18 maio 2023

"Enquanto Agonizo", de William Faulkner: A vida a carregar a morte

 






Jorge F. Isah



Faulkner é um dos meus autores prediletos. Descobri-o meio tardiamente, de uma demora protelada por quase três décadas, desde os tempos de estudante colegial envolto em outras leituras e escolhas não tão apropriadas, mas talvez necessárias para asfaltar a trilha imprescindível pela qual andaria às voltas com a literatura “faulkneriana”. Posto isso, digo ser um homem de preconceitos, especialmente com a escolha de títulos (salvo raras exceções), e nem sempre é um critério válido, mesmo o sendo aqui e acolá. Portanto, não gostei de ver abaixo do nome do escritor o título “Enquanto Agonizo”; pareceu-me banal e pouco criativo. Mas como estava equivocado...

“Enquanto Agonizo” é referência à Odisseia, de Homero, e pode-se encontrar elementos daquela peripécia nesta.

Em linhas gerais, encontramos todos os elementos da escrita de Faulkner: o fluxo de consciência à la James Joyce (sem o hermetismo); vários personagens como “vozes” na narrativa, muitas vezes se contradizendo uns com os outros, e as vezes consigo mesmo; poesia, tristeza, beleza, abandono, loucura, decadência, morte e uma transcendentalidade quase divina, mesmo sendo agnóstica, na qual Deus é questionado e nem sempre absolvido pelos desvios e pecados humanos. Assim como Adão e Eva tentaram desesperadamente escapulir das consequências dos seus delitos lançando-os sobre Deus, boa parte dos personagens também esforça-se, à sua maneira, esquivar-se e impugná-los ao Criador... Ah, e o cenário também é o mesmo: o sul dos EUA, terrivelmente pobre e preconceituoso para brancos e negros, homens e mulheres, velhos e crianças, onde as condições e natureza humana estão em constante conflito, em toda a sua complexidade e, por que não, simplicidade também, igualmente vistos e preanunciados em “O Som e A Fúria”.

O enredo, aparentemente simples, está anos-luz de distância dessa afirmação. E outro ponto interessante é a neutralidade do autor em relação à história e as personagens, ou seja, não o vemos diretamente a criticar esse ou aquele, essa ou aquela atitude. Ele é tão somente o mensageiro, o porta-voz das suas criaturas, e não está nada disposto a interferir nas naturezas (se para o bem, se para o mal) das personagens, sem julgar ou analisá-las, sem se opor ou consentir, e deixá-las a si mesmas se expressarem em suas incongruências ou lógica, erros e acertos, escolhas e destinos... talvez, por isso, seja tão difícil para Faulkner e tantos outros intelectuais e homens espalhados mundo afora o conceito do Deus pessoal. É mais interessante e familiar e cômodo um Deus impessoal, que criou e largou a sua criação ao “deus dará”, no caos, na babel progressiva (nada a ver com ideologia, mas com gradualidade), do que o Deus bíblico, que ama e cuida da sua criação, a despeito dos céticos e insensatos, que nada podem fazer para impedi-lo de ser como é, e fazer o que faz.

À sua maneira, Faulkner é o deus, o criador, a observar a sua criação sem qualquer senso moral, de justiça, ou sentencioso. Na arte isso é possível, especialmente se Deus é eliminado da equação e o resultado é algo anômalo e inexato. Ele observa a desordem, sem avaliação, sem juízo, e deixa ao leitor, caso queira, a posição de crítico. É tão simplesmente o descritor, levando à luz o bem e o mal ou o híbrido deles, sem se permitir ser ele quem irá apontar ou delatar este ou aquele, à direita ou esquerda, os probos e réprobos. Ao não tomar partido, resta-lhe o bom e velho contador de histórias, como poucos, apesar de muitos (graças a Deus!), se tornaram e imortalizaram-se em transmitir.

Ainda a se ressaltar, o estilo seco, consistente, denso no uso da linguagem, algo a me remeter ao estilo condensado e cru, e nu, de “Cormac McCarthy”, guardadas as devidas proporções e diferenças.

Os capítulos são titulados com os nomes dos narradores, as vezes curtíssimos, à medida em que se “toma pé” da história, por meio de suas falas heterogêneas, pontuadas também por pensamentos e descrições confusas e incompreensíveis, pois nem sempre o narrador saberá do que está a falar; entretanto, vai-se em um crescente, lento e gradativo, a se conhecer as personalidades individuais e o conjunto a fazê-las coexistentes em seus caracteres fragmentários.

Addie Bundren, a matriarca da família, está moribunda, sem esperanças, e da janela do seu quarto observa o filho mais velho Cash, descrito como excelente carpinteiro (na verdade a alma mais singela da trupe), construir o caixão[1]. Entre marteladas, o barulho de serras, madeira cortada, desbastada pelo enxó, ela se depara, a cada arranjo, com o silêncio iminente em que sua alma e corpo penetrarão. Antes de partir, faz o marido, Anse, prometer-lhe realizar o último desejo: ser enterrada juntamente com os seus parentes em Jefferson, cidade a uma dezena de milhas de onde está.

Após a morte de Addie (ficou 10 dias em agonia[2]), e o caixão pronto, terminado quase no mesmo instante, como se a matriarca estivesse à espera da conclusão ou dos entalhes finais, começou a odisseia, o translado até a cidade natal da mulher, onde seria enterrada. Neste ínterim, ocorrem incidentes a atrasar e quase inviabilizar a travessia, como a queda de duas pontes durante a enchente, as estradas intransitáveis, a perda da parelha de burros, o cansaço, o grave ferimento de Cash, as aves necrófagas a persegui-los, e a terra inóspita, descrita por Peabody, o médico: “Esta região tem um defeito: tudo, o tempo, tudo dura demais. Nossos rios, nossa terra: opacos, vagarosos, violentos. Modelando e criando a vida do homem à sua implacável e soturna imagem”[3]... Não é difícil imaginar a procissão fúnebre como um ato tresloucado, mas também uma epopeia com contornos de heroísmo.

Nesta tragédia repleta de sentimentos e sentidos, Faulkner traça mais uma vez o fim de uma era, a perda dos valores tradicionais, e o esforço quase inumano de alguns em tentar mantê-los. Enquanto Addie atravessa a morte com a convicção e esperança de descansar em solo nativo, junto ao seu povo (seria a rejeição do estado atual e a constatação de jamais deixar de ser o que fora um dia? De jamais pertencer aquele lugar?), o marido, Anse, titubeia, claudica, enquanto tenta satisfazer e preservar a todo custo o desejo da mulher do seu casamento. É a última oportunidade, derradeira, de talvez satisfazê-la e apresentar-se como guardião e mantenedor da relação de, talvez, ganhar alguma credibilidade e ser reconhecido em sua dedicação. Execrado e desprezado pela maioria das pessoas de sua relação, por ser fraco, egoísta e inútil, ele mostra-se obstinado, quase galhardamente a enfrentar qualquer oposição ao cumprimento da promessa, o voto do qual não poderia se esquivar ou escapar (um Quixote faulkeriano, pode-se dizer); mesmo tendo de enfrentar a si mesmo, a maior ameaça, ao se vitimizar e fazer-se pobre-coitado, onde as circunstâncias se lhe afiguram terrivelmente estorvos e flagelos e nada pode fazer para alterá-los, em seu fatalismo passivo e impotente. Este é apenas um dos contrastes nesta obra-prima de Faulkner.

E, após “Enquanto Agonizo”, a aflição não apenas antes da morte mas no decorrer e após ela, não há como negar a minha paixão, cada vez mais crescente com a escrita de Faulkner e todos os meios e entremeios tangíveis e intocáveis no qual se desenvolveu.

O que se pode dizer mais?... Leia, leia, e não deixe ler, é o meu conselho, quase um pedido... quase uma ordem...


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Notas: [1] Darl ao descrever as habilidades do irmão: “Addie Bundren não podia desejar um melhor que ele, nem um caixão melhor em que descansar. O caixão lhe dará confiança e conforto.” (pg 8)

[2] A filha Dewey Dell afirma, na página 40: “Ela levou dez dias para morrer. Talvez ainda não saiba que já se foi”.

[3] Página 31


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Avaliação: (****)

Título: Enquanto Agonizo

Autor: William Faulkner

Páginas: 224

Editora: LP&M Pocket

Sinopse: “Neste romance, o autor distancia-se da aristocracia sulista americana para falar de gente comum e humilde, como a família Bundren, que se reúne para cumprir o último desejo da matriarca - ser enterrada em Jefferson, ao lado de seus parentes. O marido e os cinco filhos partem com o caixão determinados a cumprir seu objetivo, sem saber como essa viagem mudaria suas vidas.”





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