Jorge F. Isah
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Li, certa vez, alhures, que durante muitos séculos havia leis para animais que cometiam crimes. Eles eram acusados formalmente, tinham direito ao advogado de defesa, a um tribunal regular com júri e todo o aparato legal. Podiam ser absolvidos ou não. Cumpriam penas de trabalhos forçados, exílio, ou eram sumariamente condenados à morte, caso não fossem abatidos antes de indiciados, para o almoço dominical ou aquela festa de noivado na vila. Isto acontecia pelo fato de se acreditar que eram seres moralmente responsáveis por seus atos. A base seria, supostamente, um versículo bíblico: “E se algum boi escornear homem ou mulher, que morra, o boi será apedrejado certamente, e a sua carne não se comerá; mas o dono do boi será absolvido.” (Êxodos, 21:28).
Ora, o versículo não endossa qualquer responsabilidade moral dos animais, mas pune, de maneira menos severa, o proprietário do animal, na forma de prejuízo financeiro. Se observarmos que a sociedade judaica àquela época era essencialmente agrícola e pecuária, e de que não eram muitas as famílias que dispunham de gado, a perda de um animal, cuja carne sequer seria comida, muito menos comercializada, era uma significativa punição ou sanção... Pesava no bolso de qualquer um. Em outras palavras, a pena era ao proprietário, que haveria de sofrer o dano financeiro, ao perder parte dos seus bens. A comprovação a esse argumento reside no verso seguinte, 29, que diz: “Mas se o boi dantes era escorneador, e o seu dono foi conhecedor disso, e não o guardou, matando homem ou mulher, o boi será apedrejado, e também o seu dono morrerá.”.
No primeiro caso, o dono do animal foi penalizado de forma proporcional a sua responsabilidade, mas ainda assim culpado do dano acarretado pelo animal, por isso, perderia o seu bem. No segundo, o grau de responsabilidade é muito maior, já que sabia dos antecedentes da besta, e mesmo assim não tomou providências capaz de impedi-la de matar alguém. Por isso, tornava-se responsável direto pelo assassínio e deveria pagar com a própria vida. Em nenhum desses pontos existe qualquer indicação bíblica sobre responsabilidade moral dos animais; a responsabilidade era, e é, sempre humana. Houve, sim, uma deturpação, uma má interpretação do texto sagrado, provavelmente a fim de eximir os donos de eventuais penas decorrentes de suas negligências (culpa) ou de incitação, ou provocação à violência (dolo). Neste caso, o proprietário assumiria o risco de matar, ao não criar meios de impedir o animal (em último caso, a “arma” ou objeto mortal) de provocá-la; o agente sempre seria o dono, e o animal o instrumento de execução. O mesmo se dá quando um motorista bêbado atropela um pedestre ou colide com outro carro. Ou o dono de cães ferozes, ao permitir que andem soltos, sem qualquer tipo de contenção.
Em 1386, um inofensivo porquinho foi condenado à forca por infanticídio. Deixou de ser assado, e fatias suculentas de bacon não deliciaram os paladares, por conta dos exageros da lei, a fim de encobrir as mutretas e artimanhas dos verdadeiros culpados. Provavelmente, estava chafurdando a lama em lugar e hora errados, quando esbarrou, por acidente, em um bebê negligenciado pelos pais. E tornou-se o “bode expiatório” da indiligência parental e da trapaça jurídica.
Hoje, milhões de bebês são sumariamente executados, mundo afora, pelo egoísmo, arrogância e barbaridade de pais, mães, legisladores e juristas. Abortos são praticados tão futilmente quanto mulheres (e alguns homens) vão à pedicure tirar cutículas. Filhos são lançados à rua, mendigando e se prostituindo, porque não têm quem os proteja e sustente. Enquanto isso, as autoridades, ong’s, associações e fundações (não me esqueci de algumas igrejas, mas isto será assunto para uma próxima vez) gastam seus recursos em propaganda e doutrinação supérflua, fomentando ainda mais a desestruturação, o caos normativo e o proselitismo social; tudo para que o controle das massas esteja cada vez mais centralizado em poucas mãos. Se ainda fossem os porcos do séc. XIV...
Sem falar no sem-número de criminosos absolvidos por tribunais, por algum erro de processo ou simplesmente a deturpação interpretativa da lei. Não raros são os casos em que as provas contra esses bandidos se avolumam até o teto de galpões e salas. Com isso, tornou-se desnecessário o bode expiatório, de alguém que assuma a culpa. Basta tão somente que o til da lei seja trocado de lugar para a avalanche de delitos ser jogada debaixo do tapete, e os réus não sejam julgados. Na verdade, eles não são absolvidos, não se tornam inocentes, são criminosos sem penas, cujas lides não vão adiante, não chegam às vias finais do juízo, por meros artifícios, gerados sabe-se lá por qual motivo, mas sempre a beneficiar o transgressor, através do “monstro” gigantescamente criado pelos “cientistas loucos” do congresso, assembleias e câmaras espalhadas pelo país e tribunais afora.
Entretanto, a mídia se tornou no mais ilustre dos tribunais. Sem precisar de toga, diploma, títulos ou indicações. Sistematicamente editores, jornalistas e redatores absolvem ou condenam publicamente esse ou aquele indivíduo segundo critérios ainda menos legais (não no sentido da legislação, mas extrajudicial, à base de conveniências e interesses de ordem pessoal ou orgânica, partidária ou ideológica). Sem generalizações, boa parte assumiu a tietagem, ao ignorar evidências e fatos sobejamente comprovados, para divagarem sobre o sexo dos anjos, a respeito de seus ícones, quase um fetiche. Para os desafetos, os fatos também nada significam, apenas o espantalho dos seus mais obscuros pesadelos; e haja reputações a se assassinar...
Se olhamos para o sec. XIV, achamos esquisito e absurdo o tribunal de animais; no futuro, alguém a olhar para o sec. XXI se deparará com algo ainda mais insólito: o incontável faz-de-contas, onde uns e outros se misturam em suas loucuras particulares e diatribes coletivas.
Quanto ao cadafalso e aquele porquinho prestes a debater-se na corda esticada, é apenas mais uma história dos diletantes e seus blindados, enquanto dizem querer paz, entre pétalas brancas de rosas soltas no ar, e os planos de guerra bem presos debaixo dos braços.
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Nota: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga
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