12 junho 2023

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 7: Interpretação da Escritura







Jorge F. Isah

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9. A regra infalível de interpretação das Escrituras é a própria Escritura. Portanto, sempre que houver dúvida quanto ao verdadeiro e pleno sentido de qualquer passagem (sentido este que não é múltiplo, mas um único), essa passagem deve ser examinada em confrontação com outras passagens, que falem mais claramente.20
20 II Pedro 1:20-21; Atos 15:15-16
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Primeiro, definamos o significado de interpretar, cuja origem vem do latim "interpretari", o qual quer dizer aclarar, explicar ou dar o sentido a algo, no nosso caso, ao texto bíblico. Então, de certa forma, todos nós somos interpretes, aqueles que, através da leitura do texto sagrado, apreenderão o seu significado, a sua mensagem. Como já foi dito, temos de ter o cuidado de não reescrever o texto, dando-lhe um sentido que Deus não quis dar. Isso acontece comumente por causa das nossas limitações, mas ainda mais habitualmente [o que não quer dizer que seja uma prática normal, correta] porque queremos que o texto concorde com o que pensamos, com o que cremos. A ideia de que somos "livres-interpretes" é falsa, pois o texto não pode ter uma significação pessoal, como Pedro nos diz: "Sabemos primeiramente isto: que nenhuma profecia da Escritura é de particular interpretação" [2Pe 1.20].

Alguém poderá dizer que o apóstolo se refere apenas às profecias, mas o fato é que as profecias são relatos, revelações de Deus ao homem, o que inclui, ao meu ver, todo o escopo da Bíblia, ainda que particularmente nos atentemos ao seu caráter de prever acontecimentos futuros. Quando a Bíblia diz: "A alma que pecar, essa morrerá" [Ez 18.20], temos um princípio, o de que o pecado levará inevitavelmente à morte, e uma profecia, a de que os pecadores morrerão [numa afirmação para o tempo futuro, para aqueles que ainda viriam, sem se esquecer de que ela já se realizara também no passado]. Então, profecia [lat prophetia] significa igualmente anunciar e interpretar a vontade e os propósitos divinos; profetizar é anunciar o Evangelho, o que todos os cristãos são chamados a fazer, logo, todos somos profetas. 

O cuidado e zelo ao nos dirigirmos ao texto bíblico está ligado ao temor de preservá-lo em nossa mente e coração da forma como Deus nos entregou. Como já disse, todos temos acesso à Escritura, mas com a responsabilidade e vigilância para não colocar aquilo que ela não diz, nem tirar o que ela diz. Nós somos os seus guardiões secundários, pois Deus é o seu guardião principal e, por ele, ela se manterá intacta e perfeita em sua missão de nos revelar fiel e verdadeiramente a sua mensagem. O que não nos exime da vigília contínua em resguardá-la inalterada, incorrompida. De forma que a Bíblia é autossuficiente em si mesma, sem depender de nada ou ninguém além do seu autor, o Espírito; e será sempre ele quem guiará os leitores ao correto entendimento e interpretação da verdade. Mas, para isso, é necessário que o leitor seja regenerado, sua mente transformada, pois há uma venda que cega os olhos espirituais do homem natural, e assim a interpretação correta torna-se impossível, e a sua compreensão inatingível, sendo essencial que ela seja retirada, e isso somente acontecerá pela obra e ação direta do Espírito Santo, dando o novo-nascimento, sem o qual ninguém poderá ver o reino dos céus [1Co 2.14; 2Co 3.14-15].

Creio que este ponto esteja bastante claro, e foi afirmado e reafirmado desde a primeira aula: a Bíblia é autointerpretativa, ela se explica a si mesma, e, para tanto, ela deve ser estudada, e nela devemos meditar para que encontremos a resposta para as eventuais dificuldades que examinamos. Mas nada disso será possível ao homem natural, pois tem os olhos cegados para a verdade. Somente o Espírito Santo pode abrir os olhos ao "morto" e trazer-lhe à vida, ao ponto de, somente assim, ele ser capaz de compreender a mensagem divina. o que nos torna ainda mais responsáveis diante de Deus, pelo dever de clamar e suplicar que ele nos dê a capacidade de entendimento constante, a capacidade de, iluminados pelo Espírito, crescer na compreensão da Escritura. 

Com isso, o que se quer dizer que nem as ciências humanas, nem a intuição espiritual ou novas profecias, nem a tradição, ou decisões eclesiásticas, podem ser o ponto pelo qual determinado texto venha a ser clarificado e interpretado. Esse é um princípio definido sabiamente pela C.F.B., de maneira que ninguém está autorizado a explicar o sentido de determinada passagem com base em outros fatores que não seja o próprio texto bíblico; de maneira que ela dará um ensino geral e uniforme, não podendo contradizer a si mesma, pois ela é uma unidade harmônica e coesa.

Não estou excluindo absolutamente o conhecimento humano quanto aos métodos de ensino e aprendizado das línguas originais ou de hermenêutica [a palavra origina-se do grego "hermēneuein" que significa interpretar, esclarecer, e traduzir. É o ramo da filosofia que estuda a interpretação de textos, ou melhor, através dela determinado texto é levado à compreensão], que podem auxiliar no entendimento e compreensão do texto bíblico. 

A questão então passa a ser: qual a forma correta de interpretação do texto sagrado?

Muitos alegam, como Orígenes, um dos pais da igreja de Alexandria, que antes de trazer um sentido literal para o texto bíblico devemos "espiritualizá-lo", pois este é o seu objetivo primário. Em outras palavras, ele quis dizer que o sentido literal era coisa para neófitos, iniciantes, e que o sentido espiritual ou alegórico era para os maduros na fé[1]

A palavra alegoria origina-se do grego "allegoría", e significa "dizer o outro", que é o mesmo que dar outro sentido ao sentindo literal, dizer algo diferente do sentido literal. Dá-nos a ideia de que a verdade está alegoricamente oculta, e de que entendê-la literalmente, na superfície, seria uma forma "inferior" de se aproximar de Deus. Em outras palavras, o método alegórico afirma não haver o ensino direto na Escritura, mas formas subliminares e subentendidas somente perceptíveis por aqueles que sejam superiores espiritualmente para buscá-las e encontrá-las. O que acontece é a distorção e corrupção da verdade, e uma presunção que torna o interprete em um analfabeto, incapaz de ler no texto a mensagem real e verdadeira de Deus. 

Infelizmente este método antigo de interpretação está mais vivo hoje do que esteve à época de Orígines. Muitos pastores e líderes cristãos se espelham nesse ensino para fazerem-se mais espirituais aos olhos do seu rebanho. Com isso eles ganham autoridade e a capacidade de manipular o texto bíblico ao seu bel-prazer, conforme os seus interesses imediatos, revelando o pensamento e a mente do homem ao invés do pensamento e a mente do Autor, o Espírito Santo. 

Um mesmo objeto, por exemplo, a água, pode significar coisas diferentes para intérpretes diferentes. O dilúvio, pelo qual o mundo sucumbiu pela água, poderia significar coisas díspares como a destruição do mundo, o julgamento de Deus sobre a humanidade, porque "a maldade do homem se multiplicara sobre a terra e que toda a imaginação dos pensamentos de seu coração era só má continuamente" [Gn 6.5]; ou o batismo regenerador, através do qual a água tem poderes de efetivamente apagar e limpar o homem dos seus pecados. A arca de Noé, em outro exemplo, pode significar dois eventos: para Agostinho [que as vezes tinha rompantes alegoristas] as suas medidas eram idênticas às medidas do corpo humano, simbolizando a Igreja, o Corpo de Cristo. Para Hipólito de Roma, a mesma arca significava o Cristo, o Salvador que haveria de vir.

Há também uma sensível diferença entre as parábolas de Cristo e a alegorização. Uma coisa é o Senhor utilizar-se de analogias e figuras de linguagem para ensinar seus discípulos a verdade. Outra coisa é utilizar-se do método de alegorização para dar um sentido irreal [e mesmo vários sentidos irreais] a tudo que é real no texto. A Bíblia se utiliza de figuras, tipos e alegorias, como maneira de, didaticamente, transmitir e ensinar a verdade, algo real. Vejamos alguns exemplos:

a) Rm 5.14: "No entanto, a morte reinou desde Adão até Moisés, até sobre aqueles que não tinham pecado à semelhança da transgressão de Adão, o qual é a figura daquele que havia de vir" - Adão é um tipo de Jesus, demonstrando que o nosso Senhor e Salvador tem também as características humanas de Adão, a exceção da natureza pecaminosa [Assim como Moisés é tipo do Senhor, como o libertador do povo de Deus];

b) 1Co 10.1-6: "... E estas coisas foram-nos feitas em figura, para que não cobicemos as coisas más, como eles cobiçaram" - Fatos históricos, acontecimentos, servem-nos de figuras, de representação, exemplos que devemos seguir, e muitos que devemos evitar.

c) Gl 4.21-26: "... O que se entende por alegoria; porque estas são as duas alianças; uma, do monte Sinai, gerando filhos para a servidão, que é Agar..." - Paulo, inspirado pelo Espírito, através dos personagens históricos, Sara e Hagar, alegoriza as duas alianças.

O fato da Bíblia se utilizar desses elementos com o objetivo de ilustrar algumas verdades, respeitando-se o texto, o contexto e a intenção do autor, não nos dá o direito de considerar que toda a verdade será compreendida a partir da alegorização, no abandono da interpretação literal. Isso seria alterar e corromper o sentido que o autor quis dar ao texto, fazendo-o dizer o que ele não disse. Por isso, há a necessidade de se utilizar sempre na leitura da Escritura o método gramático-histórico, a busca do sentido literal, observando-se as regras gramaticais e o período histórico no qual foi escrito. Em outras palavras, a melhor forma de se ler o texto bíblico é ater-se ao seu sentido simples e evidente, a fim de não se cair na armadilha da alegorização, que não passa de uma forma pretensamente superior e espiritual de interpretação, mas que revela pouco ou nenhuma espiritualidade; revelando não o Espírito da verdade, mas o espírito do erro [1Jo 4.6]

Portanto, quando nos aproximarmos da Escritura devemos fazê-lo em busca da verdade, pois somente ela nos interessa, ou seja, ouvir, compreender a voz de Deus, para assim conhecer a sua vontade, obedecê-lo e servi-lo para a sua honra e glória, e para a nossa edificação e santificação. De forma que não nos interessa conformá-la ao nosso pensamento, mas ter o nosso pensamento conformado a ela, sujeitando-nos ao sábio e perfeito conselho divino. 

Nota: [1] História da Interpretação Cristã da Bíblia, Augustus Nicodemus, pg. 3 - Monergismo 
[2] Resumo da aula realizada na E.B.D. do Tabernáculo Batista Bíblico em 05.11.2011



31 maio 2023

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 6: Existem Traduções Fiéis?










Jorge F. Isah




PEQUENO RESUMO DAS AULAS ANTERIORES

Vimos nas aulas anteriores que Deus inspirou homens a escreverem a sua palavra, e de que esta palavra foi preservada por Deus através dos mesmos homens que a copiaram fielmente, e de que as cópias fiéis são as provenientes do Texto Majoritário.

Porém, durante anos, Satanás e seus servos buscaram desacreditar a Escritura, de forma que muitos tentaram "reescrever" a palavra, adulterando-a, corrompendo-a, com o objetivo de levar incautos ao erro e confusão, afastando-os do conhecimento de Deus e da sua vontade. Para que isso acontecesse, foram produzidas cópias espúrias [texto eclético] que, lançadas na igreja, não obtiveram crédito nem reconhecimento, pelo contrário, foram rejeitadas exatamente por sua infidelidade ao texto original. 

Aprendemos também que essas cópias corrompidas ficaram, por muitos e muitos séculos, soterradas no ostracismo e no esquecimento, proscritas às latas de lixo e gavetas empoeiradas até se desfazerem ou serem queimadas. Até que, no séc. XIX, ganharam o status de "melhores textos" ou os textos mais próximos do original, mesmo que existissem tantas discordâncias e divergências entre as poucas cópias disponíveis que tornassem ininteligível a mensagem escriturística. E quando comparadas ao texto padrão [Majoritário], utilizado pela Igreja no decorrer dos séculos, e onde encontramos maciçamente a maioria das cópias existentes, as diferenças ainda são maiores. O que o torna em um "Frankestein", um monstrengo que somente o orgulho e prepotência intelectual do homem pode reconhecer como válido e superior.

As cópias fiéis aos autógrafos foram transcritas em hebraico, aramaíco e grego, as línguas em que originalmente foram escritas por homens inspirados por Deus. Contudo, Deus quis que sua palavra fosse conhecida em todas as nações e por todos os povos [e foi o que o Senhor ordenou: "Portanto ide, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; Ensinando-os a guardar todas as coisas que eu vos tenho mandado (Mt 28.19-20)]; então, como fazer com aqueles que não conhecem as línguas originais?

É aqui que entram as traduções, através das quais todos os homens podem ter acesso à mensagem evangelística da mesma forma que os leitores das línguas originais. 

Houve traduções antigas do AT, como os Targuns, que eram paráfrases, uma tradução livre e explicativa da Escritura em aramaico, dialeto utilizado pelo povo judeu depois do exílio babilônico.

Já citamos também a Septuaginta, que foi a tradução do AT para o grego, língua dominante no mundo conhecido da época, por volta do III ou II séc antes de Cristo; e a Vulgata, tradução para o latim dos textos em hebraico, aramaico e grego, por volta do séc IV d.c.

Mas alguém pode dizer: é possível que termos pensados e escritos originalmente em hebraico possam ter um similar para todos os casos, por exemplo, em português?

A resposta é: o método de tradução implicará na fidelidade ou infidelidade da tradução, de forma que não é a linguagem o entrave para se receber a mensagem divina, mas a forma como o tradutor se aproximará dele, e a apresentará no texto traduzido.



MÉTODO TRADICIONAL [LITERAL] 
X MÉTODO MODERNO [EQUIVALÊNCIA DINÂMICA]

Sem entrar nas questões técnicas, que não são o objetivo desta aula, podemos dizer que o método determinará se uma tradução é fiel ou não ao original. 

Lembremo-nos do que já foi dito: os copistas do Texto Majoritário preocupavam-se na transcrição literal das palavras, de forma que pudessem reproduzir fielmente a mensagem que Deus havia entregue aos autores humanos. Por séculos e séculos, esta foi a maneira utilizado na transcrição dos originais para as cópias; o temor e a reverência com a palavra estavam refletidos no rigor em que se compunha o trabalho dos copistas, de forma que havia o mínimo de intervenção humana no ofício; apenas o necessário para se ter uma cópia com a mesma qualidade e fidelidade do original.

As traduções, até o séc. XIX [a palavra tradução vem do latim traductione, e quer dizer carregar através; tem o significado de translação ou transporte de um objeto de um lugar (uma língua) para o outro sem mudar suas características quer adicionando ou tirando. É o ato de transladar palavras, frases ou obras escritas de uma língua para outra], seguiram também esse mesmo princípio metodológico, de maneira que o tradutor intervinha no texto apenas o necessário para que a mesma mensagem do original fosse transportada para a tradução. Sempre se buscava uma tradução literal, e quando isso não era possível [o fato de haver palavras em uma língua que não tenha similar em outra] tinha-se o cuidado de anotar na margem da página o que fora modificado. Como em nossa tradução Almeida Corrigida e Fiel em que as palavras acrescentadas encontram-se em itálico, as quais foram necessárias para se dar o sentido ao texto. Na verdade, as palavras em itálico estão implícitas, subentendidas no texto original, de forma que não incluí-las tornaria o texto gramaticalmente sem sentido ou, no mínimo, estranho. 

Vejam bem, João Ferreira de Almeida teve o cuidado de, na sua tradução, deixar claro que aquelas palavras não estavam no texto original, por isso, elas apareciam em itálico, a fim de que o leitor soubesse que elas foram colocadas ali para que a estrutura gramatical em português tivesse o mesmo sentido do texto original. E isso foi comprovado e confirmado por inúmeros tradutores do grego, que confirmam o rigor de Almeida na tradução, e a necessidade da inclusão das palavras para a compreensão do leitor português, sem que seja transgredida e desafiada a advertência divina: "Porque eu testifico a todo aquele que ouvir as palavras da profecia deste livro que, se alguém lhes acrescentar alguma coisa, Deus fará vir sobre ele as pragas que estão escritas neste livro" [Ap. 22.18].

Já, as versões modernas caminham em trilhas diametralmente opostas. Não há a preocupação com a precisão, com a fidelidade do texto, com a tradução gramatical, mas elas se baseiam na necessidade de atenderem o leitor moderno. Ou seja, as traduções são subjetivas, interpretativas, e, para piorar, têm o objetivo de satisfazer os leitores dando-lhes o texto mais digerível possível. Não há a preocupação de se preservar o que nos foi entregue por Deus, mas de transformar e adaptar o texto aos anseios estéticos, culturais e preferenciais dos leitores. Por isso há uma verdadeira gama de Bíblias para todos os gostos: para jovens, velhos, mulheres, gays, líderes, etc, e assim, o texto é moldado segundo os interesses mercadológicos, segundo as pesquisas de opinião, segundo as teorias sociais e culturais. 

Temos então mais um produto de mercado, onde o consumidor é quem determinará como e de que maneira o texto será produzido, assegurando que as peculiaridades linguísticas, o estilo do autor original, a estrutura do texto bíblico, não sejam entraves para que as pessoas comprem e gostem daquilo que foi produzido com o objetivo de seduzi-la à compra e satisfazê-la por adquiri-la. 

Vejam bem, para essa turma, a Bíblia é somente mais um livro; um livro complexo e intricado linguística e gramaticalmente, portanto, inacessível ao homem moderno; de forma que todo o trabalho deve ser no sentido de que as pessoas gostem do que está sendo proposto, o que torna a mensagem evangelística secundária, e a ação do Espírito Santo desnecessária, pois o homem se encarregou de resolver os problemas de ininteligibilidade com a recriação do texto. 

E o que temos? A N.T.L.H, a Bíblia Viva, e outras congêneres esmeram-se na simplificação do texto e no empobrecimento da tradução, desfocando-a, e, muitas vezes, dando-lhe um sentido muito mais obscuro do que supunham ter no texto original. Basta uma leitura em qualquer dessas versões modernas para se perceber que o texto tornou-se palatável, aguado, diluído. Além de não haver o cuidado de se indicar onde e em que o texto foi alterado. Como há uma interpretação do texto original, se eles seguissem o padrão honesto de Almeida, por exemplo, teriam completamente desacreditada a sua obra: haveria espaços quase praticamente exclusivos aos itálicos. 

Dias atrás, o pr. Luiz Carlos usou a seguinte imagem, após a EBD: a atual geração está habituada ao alimento do tipo fast-food, Mcdonald e Burguer King, e para eles é algo normal e saboroso, mas tente manter uma pessoa que viveu uma geração antes, acostumada com o sabor dos alimentos de verdade, carne, cereais, legumes e frutas... torna-se impossível comer mais do que um sanduíche daqueles por mês. Eu mesmo detesto os Mcdonalds, para mim, aquilo não tem gosto de nada, é como comer isopor e papel ao mesmo tempo. 

Da mesma forma, as pessoas estão sendo educadas a se habituarem ao falso alimento, ao alimento que levará à inanição espiritual, moral, ética, pois estão sendo tratadas com isopor e papel. Não há substância, nem concisão, não há unidade, exatamente porque não há interesse na mensagem, pois a relevância está naquele que lê, não no que se lê. O que temos, então, é um texto desfigurado, vilipendiado, onde o conhecimento teológico e o rigor linguístico não são qualificações primordiais, mas irrelevantes na tradução.



PRINCÍPIOS SAUDÁVEIS PARA A TRADUÇÃO DAS ESCRITURAS

Na opinião do Pr. Paulo Anglada[1], há princípios saudáveis e que merecem ser enfatizados e praticados na tarefa de se traduzir a Escritura. São eles:

1) Auspícios e Supervisão
A tradução da Escritura é tarefa a ser supervisionada e sob os cuidados da igreja; por pessoas que se encontram sob autoridade eclesiástica, e não como iniciativa de grupos e entidades para-eclesiásticas e muitas delas seculares e com nítidos interesses mercadológicos. O que, infelizmente, não acontece hoje, como foi à época da tradução da Bíblia para o Inglês, a Versão King James, de 1611, realizada por mais de 50 teólogos anglicanos; a tradução de João Ferreira de Almeida, pela Missão Portuguesa da Igreja Reformada da Holanda, em 1693; e a tradução católica do padre Antônio Pereira de Figueiredo, 1819. 

2) Qualificação dos Tradutores
"No mínimo, deve ser exigido deles o que os apóstolos exigiram na escolha de diáconos em Atos 6.3, e nesta ordem de importância: 
Homens de boa reputação [moral],
Cheios do Espírito Santo [espiritualidade e ortodoxia doutrinária],
e de Sabedoria [capacidade teológica e linguística] específica para a tarefa".
Além disso, seria prudente exigir-se deles as qualificações presentes aos candidatos à ordenação prescritos em 1 Tm 3.1-7: ser irrepreensível, esposo de uma só mulher, temperante, sóbrio, modesto, não dado ao vinho, não violento, governe bem sua própria casa, e crie os filhos sob disciplina, com todo o respeito, não seja neófito, e tenha bom testemunho dos de fora.

3) Precisão
a) Fidelidade ao texto original
O texto deve-se basear na grande maioria dos manuscritos, os quais foram utilizados pela Igreja por mais de dezoito séculos, e não se entregar ao subjetivismo das teorias seculares, que transferiram a autoridade para poucos textos conflitantes e sem representatividade na Igreja. Com isso, a fidelidade aos originais nada mais é do que a fidelidade ao Texto Majoritário, massorético e receptus.
b) Fidelidade à forma do texto e estilo do autor
Jamais se deve sacrificar o conteúdo, a mensagem, em função de uma pretensa inteligibilidade, que na maioria das vezes torna-se imprecisa, sem coerência, coesão e unidade, trazendo, em sua maior parte a confusão e incompreensão. 
Também não se deve alterar o texto, reestruturando-o, mudando a sua forma original, estrutura ou mesmo o estilo do autor, de forma que a tradução deve ser tão literal quanto possível. "A intervenção do tradutor deve ser a necessária, nem mais nem menos".
E aqui, cabe uma pergunta: se a Bíblia é imutável, inclusive em sua mensagem, por que se busca um sentido e compreensão [clareza] maiores para os leitores modernos do que a que foi exigida dos leitores originais? É chamar para si uma autoridade que não se tem, a de redefinir o sentido do texto, tornando-o em outro texto.
c) Clareza
Os termos devem ser os mais claros possíveis, evitando-se o arcadismo, e buscando-se palavras que expressem melhor o sentido original. Isso não tem nada a ver com a "clareza" que os tradutores modernos querem, pois o que eles desejam é uma modelação do texto aos anseios do leitor atual, de forma que não se busca empregar as melhores palavras para se ter o mesmo sentido original, mas se buscam as palavras para adequá-las ao pensamento moderno e aos anseios dos leitores aos quais a obra é potencialmente direcionada. 
É o caso das expressões idiomáticas, que não podem ser traduzidas literalmente, mas que encontram correlatos na língua em que será traduzida.
De forma que não se pode abrir mão da precisão para se dar ênfase à clareza, assim como se deve rejeitar o hermetismo e o arcadismo em favor da mesma clareza. 
d) Inteireza
Como entendemos que a Escritura é autointerpretativa, e de que ela explica-se a si mesma, não é aconselhável que se traduza e publique apenas trechos, mas ela toda, em sua inteireza; ou seja, devem ser traduzidas e publicadas em seu todo; pois a Bíblia é um livro, único em sua unidade e mensagem.
e) Historicidade ou continuidade
"Uma tradução das Escrituras não pode desconsiderar as traduções anteriores. Rejeitar todas as demais traduções e arrogar-se a tarefa de produzir uma nova independente das anteriores, revela soberba inaceitável... Uma tradução que demonstre apreço pelas antigas traduções reformadas certamente será bem mais fiel do que uma tradução independente".


CONCLUSÃO

A inspiração dos originais, a preservação das cópias [o Texto Majoritário], são provas da ação direta de Deus tanto na produção como manutenção da sua palavra a todos os homens. No caso das traduções, especialmente pela limitação linguística e a impossibilidade de se conseguir as mesmas palavras em todas as línguas, elas não são a expressão literal do que Deus nos deu, mas creio que o Espírito Santo assegura, para a edificação da Igreja, que a mensagem seja mantida intocável. 

Ressaltamos a importância de que as traduções voltem a ser realizadas pela Igreja, e não por grupos para-eclesiásticos, que não estão dispostos a manter a fidelidade do texto original, nem dispostos ao trabalho honesto de revelar em que o seu trabalho foi alterado em relação aos originais. 

Existe o cuidado de não se afirmar que as traduções são inerrantes e infalíveis, pois há, especialmente hoje, uma verdadeira enxurrada de textos que não têm nenhum compromisso com a verdade nem com a manutenção da mensagem original. Por isso as Confissões Históricas não declaram a perfeição das traduções. Mas podemos dizer, sem dúvidas, que há traduções que são fiéis e herdeiras diretas dos textos originais, e de que essa também é obra do Espírito Santo, de resguardar a palavra entregue a todos os povos em todas as línguas. Em português, isso se deu pelo trabalho de João Ferreira de Almeida, e a sua tradução baseada no Texto Majoritário[2] pode ser definida como fiel ao original.

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Notas: [1] Sola Scrpitura - A Doutrina Reformada das Escrituras, Paulo Anglada, Ed. Os Puritanos, pg. 117-121
[2] Há traduções que se dizem de Almeida mas que têm como base o texto eclético ou crítico, numa clara intenção de iludir e enganar o leitor, haja visto que à época de Almeida nem sequer haviam sido descobertos os famigerados textos Sinaiticus e Vaticanus, a base do texto crítico. João Ferreira de Almeida utilizou-se do Texto Massorético e Receptus que eram os utilizados larga e majoritariamente pela igreja, enquanto os outros viviam no limbo, de onde não deveriam ter saído.
[3] Aula realizada na E.B.D. do Tabernáculo Batista Bíblico em 30.10.2011


18 maio 2023

"Enquanto Agonizo", de William Faulkner: A vida a carregar a morte

 






Jorge F. Isah



Faulkner é um dos meus autores prediletos. Descobri-o meio tardiamente, de uma demora protelada por quase três décadas, desde os tempos de estudante colegial envolto em outras leituras e escolhas não tão apropriadas, mas talvez necessárias para asfaltar a trilha imprescindível pela qual andaria às voltas com a literatura “faulkneriana”. Posto isso, digo ser um homem de preconceitos, especialmente com a escolha de títulos (salvo raras exceções), e nem sempre é um critério válido, mesmo o sendo aqui e acolá. Portanto, não gostei de ver abaixo do nome do escritor o título “Enquanto Agonizo”; pareceu-me banal e pouco criativo. Mas como estava equivocado...

“Enquanto Agonizo” é referência à Odisseia, de Homero, e pode-se encontrar elementos daquela peripécia nesta.

Em linhas gerais, encontramos todos os elementos da escrita de Faulkner: o fluxo de consciência à la James Joyce (sem o hermetismo); vários personagens como “vozes” na narrativa, muitas vezes se contradizendo uns com os outros, e as vezes consigo mesmo; poesia, tristeza, beleza, abandono, loucura, decadência, morte e uma transcendentalidade quase divina, mesmo sendo agnóstica, na qual Deus é questionado e nem sempre absolvido pelos desvios e pecados humanos. Assim como Adão e Eva tentaram desesperadamente escapulir das consequências dos seus delitos lançando-os sobre Deus, boa parte dos personagens também esforça-se, à sua maneira, esquivar-se e impugná-los ao Criador... Ah, e o cenário também é o mesmo: o sul dos EUA, terrivelmente pobre e preconceituoso para brancos e negros, homens e mulheres, velhos e crianças, onde as condições e natureza humana estão em constante conflito, em toda a sua complexidade e, por que não, simplicidade também, igualmente vistos e preanunciados em “O Som e A Fúria”.

O enredo, aparentemente simples, está anos-luz de distância dessa afirmação. E outro ponto interessante é a neutralidade do autor em relação à história e as personagens, ou seja, não o vemos diretamente a criticar esse ou aquele, essa ou aquela atitude. Ele é tão somente o mensageiro, o porta-voz das suas criaturas, e não está nada disposto a interferir nas naturezas (se para o bem, se para o mal) das personagens, sem julgar ou analisá-las, sem se opor ou consentir, e deixá-las a si mesmas se expressarem em suas incongruências ou lógica, erros e acertos, escolhas e destinos... talvez, por isso, seja tão difícil para Faulkner e tantos outros intelectuais e homens espalhados mundo afora o conceito do Deus pessoal. É mais interessante e familiar e cômodo um Deus impessoal, que criou e largou a sua criação ao “deus dará”, no caos, na babel progressiva (nada a ver com ideologia, mas com gradualidade), do que o Deus bíblico, que ama e cuida da sua criação, a despeito dos céticos e insensatos, que nada podem fazer para impedi-lo de ser como é, e fazer o que faz.

À sua maneira, Faulkner é o deus, o criador, a observar a sua criação sem qualquer senso moral, de justiça, ou sentencioso. Na arte isso é possível, especialmente se Deus é eliminado da equação e o resultado é algo anômalo e inexato. Ele observa a desordem, sem avaliação, sem juízo, e deixa ao leitor, caso queira, a posição de crítico. É tão simplesmente o descritor, levando à luz o bem e o mal ou o híbrido deles, sem se permitir ser ele quem irá apontar ou delatar este ou aquele, à direita ou esquerda, os probos e réprobos. Ao não tomar partido, resta-lhe o bom e velho contador de histórias, como poucos, apesar de muitos (graças a Deus!), se tornaram e imortalizaram-se em transmitir.

Ainda a se ressaltar, o estilo seco, consistente, denso no uso da linguagem, algo a me remeter ao estilo condensado e cru, e nu, de “Cormac McCarthy”, guardadas as devidas proporções e diferenças.

Os capítulos são titulados com os nomes dos narradores, as vezes curtíssimos, à medida em que se “toma pé” da história, por meio de suas falas heterogêneas, pontuadas também por pensamentos e descrições confusas e incompreensíveis, pois nem sempre o narrador saberá do que está a falar; entretanto, vai-se em um crescente, lento e gradativo, a se conhecer as personalidades individuais e o conjunto a fazê-las coexistentes em seus caracteres fragmentários.

Addie Bundren, a matriarca da família, está moribunda, sem esperanças, e da janela do seu quarto observa o filho mais velho Cash, descrito como excelente carpinteiro (na verdade a alma mais singela da trupe), construir o caixão[1]. Entre marteladas, o barulho de serras, madeira cortada, desbastada pelo enxó, ela se depara, a cada arranjo, com o silêncio iminente em que sua alma e corpo penetrarão. Antes de partir, faz o marido, Anse, prometer-lhe realizar o último desejo: ser enterrada juntamente com os seus parentes em Jefferson, cidade a uma dezena de milhas de onde está.

Após a morte de Addie (ficou 10 dias em agonia[2]), e o caixão pronto, terminado quase no mesmo instante, como se a matriarca estivesse à espera da conclusão ou dos entalhes finais, começou a odisseia, o translado até a cidade natal da mulher, onde seria enterrada. Neste ínterim, ocorrem incidentes a atrasar e quase inviabilizar a travessia, como a queda de duas pontes durante a enchente, as estradas intransitáveis, a perda da parelha de burros, o cansaço, o grave ferimento de Cash, as aves necrófagas a persegui-los, e a terra inóspita, descrita por Peabody, o médico: “Esta região tem um defeito: tudo, o tempo, tudo dura demais. Nossos rios, nossa terra: opacos, vagarosos, violentos. Modelando e criando a vida do homem à sua implacável e soturna imagem”[3]... Não é difícil imaginar a procissão fúnebre como um ato tresloucado, mas também uma epopeia com contornos de heroísmo.

Nesta tragédia repleta de sentimentos e sentidos, Faulkner traça mais uma vez o fim de uma era, a perda dos valores tradicionais, e o esforço quase inumano de alguns em tentar mantê-los. Enquanto Addie atravessa a morte com a convicção e esperança de descansar em solo nativo, junto ao seu povo (seria a rejeição do estado atual e a constatação de jamais deixar de ser o que fora um dia? De jamais pertencer aquele lugar?), o marido, Anse, titubeia, claudica, enquanto tenta satisfazer e preservar a todo custo o desejo da mulher do seu casamento. É a última oportunidade, derradeira, de talvez satisfazê-la e apresentar-se como guardião e mantenedor da relação de, talvez, ganhar alguma credibilidade e ser reconhecido em sua dedicação. Execrado e desprezado pela maioria das pessoas de sua relação, por ser fraco, egoísta e inútil, ele mostra-se obstinado, quase galhardamente a enfrentar qualquer oposição ao cumprimento da promessa, o voto do qual não poderia se esquivar ou escapar (um Quixote faulkeriano, pode-se dizer); mesmo tendo de enfrentar a si mesmo, a maior ameaça, ao se vitimizar e fazer-se pobre-coitado, onde as circunstâncias se lhe afiguram terrivelmente estorvos e flagelos e nada pode fazer para alterá-los, em seu fatalismo passivo e impotente. Este é apenas um dos contrastes nesta obra-prima de Faulkner.

E, após “Enquanto Agonizo”, a aflição não apenas antes da morte mas no decorrer e após ela, não há como negar a minha paixão, cada vez mais crescente com a escrita de Faulkner e todos os meios e entremeios tangíveis e intocáveis no qual se desenvolveu.

O que se pode dizer mais?... Leia, leia, e não deixe ler, é o meu conselho, quase um pedido... quase uma ordem...


______________ 

Notas: [1] Darl ao descrever as habilidades do irmão: “Addie Bundren não podia desejar um melhor que ele, nem um caixão melhor em que descansar. O caixão lhe dará confiança e conforto.” (pg 8)

[2] A filha Dewey Dell afirma, na página 40: “Ela levou dez dias para morrer. Talvez ainda não saiba que já se foi”.

[3] Página 31


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Avaliação: (****)

Título: Enquanto Agonizo

Autor: William Faulkner

Páginas: 224

Editora: LP&M Pocket

Sinopse: “Neste romance, o autor distancia-se da aristocracia sulista americana para falar de gente comum e humilde, como a família Bundren, que se reúne para cumprir o último desejo da matriarca - ser enterrada em Jefferson, ao lado de seus parentes. O marido e os cinco filhos partem com o caixão determinados a cumprir seu objetivo, sem saber como essa viagem mudaria suas vidas.”





10 maio 2023

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 5: A Palavra Imutável!


      





 
Jorge F. Isah




CAPÍTULO 1: ESCRITURAS SAGRADAS

8. O Antigo Testamento em hebraico (que era a língua vernácula do povo de Deus na Antigüidade),14 e o Novo Testamento em grego (que em sua época era a língua mais conhecida entre as nações), tendo sido diretamente inspirados por Deus e, pelo seu singular cuidado e providência, conservados puros no correr dos séculos, são, portanto, autênticos, de maneira que, em toda controvérsia de natureza religiosa, a Igreja deve apelar para eles como palavra final.15 Mas visto que essas línguas originais não são conhecidas de todo o povo de Deus – Que tem direito e interesse nas Escrituras, e que é ordenado a ler16 e examinar17 as Escrituras no temor de Deus – os Testamentos devem ser traduzidos para a língua de cada nação,18 a fim de que, permanecendo a Palavra no povo de Deus, abundantemente, todos adorem a Deus e maneira aceitável, e pela paciência e consolação das Escrituras possam ter esperança.19
[14- Romanos 3:2. 15- Isaías 8:20. 16- Atos 15:15. 17- João 5:39. 18- I Coríntios 14:6,9,11-12,24,28. 19- Colossenses 3:16.]


INTRODUÇÃO

Parece que tudo que se refere à Sagrada Escritura acaba por se envolver em alguma polêmica, certamente pelo seu caráter sobrenatural, e por dirigir-se ao homem natural, e muitos debates acontecem desnecessariamente. Mas não podemos nos esquecer de que Deus se utiliza até mesmo da nossa inconstância e fragilidade para que os seus santos propósitos se cumpram. Foi assim na formação do Cânon, tanto do Antigo como do Novo Testamentos, e ainda persiste quando o assunto é da Palavra de Deus. E não é diferente o ensino sobre esta importante seção do Capítulo 1 da C.F.B. Ela revela-nos algo de que já discutimos anteriormente, em outras aulas, dando ênfase especial na direta e efetiva inspiração divina na formação do Cânon, de forma que todos os seus autores estavam submetidos à vontade e ação de Deus ao escreverem os 66 livros que compõem a Bíblia. 

Em linhas gerais, o que temos aqui, como primeiro ponto, é o fato de que na Escritura não há componentes que não tenham sido inspirados, dirigidos, e não fossem provenientes da mente santa, perfeita e sábia de Deus. Tudo o que temos nela tem origem no próprio Deus, por isso ela é a sua palavra. E este é um ponto inegociável na fé cristã [se é que há algum ponto que possa ser considerado negociável]. 


PRESERVAÇÃO DO TEXTO SAGRADO

A C.F.B. prossegue afirmando que Deus, "pelo seu singular cuidado e providência", ou seja, por sua ação direta e pessoal, conservou-a pura e autêntica no decorrer dos séculos. Este é um princípio fundamental e que também já foi exposto preliminarmente, o de que Deus preservou a sua palavra de forma que as gerações futuras, até o fim dos tempos, terá acesso à sua palavra infalível, inerrante e inspirada. Todos os homens, em todos os tempos, puderam e poderão se beneficiar do texto sagrado, incorruptível, não adulterado, assim com o Senhor o transmitiu aos seus servos que o redigiram; assim como Deus o transmitiu nos primórdios ao seu povo; nos primórdios da Igreja, para que sejamos, hoje, guiados no conhecimento e entendimento de todas as maravilhas que nos foram dadas conhecer por sua vontade.

Como já dissemos também, muitos críticos questionaram a inspiração divina da Escritura, como o fez Marcião, no séc. II. Ao ponto de alterarem e mudarem o texto, numa tentativa de eliminar o que consideravam não inspirado, e, assim, anularem a palavra de Deus. Mas com qual autoridade se arvoraram a realizar esse absurdo, além do foro íntimo e pessoal? Em outras palavras, quero dizer que o único motivo foram os seus pecados a motivarem-nos à rebeldia contra Deus.

O problema não está na doutrina da preservação da palavra, mas naqueles que a querem confirmada por seus métodos pessoais ou gerais, mas que têm origem no próprio homem, de forma que é ele a autoridade capaz de validá-la ou não. E sabemos que muitas coisas que passam pelo crivo humano certamente não são reconhecidas por Deus, pois têm claramente o objetivo de se insurgirem contra ele, em mais um motim ainda que motivado por um pretenso rigor e zelo com a verdade. Ora, a Escritura é pródiga em nos alertar: "Pois quê? Se alguns foram incrédulos, a sua incredulidade aniquilará a fidelidade de Deus? De maneira nenhuma; sempre seja Deus verdadeiro, e todo o homem mentiroso" [Rm 3.3-4]. De forma que a estupidez e malignidade de uns invalidaria o sábio propósito divino? De manter intacta e inalterada a sua palavra para todas as gerações? Se houve Marcião e muitos como ele que adulteraram a palavra a fim de satisfazerem aos seus próprios intentos e aos do seu mestre, satanás, em que isso deporia contra a Escritura preservada divinamente? Ou o diabo não tem também interesses na Escritura? É claro que tem! Por isso, durante séculos, nenhum livro em toda a história foi tão examinado, testado, e submetido às mais intensas provas a fim de se estabelecer a sua autenticidade. E, igualmente, nenhum livro tem provas tão contundentes da sua autenticidade como a Bíblia, ao ponto de os críticos mais ferrenhos reconhecerem-na [os que têm honestidade intelectual]. 

Mas a questão é: o que torna a discussão da preservação da Escritura possível? 


TEXTO MAJORITÁRIO E A ALTA CRÍTICA 

Primeiro, entre os séc. I e III, muitos textos surgiram alegando para si a chancela de palavra de Deus, porém não havia outro objetivo a não ser o de confundir e enganar a Igreja. O grande volume de apócrifos [muitos tão descaradamente falsos e inverossímeis que apenas as mentes indecorosas consideravam verdadeiros] e de cópias mal-feitas e descuidadas [algumas não intencionais, enquanto outras intencionais] coexistiram paralelamente à transmissão fiel da palavra, as que a Igreja utilizava e distribuía livremente entre os irmãos, em detrimento daquelas que eram rejeitadas e ficaram guardadas até suas descobertas, quase 18 séculos depois.

Vejam bem, haviam cópias fiéis dos Evangelhos e das Cartas Paulinas e Universais que eram lidas nas igrejas como a voz do próprio Deus. Eles são o que chamamos hoje de Texto Majoritário[1], consistindo do Texto Massorético do Antigo Testamento. e o Textus Receptus do Novo Testamento. Mas também haviam os textos corrompidos, sejam apócrifos ou cópias que circulavam também, contudo eram rejeitados pela Igreja Primitiva como não inspirados. Com isso, não estou a dizer que todos os apócrifos eram heréticos e tendenciosamente malignos, pois haviam epístolas de bispos e pastores que eram lidas nas congregações pelo seu caráter nitidamente cristão e espiritual, e que se baseavam na tradição de Cristo e dos apóstolos, mas que não eram inspirados diretamente por Deus, ainda que não possuíssem erros doutrinários. Como exemplo, podemos citar a I e II Epístolas de Clemente.

Desta forma, o Espírito Santo encarregou-se de, com o decorrer dos tempos, levar ao desaparecimento as cópias defeituosas [que não eram utilizadas pela igreja], que cairam no esquecimento da Igreja, diante do volume predominante do texto fielmente preservado [Majoritário]. 

Então, o fato de haver cópias fiéis da palavra transmitida por Deus e cópias corrompidas dessa transmissão, suscitou e ainda suscita este debate, mas somente porque alguns homens consideraram estas mais próximas dos autógrafos ou originais pelo critério de tempo, e não de sua aplicabilidade. 

Segundo, ela não seria levantada se não houvesse o interesse da crítica em questionar aquilo que foi estabelecido por Deus como verdadeiro e fiel. O homem, em sua constante sublevação à ordem divina, colocou-se na condição de "juiz" do que pode ser verdadeiro ou não e, ao apelar para a metodologia aparentemente superior do academicismo teológico, o Texto Majoritário foi progressivamente abandonado em favor do Texto Eclético ou Crítico[2], de forma que, aquilo que era individualizado no passado [vide Marcião e Mani] tornou-se corrente entre a cristandade, num estado de soberba e ostentação intelectual. 

A preservação da Escritura decorre da ação direta de Deus, a sua providência, utilizando-se dos meios humanos e dos próprios homens para manter intacta a sua palavra, através de homens que a "copiaram com reverência e fidelidade e depois a imprimiram com igual cuidado, a fim de que o texto original continuasse sempre disponível, em todas as épocas"[3]. Ao passo que as cópias corruptas, motivadas intencionalmente ou não, mas sempre contendo e perpetuando inúmeros erros e discrepâncias, estavam esquecidas e abandonadas pela igreja, até que foram despertadas do limbo para, atualmente, serem testificadas pela erudição cristã com a alcunha de serem "os melhores textos" do hebraico e do grego. E isso tem a intensão de retirar do texto bíblico o seu caráter absoluto, como a fidedigna palavra de Deus, de sorte que a terminologia "os melhores textos" traz subliminarmente um sinal, o de que a Bíblia não é um livro sobrenaturalmente preservado, o que consequentemente torna-o em um livro não inspirado divinamente, e dando-lhe a áurea de humanamente falível como tudo o mais produzido pelo homem. E isso tem sérias implicações quanto à doutrina e mensagem tradicionalmente proclamada pelos cristãos, afetando diretamente a fé e a confiança na Escritura, ao ponto em que um grande número de críticos já desistiram definitivamente de encontrar o texto original do Novo Testamento. 

Com isso, cristaliza-se o grave erro de se trazer para a Escritura um sentido que Deus não lhe deu, ao se interessar apenas pelo "sentido" que o texto bíblico possa transmitir [equivalência dinâmica], de forma que as palavras usadas originalmente por Deus e reveladas aos autores humanos não têm importância. É um terrível engano, e um perigo muito grande, pois se havia algo que os copistas se preocupavam era com a exatidão de cada frase, palavra e letra de forma que o texto original fosse fielmente transcrito [equivalência formal]. Para isso, eles dispunham de vários métodos para conferir se aquela cópia era realmente fiel ao texto original ou não [por exemplo, se contavam as sílabas e letras de cada frase para certificar-se de que o número delas não tinha sido alterado na cópia]. 

Fica a pergunta: qual o sentido pode se obter de um texto que tem tantas variantes textuais? É-se possível ter um sentido uniforme em meio à diversidade e profusão de erros textuais? 


CONCLUSÃO 

1) Assim, todas as dúvidas, contradições e discrepâncias que porventura surja na Igreja devem ser dirimidas exclusivamente pelo exame da Escritura, a qual é a palavra final e única regra em todas as questões doutrinárias/teológicas e eclesiásticas.

2) A Bíblia foi preservada intacta no decorrer dos séculos pelo poder e vontade de Deus, assim como ele mesmo é o seu autor, também é aquele que zela e guarda eternamente a sua santa palavra.

3) É possível dizer que há um texto que foi preservado por Deus? Sim. E esse texto é o Majoritário através do qual a Igreja Primitiva era edificada, santificada e crescia no conhecimento divino, e que também foram utilizados pelos reformadores, como Wycliff, Lutero e Calvino. E a nossa segurança está, especialmente, na forma como Deus o preservou, mantendo a unidade doutrinária da sua mensagem, de forma que não restam dúvidas quanto à sua fidelidade aos autógrafos ou originais. 

4) Felizmente, o mesmo não pode ser dito do Texto da Alta Crítica que além de divergir entre si mesmo[4] [lembre-se, num número reduzidíssimo de cópias em relação ao Texto Majoritário, algo em torno de 5% das cópias existentes, no total de aproximadamente 5.000], historicamente não foi utilizado pela Igreja, não tendo, portanto, a sua autenticação. 

5) O que nos deixa o seguinte questionamento: não estaria ligada à constante apostasia e o declínio da fé bíblica na igreja atual o fato de se propagar, divulgar e adotar como forma superior e sofisticada o Texto da Alta Crítica sem maior avaliação, baseado exclusivamente na autoridade dos eruditos? Não haveria uma clara inversão de valores em que os homens se sobrepõem e sobrepujam o que Deus estabeleceu no decorrer da história? 

Na próxima aula, falaremos de outro assunto ligado a este tópico, as traduções.

________________________ 

Notas: [1] Texto Majoritário - pertencente ao período não-crítico, é formado pela padronização encontrada na grande maioria dos manuscritos utilizados pela Igreja Primitiva e Medieval, cujas diferenças entre si são mínimas, e nenhuma delas apresenta contradição doutrinal. É também chamado de texto bizantino, sírio, tradicional, e eclesiático.
[2] Texto crítico - caracteriza-se por um afastamento do Texto Majoritário, e pelo aparecimento de um texto eclético, com base em um número reduzido de manuscritos [cópias], que discordam bastante entre si, e ainda mais da maioria esmagadora das cópias ou manuscritos pertencentes ao Texto Majoritário. O critério para a sua "autenticação" é a sua antiguidade, ainda que não representem 5% de todos os manuscritos existentes.
[3] Sola Scrptura - A Doutrina Reformada das Escrituras, Paulo Anglada, Ed. Os Puritanos, pag. 103.
[4] Somente nos Evangelhos, os Códices Sináitico e Vaticano, contêm mais de 3.000 erros, sendo que mais da metade deles deixam o texto sem sentido. 
[5] Resumo da aula na E.B.D. do Tabernáculo Batista Bíblico em 23/10/2011.


01 maio 2023

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 4: A Unidade da Palavra
























Por Jorge F. Isah



CAPÍTULO 1: AS SAGRADAS ESCRITURAS

"7. Na Escritura não são todas as coisas igualmente claras, nem igualmente evidentes para todos.12 Mesmo assim, as coisas que precisam ser conhecidas, cridas e obedecidas para a salvação estão claramente propostas e explicadas em uma passagem ou outra; e, pelo devido uso de meios comuns, não apenas os eruditos, mas também os indoutos, podem obter uma compreensão suficiente de tais coisas.13
12 II Pedro 3:16. 13 Salmo 19:7; Salmo 119:130."


Temos aqui claramente ensinado um princípio que foi distorcido e abandonado no decorrer dos séculos, antes da Reforma, especialmente pela ICAR, o de que não há obscurantismo nem ininteligibilidade na Escritura; de que é possível compreendê-la e entendê-la sem a necessidade de que homens "iluminados" a interpretem. Por muitos séculos, a ICAR proclamou ser a Bíblia enigmática, de forma que ao homem comum estaria vedado o seu entendimento, o qual aconteceria somente pela autoridade da igreja; de forma que somente através do clero a Bíblia estaria habilitada a ser interpretada e compreendida, dando-se-lhe o sentido exato e correto. Como já vimos, isto é uma mentira, uma forma de enganar e manter o homem preso à ignorância, de maneira que ele estaria sujeito a aceitar passivamente tudo o que a igreja definisse como autoridade no texto sagrado, e muitas vezes a corrupção do texto com a implementação de tradições humanas que nada têm a ver com a verdade revelada e o seu sentido intrínseco. 


A C.F.B. deixou evidente e patente que a Bíblia não é ininteligível, nem obscura, nem cheia de mistérios enigmáticos, ainda que haja passagens que não são compreensíveis a todos os homens, como Pedro alertou acerca das cartas paulinas [2Pe 3.16]. 

Porém não é preciso ser um catedrático ou acadêmico para compreender as doutrinas essenciais e necessárias para a salvação e a vida cristã. O que acontece, na maioria das vezes, é a rejeição e a não aceitação de determinada doutrina, seja porque o homem tem pressupostos[1] firmados em falsos princípios e ensinos [paganismo, humanismo, materialismo, misticismo, por exemplo], ou por interesses estritamente pessoais. Um homem que esteja disposto a abandonar a esposa e a família por outra mulher, cometendo adultério, estará invariavelmente em rebeldia contra o preceito divino do casamento indissolúvel e, portanto não o reconhecerá como verdade, como doutrina bíblica. Então, para corroborar a sua conduta pessoal, ele abandonará a verdade, de que a Bíblia é a inteligível e verdadeira palavra de Deus para, nesse aspecto, questioná-la ou simplesmente ignorá-la, baseado em convicções pessoais e alheias ao ensinamento escritural. Em outras palavras, ele adaptará a Bíblia aos seus conceitos, negando a sua autoridade naquilo em que ela afirma e os seus atos e práticas contradizem e rejeitam.

Por isso não creio que a Bíblia contenha mistérios. Ao contrário do entendimento geral da Igreja, penso que Deus não nos deu "pegadinhas". Quando Pedro diz que as cartas de Paulo eram de difícil compreensão, ele não quis dizer que eram impossíveis de se compreender. O que fez foi apelar para o cuidado em sua leitura, e a não precipitação em se procurar um entendimento instantâneo, irreflexivo, muitas vezes contaminados pelos nossos pressupostos, a fim de não se criarem distorções e heresias, as quais os indoutos e inconstantes torciam, assim como às outras escrituras. 

Pedro equipara as epístolas de Paulo às Escrituras, e diz que não eram apenas os pontos difíceis delas que os indoutos pervertiam, mas outras porções também [a meu ver, ele refere-se aos lobos cruéis que adentrariam à igreja e não poupariam o rebanho, e falariam coisas perversas para atraírem os discípulos após si mesmos (At 20.29)]. Sei que este ponto trará algum problema para muitos irmãos, visto que a questão dos "mistérios" na Bíblia está arraigada ao pensamento cristão moderno. Mas entendo que ela é uma explicação trôpega, pois apontaria para uma revelação parcial e não total da parte de Deus. Ou seja, aquilo que ele quis nos revelar para a nossa edificação e crescimento não seria suficientemente claro para que fôssemos edificados e crescêssemos. 

Logo, os problemas não estão no texto sagrado; não há nele incompreensibilidade, mas ela reside no homem caído e que, em sua natureza imperfeita e pecaminosa, não pode apreender toda a sabedoria divina, todo o conteúdo daquilo que Deus deu-nos, e que é uma pequena fração da sua infinitude, perfeição e majestade. E, ainda assim, sua imensidão é por demais assombrosa para as nossas declaradas e manifestas limitações. Contudo isso não nos exime da obrigação de buscar, de desejar entendê-la, e teremos, no Espírito Santo, a ajuda necessária para consegui-lo. 

Providencialmente, é aí que entra o Corpo, a Igreja, onde nem todos têm os mesmos dons, mas a união de todos os dons traz ao Corpo a unidade necessária para que todos participem do bem comum: a revelação especial. A piedade de um irmão nos levará a conhecer a Deus. A caridade de outro, também. E assim será com o zelo, reverência, sabedoria, ensino, oração, e tantos outros dons que Deus distribuiu generosamente ao seu povo, o qual juntamente chegará à compreensão de tudo o que se relaciona a si mesmo e sua obra redentora; uns auxiliando aos outros mutuamente, sob os cuidados e ação do Espírito Santo, "até que todos cheguemos à unidade da fé, e ao conhecimento do Filho de Deus, a homem perfeito, à medida da estatura completa de Cristo" [Ef. 4.13]. 

O corpo local, a igreja local, é o lugar onde os crentes se reúnem não somente para louvar e realizar um culto de adoração, mas se reúnem para auxiliarem-se mutuamente, edificarem-se mutuamente, santificarem-se mutuamente, e realizarem a obra que Deus deu para a sua igreja fazer; não a uma ovelha solitária e desgarrada, mas ao rebanho marcado com o selo do Espírito e unido no amor sacrificial de Cristo. O Senhor jamais disse: onde um de vós estiver... mas "onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles" [Mt 18.20]. O Cristianismo é solidário e comunitário, ainda que Deus chame um por um e o redima e justifique individualmente. E assim, todo o Corpo é edificado e fortalecido, ainda que seja uma pequena congregação, um grupo reduzido de santos, mas que estarão em comunhão harmônica ao Corpo, guiados e justificados no nome santo e bendito de Jesus Cristo, a cabeça. 

Fato é que a Bíblia não é um livro obscuro e hermético. Pelo contrário ela é inteligível e disponível a todos os homens. De forma que ela se autointerpreta; de maneira que os textos mais complexos podem e devem ser entendidos à luz de outros textos mais claros e correlacionados. Porém há dois elementos fundamentais para a sua compreensão: 

a) A ação direta do Espírito Santo, seu autor, na mente e coração do pecador a fim de que ele tenha o discernimento espiritual para compreender as coisas do Espírito: "ora, o homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente. Mas o que é espiritual discerne bem tudo, e ele de ninguém é discernido. Porque, quem conheceu a mente do Senhor, para que possa instruí-lo? Mas nós temos a mente de Cristo" [1 Co 2.14-16]. 

b) A disposição e interesse pessoal no estudo da Palavra. Se entendemos que ela é a nossa regra de fé e vida, e de que o seu conhecimento nos preparará para evitar erros e desvios a fim de se andar nos santos e perfeitos caminhos de Deus, em obediência, o homem deverá se empenhar e esforçar para fazer dela o seu mapa, a sua bússola e, para isso, o estudo diligente, piedoso, reverente, concomitantemente à oração e à meditação, é fundamental. Não podemos nos aproximar da Escritura como um livro qualquer, dispondo de uma leitura superficial e desleixada. Mesmo o homem menos preparado intelectualmente se se aproximar da Escritura em temor e reverência, reconhecendo-a como a fiel e santa palavra de Deus, será muito mais edificado, e compreendê-la-á satisfatoriamente, do que um erudito que a examina como mais uma obra das mãos humanas, como um livro entre tantos livros. 

Todos os homens podem entender a Escritura, mesmo os não regenerados, especialmente em seus aspectos morais e éticos, pois Deus colocou nele o sentido da Lei, de tal forma que muitos a cumprem ainda que na completa ignorância quanto a Cristo. É o que Paulo diz: "os quais mostram a obra da lei escrita em seus corações, testificando juntamente a sua consciência, e os seus pensamentos, quer acusando-os, quer defendendo-os" [Rm 2.15]; de forma que encontramos pessoas que, no dia-a-dia se revelam mais obedientes aos preceitos divinos do que muitos de nós. Com isso não estou a dizer que eles têm a motivação correta, aquela que somente o Espírito Santo pode dar; mas como o apóstolo disse dos judeus, têm zelo de Deus, mas sem entendimento [Rm 10.2], de maneira que acabam por procurar uma justiça própria ao invés de se sujeitarem à justiça divina [Rm 10.3]. 

Há algumas décadas tínhamos uma sociedade mais ordeira, em que as pessoas se preocupavam com o nome, a dignidade e a honra; não somente com a própria, mas com a dos outros também. Havia uma máxima: o que não se quer para si mesmo, não se quer para o outro. Observar essas coisas não levará ninguém ao céu, mas revelará um senso de justiça que somente a Lei divina pode dar e transmitir. E isso, através da leitura bíblica, pode ser alcançável por qualquer homem [reafirmo: por vários motivos que não seja glorificar a Deus, o que somente o crente pode fazer]. Infelizmente, para a blasfêmia ao nome de Cristo, muitos crentes ignoram e desprezam a Lei, assumindo uma graça barata que nada tem a ver com o ensino sagrado. Quão bom seria se todos nós honrássemos e louvássemos o nome do Senhor com nossas vidas, não apenas com nossos lábios e gestos [maneirismos gestuais]. Cristo revelou-nos sua filiação não por dizer-se "Filho de Deus", mas por que agia e se comportava como o Unigênito Filho de Deus. 

Portanto, o desprezo à palavra de Deus, o desprezo à igreja local, apenas revelará que esse homem não ama a Deus, ainda que ele proclame isso aos quatro ventos, ainda que ele mesmo se convença, enganosamente, desse amor, o que, contudo, a prática o negará. 

Concluindo, todos devemos seguir o ensino de Paulo e reconhecer que "toda a Escritura é divinamente inspirada, e proveitosa para ensinar, para redarguir, para corrigir, para instruir em justiça; para que o homem de Deus seja perfeito, e perfeitamente instruído para toda a boa obra" [2Tm 3.16-17], ainda que existam dificuldades de ordem espiritual e humana.

Nota: 1 – Pressuposições ou pressupostos são idéias e crenças que temos, conscientes ou inconscientes, que afetam a forma com que interpretamos os fatos e as provas. Nossos pressupostos afetam o modo como raciocinamos.
2- Resumo da aula realizada na E.B.D. do  Tabernáculo Batista Bíblico  em 15/10/2011 


17 abril 2023

A generalização do caos





Por Jorge F. Isah



Muitas pessoas encontram-se desanimadas com o quadro político, econômico e social do país, e são tomadas de sobressalto a cada novo escândalo veiculado pela mídia, chegando-se mesmo a uma angústia da alma, a um estado de desolação, sem esperanças ou perspectivas a motivá-las a um futuro, mesmo longínquo, em que o Brasil possa ressurgir da lama na qual está atolado até o cocuruto.

A questão não se resume aos escândalos diários, como se fosse apenas o desdobramento do ofensa à ordem do dia anterior, mas deve-se ter a real dimensão de tudo isto que está acontecendo e por quais motivos e objetivos acontecem. Não é simplesmente roubalheira ou corrupção ocasionais, ainda que perdurem ao menos nos últimos 12 anos de governo (até porquê o histórico de corrupção na república é algo germinal; iniciou-se antes mesmo do fim da Monarquia), e nem tão somente ligados apenas a um partido. É claro que as dimensões do furto, da corrupção, dos desvios públicos atingiram níveis inimagináveis nas mãos de “companheiros”, ao ponto em que a maior empresa brasileira e uma das dez maiores do mundo até 2008, encontra-se em estado falimentar; se fosse uma empresa privada já teria quebrado, mas como não é, respira por aparelhos, em coma.

A pergunta que se deve fazer é: Como se mantém um governo no poder? Como fazê-lo perpetuar-se? E garantir que se perpetue?

O dinheiro é apenas o meio para se conseguir isso, comprando votos, coaptando, alugando cargos, favorecendo aos amigos do "rei", ou seja, aparelhando o estado de tal maneira que não haja resistência à permanência ou manutenção no poder de um grupo ideológico. E os políticos sabem e souberam muito bem fazer isso (e estão fazendo "com louvor"), debaixo de nossas barbas, sem haver uma efetiva oposição, onde muitas lideranças, por conveniência, desonestidade, cumplicidade ou ignorância se desse conta do que acontece e foi tramado há mais de trinta anos pelo Foro de São Paulo¹, seguindo a cartilha do Fabianismo e Gramscianismo². Seria injusto imputar toda a culpa do caos nacional a eles, aos progressistas, pois a alma desta nação está tão arraigada à “Lei de Gerson”, o levar vantagem em tudo, que as chances de alguém furar essa bolha é de 1 para 100, e olhe lá!

O que se chama "oposição" não o é de princípios, mas de cargos e postos, no intuito de apenas assumirem o seu lugar no governo e tocar o barco tal ou qual eles tocam. Em suma, seria trocar seis por meia dúzia. Então, pensar apenas em um escândalo, em um roubo, em um desmando, em uma afronta à lei, é ter uma visão localizada, minimizada da realidade, faltando-se compreender a abrangência efetiva do propósito e união continental para a implantação de uma "pátria totalitária" nas Américas. Saindo o atual governo, quem entrará em seu lugar? Caso haja um lugar a se ocupar?... E a valsa continuará sendo tocada na mesma toada.

Isso se agrava pelo fato da maioria das pessoas acreditarem no absurdo de que existam partidos conservadores ou de direita no país, quando se tem apenas cartas do mesmo baralho ou a outra face da mesma moeda. No fim das contas, o establishment só quer saber de si mesmo, e os cidadãos e a nação se virem e lasquem para pagar as suas contas, via impostos e taxas quase sempre imorais e escorchantes. É pessimismo, podem dizer alguns, mas a realidade o prova, e a história mais recente (vide Argentina, Venezuela, Bolívia, Nicaragua, etc) apenas se repete por aqui e em tantos outros lugares também.

Qual a solução?... A curto e médio prazo não vejo nada de efetivo. A coisa está tão preta, mas tão preta, que o "reino de terror" está em franco desenvolvimento, e o que virá pelos próximos meses e anos não é nada animador. Enquanto as pessoas permanecerem atentas apenas ao "último escândalo", nada ou pouco poderá ser feito de factual e legítimo. A solução é a longo prazo, uma mudança de mentalidade, o abandono da mente carnal por uma mente cristã. E isso somente acontece quando as pessoas entendem e aceitam o evangelho, em todo o seu corpo, em toda a sua totalidade e sabedoria. Para um veneno (o pecado, o crime, a impiedade, a imoralidade, p.ex.) apenas o antídoto: Cristo³!

Para muitos parecerá simplismo ou reducionismo, mas como alguém pode caracterizar ou considerar o evangelho de Cristo dessa maneira?

Entretanto, o ódio deste mundo a ele e a sua palavra é algo entranhado no DNA humano, subindo à cabeça e descendo ao coração, de uma maneira tão virulenta que é mais fácil imaginar um paraíso perfeito criado pelas mãos humanas, mas que não saí do discurso ideológico e do papel, pois a realidade e a história provam, e provaram (e reprovaram) a sua eficácia em negá-lo na prática; é mais fácil o delírio e o jogo de palavras do que se submeter ao jugo leve e suave de Cristo.

Ainda que o mundo não conheça a graça divina, é-se possível viver nele minimamente em ordem (se é que tal existe), mesmo na desordem pós-Queda. Sociedades não muito antigas como a europeia e a americana, fundadas em valores cristãos, parecem-me ainda possíveis; mesmo que na atual conjuntura de degradação mental e espiritual seja uma loucura para as multidões de desavisados!

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Notas: 1] O Foro de São Paulo é uma organização criada em 1990 por Fidel Castro, Hugo Chaves e Lula com o nítido objetivo de implementar a "grande pátria", ou seja, a comunização de toda a América Latina nos moldes de Cuba. Basta olhar para os nossos vizinhos, e também o Brasil, para ver como eles foram bem-sucedidos em seus intentos. 

2] Fabianismo e Gramscianismo são movimentos políticos marxistas que acreditam na progressiva e gradual evolução da sociedade, utilizando da democracia, para instalar o comunismo. 

3] Mesmo sabendo que um reino de paz não acontecerá antes do retorno do Senhor Jesus, urge-se ainda mais a pregação do evangelho. Não para mudar o estado geral de coisas, as quais parecem quase irreversíveis, e não somente no Brasil mas no mundo, mas para que, ao menos, alguns saibam que a saída está aí, bem na cara de todos, mas por uma série de fatores, entre eles a Queda e a depravação total do homem (que a mentalidade moderna teima em não reconhecer), eles escolheram o caminho tortuoso da ilusão, de se criar uma outra realidade, onde o massacre ideológico teima em afirmar e insistir na criação de um mundo perfeito à margem de Deus e do seu Evangelho, o que é impossível, um sofisma dos mais grandiosos. De qualquer forma, como servos, resta-nos proclamar o Reino, e que ele venha!

4] Queda é o evento no qual o homem e a mulher, no Éden, desobedeceram a Deus e, por isso, o pecado entrou no mundo. A visão bíblica e cristã é de que com ela toda a criação foi corrompida, contaminada pelo pecado e desobediência, não somente o homem, mas todo o Cosmos, por causa do homem.