Jorge F. Isah
Este é um
livro que requer muito cuidado do leitor, que pode se perder em meio a uma
narrativa não linear, cheia de digressões, mudanças de ambiente, atmosfera e
protagonismo. Não é um livro fácil, pelo contrário, especialmente em sua metade
inicial, quando ainda se tateia o texto em busca de contato com seus elementos
e fundamentos. O autor se utiliza também de longos trechos sem pontuação,
frases truncadas, linhas contínuas, ajudando a criar uma imagem “hermética” e
complexa da obra.
A história se
divide em quatro partes, cada uma delas contada por um dos personagens
centrais, exceção à última, cujo narrador é uma terceira pessoa, indeterminada.
A primeira parte é narrada por Benjamim. A segunda, Quentin. A terceira, Jason.
E a quarta, que trata diretamente da personagem Dilsey, por um desconhecido.
Basicamente,
trata-se de uma família decadente sulista, que perdeu os seus dias de glória,
em que controlava a região; e se vê exaurir financeira, moral e
espiritualmente. Em meio às tradições e as mudanças advindas do novo século
(XX), a maioria está despreparada para enfrentar as contingências e surpresas em
que os novos tempos as arrastam.
Ganância,
sexo, filhos ilegítimos, cobiça, incesto, furto, parecem, de alguma maneira,
fazer dos “Compsons” o retrato de uma sociedade que caminha arrastada pelas
correntes e o peso do passado. O mal e o
pecado apresentam-se definitivamente dispostos a conter qualquer resistência;
nem mesmo as eventuais "aparências", a hipocrisia arraigada na alma
de alguns, torna-se o desejo corrompido, doente e frágil, capaz de destruir e
amaldiçoar as relações e indivíduos.
Há quem veja
apenas uma sociedade altamente religiosa, puritana, inquisidora, retrógada a
aniquilar vidas, o que é por demais reducionista. Contudo, seria tão somente a
sociedade a fazê-lo, ou seriam consequências das escolhas pessoais? A rebelião
da alma em êxtase, o relacionamento mecanicista e formal com Deus, a busca do
amor no afastamento do verdadeiro amor, como se o homem, por si só, pudesse, ao
exemplo de Adão, ser autossuficiente em si mesmo, desprezar o Bem, e sair
incólume.
No fundo, o
mal tem como premissa a negação não somente do bem, mas a origem do bem,
entregando-se ao ardor da carne, leviana e obstinadamente.
Alguém poderá
dizer que estou a replicar os erros que Faulkner aponta; mas, entrementes, ele
está a desnudar o desejo, seja ele qual for, irresponsável em não reconhecer a
sua legitimidade no amor. Sem este, qualquer desejo, por mais nobre ou elevado
seja, é como o sino que não dobra ou o fogo que não aquece...
E a liberdade,
tão propalada e banalizada nas bocas e mentes, surge como apenas outra forma de
o homem descer às profundezas do calabouço não desejado, mas impossível de se safar,
porque a luz que se acredita ver, está obliterada pelas trevas que se teima em
não ver.
Mas não
somente a perfídia destilam as páginas; existe bondade, uma bondade ingênua, um
tanto perigosa, as vezes confusa, de Benjamim, de Dilsey, de Caroline (a
matriarca). E deles são os maiores sacrifícios, a verdadeira entrega, e aquele clamor
à paz, ainda que não seja vislumbrada, pela proximidade das querelas e litígios,
a assomá-los por todos os lados.
“O Som e a
Fúria”, como toda a obra de Faulkner, é um livro imprescindível, daqueles
clássicos que o tempo não apagará. E nele encontraremos o homem, sobretudo o
homem que amamos e odiamos.
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Avaliação: (****)
Título: O Som e a Fúria
Autor: William Faulkner
Páginas: 320
Editora: Cosac & Naify
Sinopse: "Este romance, finalizado em 1929, marca o início da chamada "segunda fase" da carreira de William Faulkner (1897-1962) e é considerado sua obra mais importante. Vinte anos depois, o autor se consagraria definitivamente, ao receber o Prêmio Nobel de Literatura. O ambiente da escritura de Faulkner é o sul dos Estados Unidos, escravocrata e derrotado na Guerra da Secessão. O som e a fúria narra a agonia de uma família da velha aristocracia sulista, os Compson, entre os dias 2 de julho de 1910 e 8 de abril de 1928. Um apêndice, acrescentado pelo escritor em 1946, fornece outras informações sobre a história dos Compson entre 1699 e 1945. Assim, é possível afirmar que o grande personagem desta obra-prima é o tempo, o que lhe confere interesse universal."