02 julho 2024

Os Belos e os Malditos - F. Scott Fitzgerald

 





Jorge F. Isah



       Scott Fitzgerald é um dos meus autores prediletos. Ele é de uma geração de escritores a primar pela clareza, objetividade e, por que não, sinceridade. Tal qual, por exemplo, Hemingway, guardadas as diferenças de estilo, narrativa e mundos, Fitzgerald parece falar do que entende muito bem, e desnuda o universo no qual transita e, também, seus personagens circulam. Tal qual o especialista em assuntos gerais e intrínsecos, ele esmiúça o que existe de melhor, em pequenas porções, e o mais acintosamente infame, em larga escala, na alma. Em alguns momentos, o abjeto e o frívolo se unem em sua desgraça, ao ponto de trazer ao leitor um mal-estar intenso e profundo. Como se não houve luz, apenas trevas, eles são incapazes de notar onde estão e para aonde vão, cegados por seus vícios e a incapacidade de entendê-los para assim se libertarem.

Outro aspecto perceptível em seus livros é o constante “deslocamento” dos personagens, sejam rebeldes, flexíveis, ambiciosos, desprendidos, pacíficos ou belicosos. Nenhum deles parece conhecer o seu lugar no mundo, e está nele muito mais pela falta de opções do que escolhas. Este sentimento leva-os, cada um, a buscarem distrações, compensar o incômodo existencial com sexo, drogas, bebidas e farras intermináveis. É o dispender-se sem sentido, em um tipo de niilismo levado às últimas consequências, onde viver é o mero exercício do instinto, mecânico, fortuito, mas ainda assim, pretensioso e cabotino. De forma a cada elemento mover-se na direção do grupo, e o grupo satisfazer-se na aquiescência de cada indivíduo; amálgamas do desatino e da fleuma vadia. Uns mais, uns menos, é como uma teia onde convivem, até certo ponto, a presa e o predador, em um jogo igualmente encarniçado e fatal.

      Em “Os Belos e Os Malditos” não é diferente. Segundo livro publicado pelo autor (1922), ele retrata o ambiente efusivo e degradante, porque também não, o declínio de uma geração que se ofuscou em devaneios, caprichos e futilidades. Jovens a imaginarem-se heróis de si mesmos, algo muito comum na maioria dos imaturos, e velhos arraigados ao anti-heroísmo, mormente egoísta e autoritário. No primeiro caso, temos Anthony Patch, universitário e herdeiro de um magnata dogmático e austero. No segundo caso, há Adam Patch, o avô milionário de Anthony, que vê o desregramento do neto como impeditivo para herdar os seus negócios. A inabilidade de Anthony em gerir a própria vida faz o avô imaginar o mesmo para a sua fortuna. E ele não está errado: o neto frustra completamente o patriarca a cada desafio recebido, por menor que seja.

      Anthony aguarda a morte do avô para refestelar-se na fortuna que considera sua por direito inalienável. Praticamente, conta os dias, semanas, meses, em uma espera macabra e aflitiva. Para o seu desespero, o alcoolismo é o maior dos pesadelos, pois o velho Adam, homem respeitado na sociedade, abomina todos os vícios e, em especial, o etilismo. Anthony vive em apuros, vivendo com uma módica mesada (ao seu ver, e para a qual não faz qualquer esforço em merecer), enquanto se esbalda nas noitadas e mais noitadas regadas a Whiskey, lugares da moda, e a despender seus recursos, tanto financeiros como físicos, em uma existência fútil e pueril, ansiando o dia a deter os fundos suficientes para expandir essa tragédia.

      As coisas parecem tomar, inicialmente, outro rumo quando conhece Glória, prima do seu amigo, Dick; este almeja a carreira de escritor e, ao contrário de Anthony, em curto tempo alcança sucesso, fama e dinheiro. Glória é a socialite esnobe, narcisista, cuja beleza estonteante é a única coisa a importar-lhe realmente. Satisfaz-se com levadas de homens aos seus pés, exibindo-se noite sim, outra também, nos salões mais prestigiados de Manhattan. A despeito das diferenças, Anthony se considera um intelectual e Glória uma debutante, algo os atrai: o álcool e a inconsequência. Para quem conhece um pouco da biografia de Fitzgerald e do seu casamento com Zelda, este parece ser o quase retrato da relação entre eles. Algo que Hemingway, amigo de Scott, descreveu no livro “Paris é uma festa”.

      Em suas mais de 300 páginas, o autor fala de decadência, obsessão, frustrações e quão aparente eram os vínculos dos jovens nos anos da geração perdida do Jazz. Com o passar do tempo, as relações se acidificaram, e a aparente harmonia no caos se tornou somente em algo babélico, o verdadeiro “salve-se quem puder”, onde praticamente nenhuma expectativa consolidou-se tal como idealizada. Em meio ao mundo destroçado pela 1ª Grande Guerra, a vida jamais seria a mesma, e caberia a cada um adaptar ou sucumbir aos efeitos gerais, e aos deslizes e equívocos individuais.

      Não custa lembrar: não faço sinopses ou resumos de livros. A ideia é dar um panorama e com ele aguçar o interesse do futuro leitor. Por isto, se você é novo por aqui, desista, não vou lhe entregar a história na bandeja. O meu esforço é o de tentar, às vezes funciona, outras não, contar o mínimo, mas suficiente para que se decida a comprar o livro e explorá-lo. Igualmente, não faço uma crítica, ainda que sempre haja algumas no decorrer da resenha; mais uma apreciação dentro da perspectiva otimista de influenciar e seduzir o leitor com elementos a encorajá-lo em sair do lugar cômodo (na verdade, incômodo) de privar-se das experiências universais, amadurecer, e refletir sobre si, os outros, seu lugar, dos demais, e assim evitar os erros, tonificar os acertos, e no microcosmos a cercá-lo, promover benefícios a todos. Como está escrito: “O meu povo foi destruído, porque lhe faltou o conhecimento” (Oseias 4:6). Neste trecho, o conhecimento se refere a Deus, ao Ser divino, mas pode-se remetê-lo a qualquer aspecto da vida, sem perda de sentido.

            Neste aspecto, Scott Fitzgerald revela em suas narrativas quanto o homem pode ser supérfluo, instável e imprevisível, em uma contingência desordenada e quase sempre desconectada da realidade. Talvez, por isso, o homem insista tanto em fugir da verdade, em uma busca fastigiosa e inexequível. Não raras são as cenas de homens e mulheres a desdenharem, ultrajarem, conspurcarem-se. O poço é fundo, mas pode-se descer ainda mais; e ainda assim, o orgulho, a soberba e a desfaçatez parecem subsistir em meio à lama e entulho... A constatação de serem eles, em última instância, a promoverem e impulsionarem os indivíduos para um fim nada ditoso.   Ainda que se gaste uma vida inteira e não se perceba o aracnídeo prestes a capturá-lo.

            Fitzgerald parecia entender... mas não conseguiu, ou não quis, fugir a tempo.

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Avaliação: (***)

Título: Os Belos e Os Malditos

Autor: F. Scott Fitzgerald

Editora: Record

Páginas: 340




09 junho 2024

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02 junho 2024

Kaspar Hauser - Jakob Wassermann

 



Jorge F. Isah



Neste mundo, muitos são os personagens e eventos a guardarem a sua parcela enigmática, obscura ou simplesmente farsesca, a iludir e enganar um bom número de simpatizantes, a divertir e aguçar a curiosidade de outros, a aflorar emoções às vezes ambíguas, às vezes sinceras, não raramente oportunistas. Seja por um motivo ou outro, o fato é que a figura de Kaspar Hauser ganhou contornos épicos, de heroísmo estoico, a suscitar reações e emoções um tanto quixotescas, as raias do lirismo, em outras, impermeáveis, ladinas, quase cruéis; sempre a revelar e mostrar as várias facetas da humanidade, tanto para o bem quanto o mal, por vezes prudente, outras, displicente ou, quando não menos, a revelar os preconceitos, imoderação e açodamentos em juízos e sentenças, das quais ninguém estava disposto a libertar ou desvencilhar-se.

Existem, claro, os indulgentes de primeira viagem, aqueles incapazes de, no primeiro momento, tecer qualquer censura ou depreciação quanto à figura ou situação recém-apresentada. A estes, com todas as eventuais consequências da esperança e otimismo quanto a homens e seus atos, solidarizo-me, porque é preferível de antemão confiar até que se prove o contrário do que a desconfiança como a previsível inabilidade pós-moderna de se relacionar, conviver e até certo ponto se sacrificar em favor do outro. Não digo de uma ideia, conceito ou qualquer arrazoado, por mais robusto, mas de gente, pessoa, igual a nós e, talvez, melhor do que nós. Existe sempre a possibilidade do contrário, do indivíduo ser o filhote do capeta, estar a seu serviço e abusar da confiabilidade; mas aí, a culpa será sempre dele e não o inverso; será de quem propõe o embuste e a farsa, e nunca daquele a transpirar decência, sinceridade e compaixão, a ser empático e, por que não, simpático com aqueles a rodeá-lo. É uma mania irritante a de sempre condenar a vítima e expurgar o agressor, não apenas em relação aos crimes civis e penais detalhados em códigos e manuais, mas aqueles tácitos na sociedade. É fazer do falsário, além de espertalhão e vitorioso, o padrão a ser almejado e perseguido como o caráter máximo de humanidade e perfeição. E se hoje caminha-se para a consolidação da “Lei de Gérson”[1], lá pelos idos de 1800, a coisa não era melhor, ainda que em proporções menos, digamos, tóxicas e genéricas. Neste aspecto, ética e moral são princípios ultrapassados, coisa de cristão medieval, e vale mesmo é o pragmatismo, o resultado, seja ele qual for ou como for, e signifique garantir a autodestruição ou o próprio fracasso. A garantia para um sentimento tão irracional e vulnerável é a afirmação pós-moderna do não existe a "verdade absoluta", nada é absoluto, tudo é relativo, menos a sentença proferida pelo pós-moderno em seu absolutismo nada relativo.

Escrito por Jakob Wassermann, alemão, nascido em 1873, o livro narra a trajetória de vida de Kaspar Hauser desde a aparição espetacular em uma praça de Nuremberg. O evento ocorreu em 1828, e chamou imediatamente a atenção de toda a Europa. Trazia consigo uma carta onde a sua vida era resumidamente descrita; e o jovem de 15 ou 16 anos, não se comunicava ou não falava além de sons rudimentares e desconexos, e não escrevia; autoridades e interessados tinham de se contentar com os seus gestos e sons de lamento, espanto, dor e medo. A pergunta corrente era: “quem é ele?”. Louco? Miserável? Nobre? Ou charlatão? Teceram-se várias teorias, desde não se passar de um aproveitador até ser herdeiro do trono de Baden, no sudoeste da Alemanha.

Não vou entrar nos pormenores históricos, apesar do livro conter inúmeros elementos historiográficos, muito menos em averiguar as validades ou não das teorias. Calcula-se em algumas centenas de livros a tratar do assunto, e ninguém parece convicto do que quer que seja. A nós, e a mim em especial, me interessa o trabalho de Wassermann como artista, apesar de, certamente, ele ter realizado uma pesquisa minuciosa do caso, em vista da profusão de aspectos a descrever o insólito evento. Começarei, primeiramente, em descortinar um pouco a figura do nosso herói:

“O comissário, no posto policial, interrogou-o inutilmente. Ele só respondia através de palavras estúpidas. Nada o fez mudar de atitude, nem ameaças, nem gritos. Mas quando um dos soldados acendeu uma vela, aconteceu uma coisa assombrosa: o rapaz moveu-se à maneira de um urso e quis, depois, aprisionar a chama entre as mãos. Queimou-se, e pôs-se a chorar de um modo que cortava a alma.”[2].

O autor descreve e constrói uma personalidade virtuosa, mesmo na forma mais primitiva e instintiva do ser de Kaspar. No decorrer da trama, o jovem faz de tudo para manter a sua pureza, singela, autêntica, gentil e lúdica. Evita os conflitos, as provocações injustas e descabidas, e tencionava de verdade integrar-se ao novo mundo ao qual fora lançado. Mesmo obstinado em conhecer as origens, ascendentes, e as razões pelas quais se tornou pária, um enjeitado, não requer qualquer tipo de restituição e vingança. As ofensas e dissabores esbarram sempre em sua teimosa esperança de, em breve, encontrar a mãe e desvendar o passado. Nesse aspecto, à mercê da bondade e sujeição às exigências sociais, por mais que se esforçasse, nunca parecia suficiente; havia aqui e acolá um e outro e mais outro a implicar com a sua inofensiva devoção em manter-se distante dos imbróglios e complôs. Infelizmente, as pessoas o consideravam não pelo que era, mas pelo que consideravam ter sido (charlatão, bastardo ou herdeiro injustiçado) ou pelo que seria: alguém a se olhar com suspeição e censura, ou o vaticínio da iminente realeza.

Não é difícil ver-lhe os traços cristãos, de alguém disposto a confiar, esperar, se entregar sem imposições ou compensações. É uma alma compassiva, afável, não obstante as inúmeras dúvidas e interrogações emudecidas, ou muitas acusações publicadas. Talvez o ponto central seja a incapacidade ou impedimento humano diante do inexplicável, de pessoas e eventos não catalogados nem discerníveis pela razão, a merecer mais do que a simples opinião ou presunção dos afoitos, mas também dos arraigados em convicções e sistemas inadequados a tratar de determinado assunto e agentes. Assim, enquanto ansiava resolver o passado e seguir em frente, em torno de Kaspar se forma um conluio ou conluios a fim de desacreditá-lo, negar-lhe o sonho, o desejo e a possível ventura. Às voltas com a desconfiança, interesses e toda a sorte de recursos a fazê-lo um “peão” publicitário, ou melhor, um tipo de escada para o sucesso de alguns e reafirmar a autoridade de outros. Com o tempo, após idas e vindas entre diferentes guardiões e tutores, no intuito de salvaguardar-se, omite, recua, caminha solitário... Sua alma, contudo, permanece genuína; não se curva às falsas expectativas e imposições alheias, pois neles não encontra a confiança suficiente para considerar a ajuda de que não precisa, quando não se dispõem a socorrê-lo no necessário.

Prof. Daumer, o primeiro preceptor, a despeito da boa vontade, interesse e empatia com o jovem Hauser, não tinha resolução e galhardia suficientes para continuar o trabalho de educação, para sustentá-lo emocional e espiritualmente. De todos, foi ele e Clara os mais próximos de uma amizade, sem levar em conta os esforços do Presidente Feuerbach que, desde o início, custeou a subsistência de Kaspar, além de empreender todos os esforços para resgatar-lhe o passado e as origens. Os demais, em escalas diferentes, projetavam, no jovem, seus preconceitos, juízos e sentenças. Nesse emaranhado de cobiças e inconveniências, ele experimentou o engano, indiferença, traições, desprezo, ameaças. Para ele, sonhos e pesadelos se entremeavam à realidade, de maneira que a sua índole ainda precoce não estava apta a elucidar; quanto mais as diversas manifestações negativas recrudesciam, cuja motivação era-lhe completamente inalcançável, mais confuso e desarticulado ficava.

Foi, pouco a pouco, fechando-se em seus delírios e anseios, a planejar o jeito de safar-se do labirinto ao qual pertencia, sem se preocupar na autodefesa, a ouvir silente denúncias, humilhação e calúnias. A última esperança estava no policial Schildknecht, e por ela aguardou. Mas após a primeira ameaça e tentativa de assassinato, em Nuremberg, a demora em obter a resposta do soldado turvou-lhe ainda mais o espírito, invadindo-o uma miséria da qual não conseguia mais escapar. Tudo parecia ruir; havia apenas a nesga de luz onde a escuridão teimava ocultar. Kaspar, o homem improvável, culpado por ser e não ser em meio a profusão de conceitos, não era mais humano, era apenas uma ideia, muito diferente da simplicidade e primitiva ingenuidade que homens e mulheres, em sua maioria, não conseguem admitir ou aprovar.

Resta esquecer, e deixar o mito suspeito de produzir, ele mesmo, a obra que não lhe pertence e a honra quase sempre negada.



Notas:

[1] Lei de Gérson, para quem não sabe, ainda que prove ou a aprove diariamente, foi cunhada pelo prof. Maurício Dias, ao se referir à propaganda de cigarros protagonizada pelo ex-jogador da Seleção Brasileira, Gérson, em 1976. O slogan da campanha era: “Gosto de levar vantagem em tudo, certo?”

[2] Página 9

[3] Texto publicado originalmente na Revista Bulunga

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Avaliação: (****)

Título: Kaspar House

Autor: Jakob Wassermann

Editora: 7o. Selo

Páginas: 492


26 maio 2024

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 39: A prova da Trindade - parte 2





Jorge F. Isah
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Não vou repetir aqui o que já disse outras vezes, especialmente neste estudo sobre o ser de Deus, que é o capítulo dois da C.F.B, mas analisar biblicamente a doutrina da Triunidade.

Pois bem, dias desses, assisti ao vídeo do pr. Paulo Romeiro no YouTube, como uma prova incontestável da doutrina da Trindade[1]. À primeira vista, fiquei realmente embasbacado com a prova. Primeiro, assista o vídeo, e depois continuamos.

O pr. Romeiro citou Isaias 6.1-8; João 12.37-46 e Atos 28.23-28. Analisando os versos podemos ter certeza de que Deus é Triuno? Bem, alguns pontos iniciais que me chamaram a atenção:

1- O profeta Isaías vê o Senhor dos Exércitos e a sua glória, de quem os anjos clamavam entre si, dizendo: “Santo, Santo, Santo” [um triságio, do grego tris-agion, significando três vezes Santo]. Esta expressão, utilizada na Escritura em Is 6.3 e AP 4.8, parece-me o reconhecimento dos anjos e da própria revelação especial quanto à santidade divina, o que faz os anjos eleitos [igualmente feitos santos, sem pecado, não por si mesmos, mas pela vontade de Deus] afirmarem que Deus é o único e perfeitamente santo. Mas também nos remete à sua natureza Tripessoal, na qual o ser divino subsiste em três pessoas: o Pai e o Filho e o Espírito Santo, responsivamente indicado pelo "Santo, santo, santo".

2- O profeta ouviu a voz do Senhor que disse: “A quem enviarei, e quem há de ir por nós?” [v.8], onde, novamente, Deus se refere a si mesmo no plural, não na pluralidade de “deuses”, mas na pluralidade de pessoas ou personalidades.
Interessante que uma das acusações dos antitrinitarianos é de que nós somos politeístas e pagãos. Mas mostre-me em qual religião pagã e politeísta há a ideia de um Deus subsistindo em três pessoas? A doutrina da Triunidade divina não encontra eco em nenhuma outra religião a não ser no Cristianismo, e, por isso, certamente é tão atacada e rejeitada.

3- Romeiro diz que o Pai foi visto por Isaías, mas João diz que Isaías viu a Cristo, e Paulo diz que o profeta ouviu o Espírito Santo. Como disse, à primeira vista pareceu-me irrefutável o argumento. Porém, analisando mais detidamente a questão, e após ler alguns contra-argumentos, ela parece ser uma desgraça para os unitaristas, mas nem tanto para os unicistas. Estes podem claramente afirmar que os textos em si revelam que Cristo é o único Deus, validando assim a heresia: Isaías viu Cristo como o Pai, o Senhor dos Exércitos, mas que foi entendido por João como sendo Cristo, e por Paulo como sendo o Espírito Santo, ou seja, Cristo se manifestando de modos diferentes. Será?

4- Nos trechos acima temos a repetição de um mesmo verso, de Isaías 6.10, indicando que os apóstolos, sem sombra-de-dúvidas, referiam-se a ele.

5- Eles demonstram a unidade de Deus, de que Deus é um. Também deixa claro que há três pessoas subsistindo no único Deus: Pai, Filho e Espírito Santo. E salta-me aos olhos que, havendo três Pessoas, elas, em unidade, são a causa de tudo, seja na criação, na salvação, na sustentação; podemos referir-nos a uma das Pessoas como sendo a que criou ou salvou, de forma que ela participou ativamente em cada etapa da obra divina. É o que a Bíblia nos revela quando diz que Deus criou o universo, lembrando-nos de que foi uma obra conjunta das Pessoas que subsistem no Criador: o Pai, o Filho e o Espírito, em sua vontade e ação únicas operaram inseparavelmente na criação, sem, contudo, confundirem-se, como uma única pessoa. Em sua natureza e essência Deus é um, subsistindo em três Pessoas distintas, que se relacionam eternamente entre si. E, por conseguinte, pode-se dizer que as três realizaram, cada uma, a mesma obra.

Por exemplo, em Gênesis 1.1, Deus criou os céus e a terra, mas, em Jo 1.3, Cristo é apontado como o criador de todas as coisas, as quais, sem ele, não seriam criadas. Gênesis 1.2, Jó 26.13 e Salmos 104.30 indicam-nos que o Espírito Santo é o criador do universo. Assim, o mesmo acontece em relação à obra de salvação: o Pai salva [Jn 2.9, Jo 3.16-17], o Filho salva [Mt 1.21, Jo 4.42] e o Espírito Santo salva [Tt 3.5]. De forma que há uma ação conjunta da Trindade em tudo, ainda que se possa designar individualmente uma ou outra como o seu agente direto. A obra, no fim-das-contas, pertence a cada uma delas, porém realizadas em unidade, conjuntamente, como consequência da vontade única e indissolúvel de Deus.

A questão, portanto, não é se os trechos apontados pelo pr. Romeiro defendem o unicismo, o que não é verdade. Nunca, em tempo algum, qualquer versículo bíblico pode ser usado como argumento para o engano, o pecado ou a heresia. Jamais haverá afirmação escriturística que corrobore ou induza o homem a qualquer desvio. Logo, a culpa não é da Bíblia, mas da mente imperfeita, pecaminosa e caída do homem que interpreta equivocadamente o que o texto diz ou, a partir de pressupostos falhos, ele induz o texto a dizer o que não diz, e conclui, para a sua desgraça, que o texto confirma o que a sua mente doente não é capaz de ver: que nada do que pensa ou concluiu tem procedência divina, e foi revelada por Deus. A deficiência é completamente humana, na incapacidade de reconhecer a verdade, e apenas vislumbrar o engano.

Eles, antes, declaram que Deus é um e opera todas as coisas por intermédio das três Pessoas. O que há, na verdade, é uma distorção do ensino bíblico, ao se afirmar que as Pessoas são meras manifestações, estados ou modos de uma única personalidade. O pressuposto de que há um só Deus exclui, na mente herética, a sua tripersonalidade; o que faz desses, ao contrário do que querem parecer, os verdadeiros idólatras, ao adorarem e reverenciarem uma força, o Espírito Santo, ou um ser criado, Cristo. Fazer todas as passagens onde consta o nome "Deus" parecer serem obras de uma única pessoa é o reducionismo que adverti na aula passada, e pertence à mente racionalista dos unitarianos e unicistas. É como se eles vissem uma macieira carregada de frutos e acreditassem estar diante de uma única maça, esquecendo-se do tronco, galhos, ramos, flores e demais frutos que constituem a árvore. Com isto não estou a dizer que Trindade pode ser comparada a uma árvore, nada disso. O exemplo está a afirmar a incapacidade dos antitrinitarianos reconhecerem a verdade, desprezando a revelação que o próprio Deus faz de si mesmo. Toda a cegueira deles está no fato de serem também pragmáticos e se interessarem pelo resultado, seja ele qualquer um, desde que redunde em algo "palpável" e que atenda aos anseios dos seus intelectos.

Por isso, me assusto quando cristãos criticam o argumento do pr. Paulo Romeiro, como uma defesa do unicismo. Ela não é; pelo contrário, nos revela a unidade e a diversidade divina, onde a glória de Deus é compartilhada tanto pelo Pai, como pelo Filho, como pelo Espírito, em um inter-relacionamento eterno, perfeito, santo e infinito, capaz de nos levar às lágrimas, à emoção, mas sobretudo à adoração, louvor e gozo em saber que o amor de Deus por nós não surgiu a partir de uma necessidade divina de se relacionar com a criação, mas é eternamente vivo no relacionamento intrínseco que há entre as Pessoas da Trindade.

Isaías viu o Pai ou o Filho? Ouviu o Pai ou o Espírito Santo?

Cristo disse que quem o vê, vê ao Pai [Jo 14.7, 9]: a mesma natureza ou essência divina, sendo duas Pessoas distintas. De forma que, ao afirmar duas vezes coisas aparentemente contraditórias, estava referindo-se à vontade e propósito iguais de ação por meio da Trindade. Senão, vejamos:
"Mas aquele Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará todas as coisas, e vos fará lembrar de tudo quanto vos tenho dito" [Jo 14.26];

e

"Mas, quando vier o Consolador, que eu da parte do Pai vos hei de enviar, aquele Espírito de verdade, que procede do Pai, ele testificará de mim" [Jo 15.26].

O que lhes parece? O Pai ou o Filho é quem envia o Consolador, e em nome de quem? Ainda que não se possa explicar tudo, e tem-se de entender que a Trindade é um mistério insondável para o homem, ao menos por hora e aqui, o que está claro é o propósito e ação únicas das Pessoas. Não há mistura de Pessoas ou elas não podem ser distinguidas em suas ações, mas há uma só vontade e um só propósito, deliberação, decisão ou resolução no Pai, no Filho e no Espírito Santo, uma harmonia de intentos somente possível no Ser perfeito, eterno e santo de Deus. De outra forma, não estaria ele lançando-nos uma pegadinha? Por que haveria distinção de nomes e pessoas sendo elas uma só personalidade? Com qual intento Deus se revelaria equivocadamente ao homem? Para confundi-lo?

O fato é que os textos indicados pelo pr. Romeiro não defendem o unicismo, mas a Trindade, de forma que aquele que crê no Deus bíblico crê na Pessoa do Pai, do Filho e do Espírito Santo; e aquele que não crê no Pai, no Filho e no Espírito Santo desconhece verdadeiramente a Deus, e dele não é conhecido.
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ÁUDIO DA AULA 39: 


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Notas: [1] O vídeo do pr. Paulo Romeiro intitulado, "A Trindade em Isaias 6", pode ser acessado na aula anterior, clicando AQUI
[2] Aula realizada na E.B.D. do Tabernáculo Batista Bíblico


23 maio 2024

A etérea e translúcida cara-de-pau!





Jorge F. Isah
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Um dos ícones revolucionários do sec. XX foi, certamente, Che Guevara, sim, aquele que a torcida mais fanática e delinquente estampa em suas bandeiras. Aquele das camisetas de dândis e almofadinhas, e do pôster na parede do quarto, à cabeceira da cama, o anjo das trevas. Che que matou índios, negros, homossexuais, trabalhadores, estudantes e mais quem se opunha ao seu pensamento hermético, tornou-se símbolo de defesa da vida. O homem que ordenou a prisão, a tortura e morte de centenas de outros homens, disposto a insuflar uma guerra onde estivesse, hoje é o símbolo da paz. O homem que elaborou frases de amor, solidariedade e sonhos, era diametralmente oposto em seus atos beligerantes, intransigentes, excludentes e torturantes. Falava do que não conhecia, e iludiu muitos com o seu falso conhecimento, pura lábia de uma mente vingativa e diabólica. Mas haverá sempre os desejosos em seguir o próprio capeta, desde que ele seja convincente e descolado, ou aparente piedade quando é peçonhento e desumano.

Esse Che (stalinista empedernido e defensor ferrenho de Josep) está nos códigos e marcadores de livros de qualquer um que renunciou à própria consciência para salvaguardar o barbarismo e a hipocrisia revolucionária. E esse é o mote de Ernesto e inúmeros dos seus seguidores: fazer do embuste e do vício uma virtude.

Com palavreado adocicado a fel, frases açodadas, slogans e uma propaganda intensa do mito a negar o homem, diga-se, mau e perverso, gerações e gerações serão acalentadas com a balela ideológica de que os fins justificam os meios, seja lá qual meio for, para construir um mundo melhor que em nada melhora, em tudo piora, restando então o progresso para a fortuna e fartura de alguns poucos, a casta ou elite a substituir outra casta e elite por si mesmos.

Deixo-vos, portanto, com as melhores frases (sic) do mito Che, que soube muito bem ludibriar os ouvidos moucos e espíritos pacóvios de a “revolução” ser o melhor antídoto para o mundo injusto, desigual e miserável; e caso não desse certo, como efetivamente não deu, qualquer outra forma de rebelião seria combatida com as mais altas doses de injustiça, desigualdade e miserabilidade. Sem contar o pensamento tacanho, indigente e miserável do “nobre” frasista...

E o “rei” somente não ficou completamente nu porque o vestiram da mais tênue, etérea e translúcida cara-de-pau!
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FRASES¹:

. “Se você é capaz de tremer de indignação a cada vez que se comete uma injustiça no mundo, então somos companheiros.

· Ser jovem e não ser revolucionário é uma contradição genética.

· Se eu andar me siga, se eu parar me empurre, se eu voltar me mate.

· Não há experiência mais profunda para o revolucionário que o ato da guerra.

· Acima de tudo procurem sentir no mais profundo de vocês qualquer injustiça cometida contra qualquer pessoa em qualquer parte do mundo. É a mais bela qualidade de um revolucionário.

· Fuzilamentos? Sim, fuzilamos e continuaremos fuzilando sempre que necessário. Nossa luta é uma luta (dedicada) à morte.

· O importante não é justificar o erro, mas impedir que ele se repita.

· A farda modela o corpo e atrofia a mente.

· Deixe-me dizer-lhe, correndo o risco de parecer ridículo, que o verdadeiro revolucionário é guiado por grandes sentimentos de amor.

· Na verdade, se o próprio Cristo estivesse no meu caminho eu, como Nietzsche, não hesitaria em esmagá-lo como um verme.

· O verdadeiro revolucionário é guiado por grandes sentimentos de generosidade; é impossível imaginar um revolucionário autêntico sem esta qualidade.

· Que culpa tenho eu, se meu sangue é Vermelho e meu coração é de Esquerda?

· Que importa onde a morte nos irá surpreender! Que ela seja bem-vinda, desde que nosso grito de guerra seja ouvido, que uma outra mão se estenda para empunhar nossas armas e que outros homens se levantem para entoar cantos fúnebres em meio ao crepitar das metralhadoras e novos gritos de guerra e de vitória!

· A culpa de muito dos nossos intelectuais e artistas reside em seu pecado original; não são autenticamente revolucionários.

· Eu não sou o Cristo ou um filantropo, velha senhora, eu sou totalmente o contrário de um Cristo… eu luto pelas coisas em que acredito, com todas as armas à minha disposição e tento deixar o outro homem morto, de modo que eu não seja pregado numa cruz ou qualquer outro lugar.

· O ódio intransigente ao inimigo, que impulsiona o revolucionário para além das limitações naturais do ser humano e o converte em uma efetiva, seletiva e fria máquina de matar: nossos soldados têm de ser assim.

· Louco de fúria, mancharei de vermelho meu rifle estraçalhando qualquer inimigo que caia em minhas mãos! Com a morte de meus inimigos preparo meu ser para a sagrada luta, e juntar-me-ei ao proletariado triunfante com um berro bestial!

· Um revolucionário deve se tornar uma fria máquina de matar motivado pelo puro ódio. Nós temos que criar a pedagogia do Paredão!”
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Notas: 1- Tente não rir e não chorar, não sentir náuseas e vomitar, não ter urticárias e coçar, beliscar-se e acordar; se puder, em meio a tanta contradição e barbarismo (intelectual, semântico, moral e psicológico).
2- Texto publicado originalmente na Revista Bulunga


19 maio 2024

O pavio curto das “Tochas da Liberdade”

 



Jorge F. Isah

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Feministas, junto com o movimento gay, são as grandes forças revolucionárias da atualidade. Nem os sindicatos, antes os motores das convulsões sociais, estão mais em moda. Perderam força com o passar do tempo, superados por seios à mostra, defecações públicas e muito pompom e lantejoula. Não estou a generalizar, muito menos dizer que toda feminista e todo gay fazem ou defendem essas táticas de, mais do que reivindicar, buscar a convulsão, o tumulto, a sublevação da ordem e da tradição. Não é isso, que fique bem claro! Contudo, a face visível das manifestações, além da arrogância, intolerância e provocação gratuitas, não foge a esse escopo, o de substituir o debate sério por meios bárbaros e inurbanos... E o politicamente correto revela-se dia a dia, e cada vez mais, hipócrita, falso e desleal, pois, convenhamos, as mesmas exigências feitas aos antagonistas ou “inimigos” não vale para os pares e correligionários; agremiações e grupos que se manifestam, do ponto de vista da ação e do ativismo militante (sic), contrariam exatamente o que professam (ao menos em relação aos seus desafetos). Em outras palavras, o truculento, o violento é sempre o adversário, mesmo que ele nunca tenha desferido um soco, cuspe ou tapa em alguém, enquanto o “amigo” pode não somente realizar tais coisas, mas outras ainda piores, com a justificativa de “resistência” às injustiças. O que em um é condenado, no outro é absolvido. E o discurso toma ares de incongruência, desatino e absurdo, com laivos de agressividade desnecessária, seja pela histeria, pela ameaça, pela mentira, ou algum distúrbio hormonal e psíquico. A questão é de força, e não de argumentação, e ela se transforma na arma imprescindível ao sucesso.


  
Se as campanhas publicitárias, filmes, séries e novelas (pasmem! Até desenhos infantis) glamorizam a desobediência, o sexo irresponsável e desenfreado (parece uma maratona para ver quem fica com mais parceiros na reta final), o egoísmo e o pensamento linear, onde não existe lugar para debates, altercação; o monopólio dos temas e disputas se torna exclusividade, e a alienação mental nessa única ideia absorve todas as faculdades mentais do indivíduo, ao ponto dele não ser capaz de arrazoar nada além daquilo que lhe foi dito e prontamente aceito, sem questionamentos e dúvidas; na medida em que os fiascos e desgraças transmutam-se em vitórias, dominados pelo sofisma de labutar uma luta inglória e corrosiva.

Quando um grupo de mulheres saiu às ruas, no fim da década de 1920, na Quinta Avenida, em New York, o Easter Sunday Parade, em pleno domingo de Páscoa, ostentando cartazes onde os cigarros eram identificados como “tochas da liberdade”, a apelar para o direito inalienável de fumar (algo imoral na época), a fim de pôr de vez o “machismo” e o “patriarcado” em maus lençóis, a ideia era colocar homens e mulheres no mesmo pé de igualdade, ou seja, fazer da vaidade, do orgulho, uma bandeira (tenho para comigo que a vaidade/orgulho é apenas sinal mais “nobre” do fútil e presunçoso). Afinal, nada mais “empoderador” do que riscar um fósforo em público para todos verem quão “independente” pode ser a vontade mulíebre.


   
Por trás de tudo isso estava o gênio publicitário de Edward Bernays (austríaco e sobrinho de Freud que, incompreensivelmente, é desprezado pelas alas libertárias), contratado pela American Tabacoo Corporation, a fim de dobrar o consumo dos cigarros da marca. Nada melhor do que estimular as mulheres a quebrar o tabu, via luta social, e garantir-lhes o direito de consumo a algo estritamente masculino. Diga-se de passagem, as mulheres fumavam cigarros e charutos, mascavam fumo e bebiam, em reservado, em reuniões privadas, lares, etc., algo restrito e até mesmo combatido por várias ligas femininas (notem a diferença, por favor!) no decorrer da história, mas nada melhor para alavancar a demanda do que popularizar o consumo de tabaco em público.

Assim, naquele domingo de Páscoa, quando o Cristo veio para verdadeiramente libertar o homem (aos incautos, estou a falar do ser humano, no qual as mulheres estão inseridas), ironicamente o E.S.P. queria libertar as mulheres da liberdade e prendê-las ao vício. Nada mais incoerente; mas assim funciona o discurso ideológico.

Por fim, a marca “Lucky Strike” vendeu muitos milhões a mais de maços de cigarros, e as “tochas da liberdade” queimaram, mais uma vez, o paviozinho salubre de homens e mulheres.

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Nota: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga

13 maio 2024

Tribunal do Caos





Jorge F. Isah
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Li, certa vez, alhures, que durante muitos séculos havia leis para animais que cometiam crimes. Eles eram acusados formalmente, tinham direito ao advogado de defesa, a um tribunal regular com júri e todo o aparato legal. Podiam ser absolvidos ou não. Cumpriam penas de trabalhos forçados, exílio, ou eram sumariamente condenados à morte, caso não fossem abatidos antes de indiciados, para o almoço dominical ou aquela festa de noivado na vila. Isto acontecia pelo fato de se acreditar que eram seres moralmente responsáveis por seus atos. A base seria, supostamente, um versículo bíblico: “E se algum boi escornear homem ou mulher, que morra, o boi será apedrejado certamente, e a sua carne não se comerá; mas o dono do boi será absolvido.” (Êxodos, 21:28).

Ora, o versículo não endossa qualquer responsabilidade moral dos animais, mas pune, de maneira menos severa, o proprietário do animal, na forma de prejuízo financeiro. Se observarmos que a sociedade judaica àquela época era essencialmente agrícola e pecuária, e de que não eram muitas as famílias que dispunham de gado, a perda de um animal, cuja carne sequer seria comida, muito menos comercializada, era uma significativa punição ou sanção... Pesava no bolso de qualquer um. Em outras palavras, a pena era ao proprietário, que haveria de sofrer o dano financeiro, ao perder parte dos seus bens. A comprovação a esse argumento reside no verso seguinte, 29, que diz: “Mas se o boi dantes era escorneador, e o seu dono foi conhecedor disso, e não o guardou, matando homem ou mulher, o boi será apedrejado, e também o seu dono morrerá.”.

No primeiro caso, o dono do animal foi penalizado de forma proporcional a sua responsabilidade, mas ainda assim culpado do dano acarretado pelo animal, por isso, perderia o seu bem. No segundo, o grau de responsabilidade é muito maior, já que sabia dos antecedentes da besta, e mesmo assim não tomou providências capaz de impedi-la de matar alguém. Por isso, tornava-se responsável direto pelo assassínio e deveria pagar com a própria vida. Em nenhum desses pontos existe qualquer indicação bíblica sobre responsabilidade moral dos animais; a responsabilidade era, e é, sempre humana. Houve, sim, uma deturpação, uma má interpretação do texto sagrado, provavelmente a fim de eximir os donos de eventuais penas decorrentes de suas negligências (culpa) ou de incitação, ou provocação à violência (dolo). Neste caso, o proprietário assumiria o risco de matar, ao não criar meios de impedir o animal (em último caso, a “arma” ou objeto mortal) de provocá-la; o agente sempre seria o dono, e o animal o instrumento de execução. O mesmo se dá quando um motorista bêbado atropela um pedestre ou colide com outro carro. Ou o dono de cães ferozes, ao permitir que andem soltos, sem qualquer tipo de contenção.

Em 1386, um inofensivo porquinho foi condenado à forca por infanticídio. Deixou de ser assado, e fatias suculentas de bacon não deliciaram os paladares, por conta dos exageros da lei, a fim de encobrir as mutretas e artimanhas dos verdadeiros culpados. Provavelmente, estava chafurdando a lama em lugar e hora errados, quando esbarrou, por acidente, em um bebê negligenciado pelos pais. E tornou-se o “bode expiatório” da indiligência parental e da trapaça jurídica.

Hoje, milhões de bebês são sumariamente executados, mundo afora, pelo egoísmo, arrogância e barbaridade de pais, mães, legisladores e juristas. Abortos são praticados tão futilmente quanto mulheres (e alguns homens) vão à pedicure tirar cutículas. Filhos são lançados à rua, mendigando e se prostituindo, porque não têm quem os proteja e sustente. Enquanto isso, as autoridades, ong’s, associações e fundações (não me esqueci de algumas igrejas, mas isto será assunto para uma próxima vez) gastam seus recursos em propaganda e doutrinação supérflua, fomentando ainda mais a desestruturação, o caos normativo e o proselitismo social; tudo para que o controle das massas esteja cada vez mais centralizado em poucas mãos. Se ainda fossem os porcos do séc. XIV...



Sem falar no sem-número de criminosos absolvidos por tribunais, por algum erro de processo ou simplesmente a deturpação interpretativa da lei. Não raros são os casos em que as provas contra esses bandidos se avolumam até o teto de galpões e salas. Com isso, tornou-se desnecessário o bode expiatório, de alguém que assuma a culpa. Basta tão somente que o til da lei seja trocado de lugar para a avalanche de delitos ser jogada debaixo do tapete, e os réus não sejam julgados. Na verdade, eles não são absolvidos, não se tornam inocentes, são criminosos sem penas, cujas lides não vão adiante, não chegam às vias finais do juízo, por meros artifícios, gerados sabe-se lá por qual motivo, mas sempre a beneficiar o transgressor, através do “monstro” gigantescamente criado pelos “cientistas loucos” do congresso, assembleias e câmaras espalhadas pelo país e tribunais afora.

Entretanto, a mídia se tornou no mais ilustre dos tribunais. Sem precisar de toga, diploma, títulos ou indicações. Sistematicamente editores, jornalistas e redatores absolvem ou condenam publicamente esse ou aquele indivíduo segundo critérios ainda menos legais (não no sentido da legislação, mas extrajudicial, à base de conveniências e interesses de ordem pessoal ou orgânica, partidária ou ideológica). Sem generalizações, boa parte assumiu a tietagem, ao ignorar evidências e fatos sobejamente comprovados, para divagarem sobre o sexo dos anjos, a respeito de seus ícones, quase um fetiche. Para os desafetos, os fatos também nada significam, apenas o espantalho dos seus mais obscuros pesadelos; e haja reputações a se assassinar...

Se olhamos para o sec. XIV, achamos esquisito e absurdo o tribunal de animais; no futuro, alguém a olhar para o sec. XXI se deparará com algo ainda mais insólito: o incontável faz-de-contas, onde uns e outros se misturam em suas loucuras particulares e diatribes coletivas.

Quanto ao cadafalso e aquele porquinho prestes a debater-se na corda esticada, é apenas mais uma história dos diletantes e seus blindados, enquanto dizem querer paz, entre pétalas brancas de rosas soltas no ar, e os planos de guerra bem presos debaixo dos braços.
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Nota: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga 




09 maio 2024

Oscarito: O sotaque espanhol do "malandro" carioca

 



Jorge F. Isah

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Em nome do humor apelativo, vulgar e lascivo dos tempos atuais, a maioria sequer ouviu falar, quanto mais assistiu às performances histriônicas, debochadas e ingênuas (jamais inocentes, diga-se) do gênio da comédia brasileira, Oscarito. Comparado a Chaplin e Cantinflas, tinha um pouco de Harpo Marx, Danny Kaye e Stan Laurel. Segundo ele, suas maiores influências foram o tio Juan Cardona, Pablo Palitos, e o comediante Mesquitinha, que, apesar do estilo “cool”, ensinou-lhe muito do que viria a usar nos tablados. Juntamente com Mazzaropi e Grande Otelo, formou a tríade dos maiores humoristas do cinema brasileiro de todos os tempos.

Nasceu em 16/08/1906, em Málaga, Espanha, e se chamava Oscar Lorenzo Jacinto de la Inmaculada Concepción Teresa Díaz, filho de um alemão e uma portuguesa. Os pais vinham de linhagens tradicionais da arte circense, cuja origem datava-se havia mais de 400 anos, e foi no circo que Oscarito aprendeu praticamente todos os “segredos” do palco. Ator, palhaço, cantor, trapezista, músico, malabarista, comediante, entre outras coisas, aprendeu e aperfeiçoou-se nessas várias formas de ofício, sendo inclusive ótimo violinista. A família mudou-se para o Brasil quando ele tinha pouco mais de um ano de vida; por isso, ele nunca se considerou espanhol, mas um verdadeiro e típico “malandro carioca”. Naturalizou-se brasileiro em 1949.

O auge da carreira se deu nas décadas de 1930 e 1940, quando rivalizava nos cinemas com Chaplin, O Gordo e o Magro, Cantinflas e Os Três Patetas, ícones mundiais da comédia. Seus filmes atraiam multidões, e levou diversão e entretenimento por mais de 40 anos.

Começou no circo aos 5 anos, e migrou para o teatro de revista no início dos anos 1930, com a peça “Calma, Gegê” (sátira a Getúlio Vargas, que viria a se tornar seu amigo), alcançando estrondoso sucesso de público e crítica. Em 1933 excursionou em Portugal com a companhia de Jardel Jércolis, e o êxito foi imediato. A cada espetáculo, sua fama aumentava, e não chegou a surpreender o seu ingresso no cinema, onde fez sua primeira figuração em “A Voz do Carnaval”, da Cinédia, com direção de Adhemar Gonzaga e Humberto Mauro; um ano depois, em outubro, casou-se com a atriz Margot Louro, que além de esposa, tornou-se sua parceira artística. Ele fazia o cômico, ela a ingênua e, mais tarde, a esposa repressiva. Tiveram um casal de filhos, Myrian e José Carlos.

O primeiro papel de destaque, longe das figurações e rápidas aparições na tela, deu-se em 1939, como chefe da campanha publicitária a favor da banana, na paródia “Banana da Terra”, da Sonofilmes, onde o Brasil é retratado como a “ilha de Bananolândia”, com argumento de João de Barro e Mário Lago, e direção de Rui Costa. Nesse filme, consagrou-se o samba “O Que é Que a Baiana Tem?”, de Dorival Caymmi, com a interpretação característica de Carmem Miranda: efusiva e pitoresca. Foi na Atlântida que teve o seu “boom” cinematográfico, sendo o carro-chefe da companhia, e lá firmou-se a parceria “Oscarito e Grande Otelo”, imortalizada em dezenas de filmes seminais. É desse período algumas das cenas mais hilariantes e inestimáveis de Oscarito, quando, por exemplo, imita Elvis Presley, ao lado de Sonia Mamede, em “De Vento em Popa”, de 1957, e a cena incrível e memorável do espelho com Eva Todor, em “Os Dois Ladrões”, de 1960, ambas dirigidas por Carlos Manga.

Algo notável, e até certo ponto inexplicável, foi recusar-se a trabalhar em Hollywood, e rejeitar várias propostas, muitas delas intermediadas pela amiga Carmen Miranda, que era celebridade e detinha muito prestígio em terras americanas.

Em 1968 aposentou-se do cinema, mas fazia excursões pelo país, alcançando sucesso de público, prêmios, e manteve intocada a fama de “o mestre do humor”, mesmo com a concorrência de novos comediantes: Ronald Golias, Jô Soares, Agildo Ribeiro, Chico Anízio, Brandão Filho, entre outros.

Faleceu em 1970, aos 64 anos, vítima de AVC, no Rio de Janeiro, cidade que amou tanto quanto a sua carreira. Meses antes, em entrevista, disse a respeito das suas conquistas: “Eu realmente trabalhei muito. Eu dormia no estúdio para poder às 6 da manhã estar de pé, para dar tempo de tomar banho, tomar café. De uma fita para outra eu fazia teatro e, quando eu não fazia cinema, eu viajava por aí, fazendo show.”

Sobre ele, o poeta Carlos Drummond de Andrade disse:

“O cômico, um enigma. Oscarito era sério e agora faz chorar

seus amigos diletos. Se vive acaso numa estrela, está rindo

dessa combinação de contrastes secretos.”

Com ele, certamente, morreu boa parte do humor e graça espontâneos, que seriam substituídos pela megalomania ou a ambição desmedida dos “cômicos” de hoje. E assim, morreu, também, um pouco de nós.


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Nota: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga.

           

   

 


29 abril 2024

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 38: A prova da Trindade - parte 1

 




Jorge F. Isah
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Algo que os inimigos de Deus insistem em desprezar são as evidências bíblicas. Tenho por evidências o seu significado principal: aquilo que é incontestável, que todos veem ou podem ver e verificar; mas esclareço também: por inimigo de Deus reputo aquele que considera bastar à amizade ser simpatizante ou pessoa que reconhece a existência divina. Qualquer um, seja qual o seu grau de tolice, pode fazê-lo. É claro que haverá sempre os tolos excessivos em sua soberba e que acreditam em sua autonomia para negá-la. Esses são os tipicamente acometidos pela tolice extrema, um caso grave de obstinação teimosa ou obstinada teimosia que, em último caso, acreditam-se eles próprios o seu único deus. Há variações em que eles são acompanhados por outros deuses, seja a ciência, a natureza ou delírios quase patológicos em que as criaturas, numa tentativa sempre frustrada, são entronizadas no trono que não lhes pertence. Conheço pessoas que desconsideram a existência de Deus, mas não se furtam a lançar a sua fé sobre et's e duendes. Para eles, é mais fácil crer em um et com uma mente iluminada que atravessou milhares e mesmo milhões de anos-luz para nos conhecer ou viver entre nós. Talvez, por isso, canais como o Discovery ou History não se casam de produzir programas sobre as muitas visitas alienígenas à Terra, numa prova inconteste da incredulidade no verdadeiro e a crença no falso. E tudo isso para eles tem um caráter científico e historiográfico, ainda que não passem de investigações teóricas, mas que, para muitos, vão além disso e se tornam em fatos, em realidade. Portanto, não basta dizer que se ama a Deus, porque o amor, por mais nobre sentimento que seja, se for em relação ao objeto inexistente é um amor fictício e fantasioso, que significará apenas uma espécie de autoamor, de um amor que tem como fim último a si mesmo e não ao outrem. Posto que não passará de nada além de uma ideia acalentada e mantida pela própria mente que a criou. Insisto que inimigos são todos aqueles que rejeitam, em maior ou menor grau, o Deus bíblico. E nesse rol é possível enquadrar uma ampla gama de crentes que dizem conhecer o que não conhecem, entender o que não entendem ou pôr a fé em nada além de si mesmo e suas opiniões. Não há um aprofundamento e investigação honesta, sincera, na busca da verdade. Apenas o querer satisfazer-se mais rápida e prontamente, e gasta-se o restante do tempo em aperfeiçoar algo sem fundamento, ou melhor, fundamentado na incerteza. A esse o Senhor chamou-o insensato, pois ao invés de ouvir e cumprir as suas palavras, como o construtor que ergue a sua casa na rocha, ele as descumpri, como aquele que constrói a casa na areia [Mt 7.24-29].

Digo isso porque, em linhas gerais, os inimigos de Deus são reducionistas em suas mentes racionalistas. Eles se queixam de que nós, "fundamentalistas", somos ignorantes e obtusos em nossas proposições, mas esquecem-se de olhar no espelho. Pensando-se superiores e racionais, acabam por assumir a própria inferioridade e irracionalidade. No fim-das-contas são como meninos mimados de quem se tirou o pirulito. Repetem os mesmos chavões e inconsistências; para eles, o branco da luz é apenas o branco e nada mais. Mas esquecem-se de que o branco da luz é a combinação de muitas outras cores. Na verdade, eles sabem, mas fingem não saber. O mesmo se dá em relação ao Deus bíblico, eles o ignoram não porque não haja evidências, mas por não as aceitar. O não reconhecimento passa a ser uma obstinação insensata, fruto da tolice, mas essa é proveniente da soberba de não ter a quem responder, nem ter de responder. No fundo, há o interesse de não se ser responsável por si mesmo, ainda que aceitem, em menor grau, a responsabilidade social, em relação ao outro; o que, cada vez mais, vem sendo relativizado, onde a responsabilidade pessoal é transferida ao grupo ou coletivo.

Mas o que isso tudo tem a ver com a doutrina da Triunidade?, perguntaria alguém.

O fato é que os antitrinitarianos são o exemplo de mentalidade reducionista, fruto do racionalismo. Assim como o ateísmo rejeita a Deus, e o homem, em sua condição de criatura divina, postula uma fórmula estupidificante e antinatural como o materialismo, os antitrinitarianos rejeitam a revelação do Deus Triuno para se embrenharem num simplismo bem ao estilo pagão do unitarismo. O mesmo problema acontece quando nos acusam de triteísmo, temos o reducionismo novamente. Quando dizem que o termo "Trindade" não se encontra na Bíblia, olha ele lá novamente. E se atentarmos para toda a argumentação deles, por mais elaborada que seja, por mais sofisticada que pareça, sempre estará evidente o reducionismo e o simplismo e, invariavelmente, uma boa dose de desonestidade intelectual [e muitos sequer imaginam-se assim, o que é pior]. Mas para não ficar apenas nas palavras vãs, como alguns podem sugestionar, vamos ao que interessa, a irrefutabilidade bíblica da Triunidade.

Não vou repetir aqui o que já disse outras vezes, especialmente neste estudo sobre o ser de Deus, que é o capítulo dois da CFB de 1689, mas analisar biblicamente a doutrina da Trinunidade. Pois bem, dias desses, assisti ao vídeo do pr. Paulo Romeiro no site Internautas Cristãos, do amigo Incendiário, como uma prova incontestável da doutrina da Trindade. À primeira vista, fiquei realmente embasbacado com a prova. Primeiro, assista o vídeo, e depois continuamos, na próxima aula.

 
   Pr. Paulo Romeiro fala a Trindade em Isaías 6:
 


Notas: 1- O áudio desta aula trata dos seguintes assuntos não abordados no texto: Revelação progressiva; a Trindade no Antigo Testamento [os nomes de Deus no plural, o anjo do Senhor, etc] e no Novo Testamento [A fórmula batismal, a bênção apostólica, etc], entre outros.
2- Aula realizada na EBD do Tabernáculo Batista Bíblico 
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24 abril 2024

Os Mímicos - V. S. Naipaul

 






Jorge F. Isah
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Muitas vezes, pergunto-me o porquê de ler livros acadêmicos, exclusivamente políticos ou de ciências políticas, a esmerilhar algo um tanto tenebroso, outro tanto ilusório e quase nada ou nenhuma esperança real e factível, cheias de silogismos e teorias impraticáveis ou, se colocadas em prática, aniquilaria qualquer possibilidade de dias melhores e uma sociedade, digamos, menos capenga. Ah, alguém dirá: que raios está este escrevinhador a dizer com esta linguagem amorfa, ingênua e nada formal?... A bem da verdade, estou a dizer que a política, tal qual formulada pelos estudiosos, é o mesmo que acender velas para defunto.

Aprendi mais sobre ideologias e políticas, de maneira geral e, na prática, lendo Tolstoi, Dostoiévski, Mann e Naipaul do que em qualquer manual ou tratado. “Os Mímicos”, assim como “Uma Curva no Rio”, descreve em pormenores o desastre ou catástrofe de governos e suas plataformas, de revolucionários e seus delírios, assim como a realidade os mostra, sem os floreios, malícia e despudor de ideólogos e pensadores artificiais.

Em suas mais de trezentas páginas, o romance aborda aspectos da vida do personagem principal, Ralph Singh, nativo na ilha fictícia Isabella, no Caribe, de ascendência indiana, a interagir com descendentes africanos e ingleses, as principais etnias da região. É uma ex-colônia britânica, pobre, miserável, sem DNA cultural, afeita à corrupção e embuste governamental. Ralph escreve uma biografia de sua vida, a começar pelo momento em que parte a Londres, para estudar, casa-se com uma inglesa (Sandra), retorna à ilha, e exila-se, por fim, na capital bretã.

É um emaranhado diastásico, onde o estranhamento e mal-estar parecem aflorar nas escolhas, decisões e aptidões das personagens. Quase sempre ninguém se configura convicto ou certo do que fazer. Essencialmente, a humanidade é confusa, a oscilar entre o sim e o não como se estivesse a jogar dados; mas, especialmente nas figuras criadas ou copiadas de Naipaul, esta característica afirma-se radical.

Singh é um homem, depois um menino, novamente homem e, por fim, às portas da velhice, sem rumo, sem lugar, sem motivação. As coisas acontecem instintivamente: o sexo fortuito, a beleza apoderada, padrões duplicados... como um cão, incapaz de distinguir o certo e o errado (há controvérsias, pois muitos deles parecem mais racionais e lógicos que seus donos), ele é um tanto ingênuo e simplório em suas volições. Está disposto a construir-se a partir de estímulos, influxos, sem a devida consciência do que seja e o porquê de fazê-lo; outra vez, a indiferença da vontade, aleatória, a medir-se sem parâmetro, incondicional e espontânea, porém, infestada de artificialismo. E provém do exterior, a tomar-lhe a alma, a força contra a qual não se pode ou não se quer disputar. Já, no início, pode-se notar o teor de parte da narrativa: “Ainda não conhecia as normas sociais de Londres, nem conhecia as fisionomias e cútis das terras setentrionais; assim, o Sr. Shylock me parecia um homem distinto, como um advogado, empresário ou político. Ele tinha o hábito de pegar no lóbulo da orelha e inclinar a cabeça quando escutava alguém. Achei aquele gesto atraente e o imitei”. Não sem razão, o título é apropriado, em sua simplicidade, mas também na verdade avassaladora dos homens, e Singh é um deles, sem identidade, a não ser a do grupo, coletiva. Óbvia a influência social, afinal, ao “homo sapiens” é natural o ajuntamento, participação, conluios, seja para o bem ou mal, a união de personalidades na organização e disposição para fins comuns. Em proporções muito menores, Naipaul vislumbrava não apenas os gestos e ações sem palavras, mas o embuste e a farsa contidos nos discursos e atos, algo rotineiro e habitual de onde não se podia fugir ou desvencilhar-se.

Desde a infância, era tomado pelos eventos, pelas pessoas, sem conseguir guiar-se, deslocar aonde não fosse levado, mesmo que não cogitasse ir, e ir era tão somente não ficar parado, a necessidade de não refletir e, então, caso o fizesse, tomar as rédeas da própria vida. Algo semelhante aconteceu ao pai, ao ver-se repentinamente alçado ao status de líder rebelde por alguns, salvador da pátria para outros, e lunático ao ver da maioria. Sem entender as razões a levá-lo a abandonar a família (não havia força suficiente para tanto a não ser medo e atonia), criar uma espécie de “culto”, às vezes confundido com movimentação política, outras vezes apenas com seita ou delírio coletivo; constituir nova família e cortar os laços em definitivo.

Aparentando ser apenas um livro político, a contar as relações entre Império e Colônia, entre reinos e súditos, entre ricos e pobres, e os escalões burocráticos dos “terceiro mundistas”, com as mais prosaicas e escancaradas “mutretas”, dissimulações, conchavos e traições, Naipaul está muito mais a falar da inevitabilidade da vida, construída a partir do acaso, das indecisões, ou simplesmente das escolhas irremediáveis mas também descabidas, numa espécie de fatalismo social e, por que não, existencial. Como se o caos gerasse apenas caos e dele não houvesse formas de escapulir; como um buraco negro, se é atraído para uma queda vertiginosa e sem fim. A despeito do sucesso aparente, da fortuna evidente, da ostentação desmedida, ele costurava a teia do fracasso, e nela se viu capturado... quanto mais se movia, mais se enrodilhava: “Eu tentava construir uma personalidade para mim mesmo. Era algo que eu já tinha tentado fazer mais de uma vez, e eu esperava ver a resposta nos olhos dos outros. Agora, no entanto, não sabia mais quem eu era; a ambição tornou-se confusa e depois murchou”.

O tempo ia e vinha, independente das conquistas sexuais, financeiras, profissionais, políticas, tudo se voltava, novamente, ao ponto de partida. Por mais que se esforçasse, a resposta sempre parecia ser determinada pelo absurdo, o sem sentido, o ceticismo e o relativismo das verdades e valores tradicionais. Nada funcionou, nada funciona, nada funcionará; não existe saída além da barreira intransponível ao final do beco. A esperança não passa de conquistas, do sucesso em mantê-las o máximo possível, pois o fim é a única mola absoluta... sempre a impulsionar ao vazio, ao nada. Este também é absoluto, para onde convergem todas as demais coisas relativas. A fuga do caos, e a caça à ordem sempre o fazia retornar à desordem.

No fim das contas, resta apenas a solidão, aquela máxima popular: nasce-se sozinho, morre-se sozinho. O passado se afasta, confiscado pelas próprias lembranças; o presente vive dos restos de imagens (o que sobra ao biógrafo?), e a frouxidão, a escassez no iminente futuro. Singh não tinha nada e acabou por perder o que tinha. Não existe amargura, arrependimento, redenção, tão somente o homem a andar na roda como o rato, enquanto a exaustão não chega e os favores se dissolvem. Até quando se repetem, repetem, em sucessão de equívocos e indefinições?... “Mas certas sensações saltam por cima dos anos. Foi justamente esse tipo de inquietação que senti quando comecei a escrever este livro. Naquele momento, eu não tinha medo algum de que desabasse o hotel ou o bar, os dois únicos lugares que eu frequentava – e ainda frequento -, pude identificar, no entanto, com repulsa, aquela sensação de estar preso, ameaçado por perigos externos, aquela dor de sentir que todo um mundo foi destruído e anulado. Talvez fosse consequência do esforço de escrever”.

Por mais que ele se sentisse liberto das amarras do passado, da colônia e das tramoias políticas, dos surtos psicóticos socialistas, da vida panfletária no último terço do livro, Singh tinha por certo a vida ser algo propositalmente ilusório, espúrio. Não existe saída a não ser continuar esse “modus vivendi”, e mesmo nas batalhas encontrar a paz apócrifa, ilegítima. Qualquer outra prerrogativa era inadmissível; só existe liberdade dentro do ciclo, ao qual não se quer cair, mas é melhor se acostumar à queda.

“Ficava a me perguntar o que aconteceria se, de repente, um belo dia, de minha mesa atrás da coluna, eu visse Sandra entrar sozinha na sala. Sei perfeitamente o que faria naquela época; a pergunta não passava da manifestação de um desejo. Agora, porém, constato que estou mais próximo de minha posição original. Mais uma vez encaro meu casamento como um episódio entre parênteses; todas as emoções por ele provocadas me parecem profundamente fraudulentas. Assim, a atividade de escrever, apesar das distorções iniciais, termina por esclarecer, e chega mesmo a ser um processo de vida”.

E a vida parece, cada vez mais, o esconderijo da morte.

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Avaliação: (***)

Título: Os Mímicos

Autor: V. S. Naipaul

Editora: Cia. Das Letras

Páginas: 320

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Notas: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga