
para o desenrolar da trama; tendo-se a certeza de ninguém, nem mesmo o “caçador
de culpados”, estar imune aos deslizes e pequenos delitos. Esses são tratados
com condescendência, como o “mal menor” e, em alguns casos, justificáveis. Da
jovem fisicamente frágil e psicologicamente perturbada até ao velho, inválido e
doente terminal, nenhum deles escapa à natureza humana, seja o egoísmo a
mover-lhes, seja o exibicionismo, sejam os vícios, a megalomania, a ganância,
etc. Todos compartilham da porção de pecado, e ninguém é inocente, mesmo se
provando o contrário. Até mesmo a mulher que não tem qualquer impulso desonesto
é acusada e condenada, por sua beleza atordoante.
Um ponto que
me incomodou bastante durante a leitura, foi o excesso de comparações,
metáforas, a cada página, tornando a escrita artificial e forçosamente
engraçadinha. Chandler é irônico, e nesses momentos ele conseguia manter o
fascínio do texto. Ao contrário, quando o desejo era o de ser “espirituoso”, o
efeito fazia-se contrário, causando tédio e desagrado. Particularmente,
resultava na ideia de um trecho mal escrito, descuidado, e por demais rijo (no
sentido de engessado). P. Ex: “Então o general falou de novo, lentamente,
utilizando sua força com extremo cuidado, do mesmo modo que uma atriz
desempregada usa seu último par de meias boas.” (grifo meu). O recurso,
se não fosse utilizado de forma compulsiva e inapropriada muitas vezes, alcançaria êxito, mas, ao nos deparar com
constantes metáforas, como se fossem jogadas no texto, o intuito torna-se tíbio
e, não poucas vezes, ridículo. Utilizá-lo de maneira equilibrada traria ao
texto mais polimento.
Chandler
influenciou gerações de autores. Um exemplo é Charles Bukowski que, a despeito
dele dar mais crédito a Dostoievski, Céline, e, especialmente Fante, inspirou-se
naquele quanto à forma rude, seca e objetiva de escrever, sem floreios,
elegância e a complexidade de outros autores. Quanto ao humor, ou à maneira de
rir de si mesmo e dos outros, Chandler não alcança grande sucesso, ao passo que
o “velho safado” tem esse como um dos pontos altos da sua escrita; talvez o
melhor em toda a sua linguagem.
Não é um livro
para se desprezar; e pode ser lido em um final-de-semana. Tenho por base ler
livros menos “complexos” enquanto me debruço sobre outros mais “solenes”; e
sempre recorro a Chandler ou Hammett, Ágata Christie, Simenon, para
“descansar”. E entre todos eles, Chandler é um dos meus preferidos. Pena não
ter escrito muito (se perdeu, quero dizer, perdeu tempo com roteiros de cinema,
em Hollywood), mas sempre existe a chance de reler os seus clássicos.
Em suma, “O
sono eterno” é um exemplar típico da literatura noir, e um dos seus expoentes.
Não é uma obra-prima; mas não é preciso sê-lo para cumprir ao que se propõe:
ser literatura de qualidade.
E o é!
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Avaliação: (***)
Título: O Sono Eterno
Autor: Raymond Chandler
Editora: Brasiliense
No. de Páginas: 243
Sinopse: "Philip Marlowe, detetive particular em Los Angeles, é chamado à mansão do velho General Sternwood para investigar um caso de chantagem, aparentemente banal, envolvendo uma de suas filhas. Em pouco tempo, Marlowe percebe que algo se esconde atrás desse pedido, e que as duas filhas do General, Vivian e Carmen Sternwood, podem ser mais perigosas do que aparentam. Em uma cidade chuvosa e enevoada, ele aos poucos se envolve com a pornografia ilegal e a máfia dos jogos. Nesta primeira aventura de Marlowe, publicada originalmente em 1939, Raymond Chandler deu nova vida ao romance policial, mesclando uma trama envolvente a um estilo inigualável - corrosivo, cômico e extremamente original."