09 março 2024

Águas Profundas, de Adrien Lyne

 



Jorge F. Isah



Águas profundas é um daqueles filmes inesquecíveis, às vezes pela qualidade e talento da produção, edição, roteiro, interpretações, direção ou por todas essas coisas capaz de levá-lo à candidatura do Oscar e até mesmo à vitória (se bem que Oscar e bons filmes já há um bom tempo não são mais sinônimos). Entretanto, existem aqueles também que não nos sai da cabeça por seus defeitos, vícios e problemas. No sentido da direita para a esquerda, em ordem decrescente, o filme estaria na parte mais baixa da ladeira, quase na extremidade canhota (não há aqui nenhuma conotação política, apenas o meu critério de aferição, pessoal e intransferível).

Dirigido por Adrian Lyne, o mesmo de 9 e 1/2 semanas de amor (proto-pornô), Proposta Indecente e Atração Fatal, se manteve em período sabático por 20 anos, e, ao voltar, tropeçou em seus próprios erros não resolvidos no passado e reforçados no presente. A se salvar a química entre o canastrão Ben Affleck, a linda Ana de Armas, e o carisma infantil de Grace Jenkins; de resto quase nada se aproveita no filme, nem mesmo a incipiente e pálida crítica social aos endinheirados e suas vidas fúteis.

A história é sobre o relacionamento confuso, destrutivo, imaturo e corrosivo de Vic (Affleck) e Melinda (Armas), um casal de ricaços cuja filhinha, Trixie, é mais madura e centrada do que os pais. Vic, um gênio da computação, criou um sistema de drones para o governo americano que atinge alvos inimigos com alto grau de precisão. Assim, ganha uma fortuna e se dedica quase exclusivamente à família, festas onde era constantemente desafiado pela esposa, e uma criação de escargots no porão de casa.

Melinda é a típica mulher fatal: linda, sex, ardorosa e promíscua, além de bêbada; deita-se com qualquer um sem o menor pudor ou remorso, e diante de toda a cidade desfila os amantes debaixo dos narizes incrédulos de amigos e conhecidos. Não respeita ninguém a não ser o seu apetite sexual... Não se sabe a razão de agir assim. No decorrer da trama, fica-se a par de talvez ser a frieza do marido, não dado a arroubos e fervores, a causa das inúmeras e sucessivas traições. Só esse fato demonstra a infantilidade e fragilidade da história. Vic ama Melissa, ao seu jeito, e mesmo sabendo dos affairs extraconjugais, não pretende se separar; ela está mais disposta a humilhá-lo, enquanto se beneficia da sua fortuna para presentear amantes e, em alguns casos, sustentá-los.

Trixie tem afinidades e um relacionamento carinhoso com o pai, e por vezes vemo-la a provocar a mãe (quase sempre de ressaca pela manhã ou bêbada durante o dia) com músicas infantis e barulhentas. A relação das duas é claramente conflituosa, já que a pequena, inteligente e sagaz aos 6 ou 7 anos, não está desatenta à disfunção moral da progenitora.

Então, Vic, para se vingar, resolve matar um a um os “amigos” de Melissa. Isso mesmo. Incapaz de se divorciar, seja lá qual for o motivo, decide afastar definitivamente os rivais, e acaba por provocar o furor da esposa, privada dos seus “brinquedinhos” e tendo de encontrar outros.

A história em si é um emaranhado de equívocos, inverossímil e cheia de buracos por todos os lados. Lyne não consegue preenchê-los, deixando a coisa toda à deriva, mas abusando daquilo que sabe fazer tão bem: exorbitar no exibicionismo e masoquismo dos personagens. O roteiro estúpido (baseado no livro homônimo de Patricia Highsmith), direção insegura e canhestra, e o clima nitidamente absurdo da trama, faz-nos lembrar as antigas novelas venezuelanas, de 30 anos atrás, deixando a sensação de estarmos diante de uma grande e inominada porcaria.

No final, ao perceber que o marido era o assassino dos seus amantes, Melissa reconhece, com isso, a sua mudança de atitude, de não ser o homem frio, distante, mas certamente um potencial marido capaz de amá-la. E as provas mais sórdidas e abjetas convence-a de que os assassínios impiedosos, planejados e brutais serão suficientes para apaziguar o seu ímpeto devasso. Ou seja, para conquistá-la não era bastante fortuna, gentileza e leniência, mas a oblação, os sacrifícios consagrados no altar de Melissa. Os dois se merecem, não há dúvidas.

De bom mesmo, lá pelo minuto 20 e poucos do filme, a performance de Grace Jenkins cantando “You make me feel like dancing”, música de Leo Sayer, de 1976, sentada no banco de trás do carro, a caminho da escola. Temos o melhor de Affleck também. Valeria o filme, se as quase duas horas se restringissem a um curta-metragem. Essa cena é um dos poucos trunfos a tirá-lo da extrema-esquerda e trazê-lo mais próximo ao centro. 

Não o suficiente, mas podia ser muito pior.

            _________________

Avaliação: (*)

Título Original: Deep Water

Direção: Adrian Lyne

Roteiro: Sam Levinson e Zach Helm

Ano: 2022

Produção: Amazon

Duração: 116 minutos

_________________ 

Nota: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga

Nenhum comentário:

Postar um comentário