11 julho 2016

Mais do que uma predestinação apenas vislumbrada




Jorge Fernandes Isah




Outro fato relevante, e que pode passar desapercebido diante do objetivo principal da exortação de Judas é, após relatar que se introduziram alguns, escrever “que já antes estavam escritos para este mesmo juízo, homens ímpios”. Mas, por que escreveu isto? Com qual objetivo? Este trecho não parece deslocar-se do restante do verso, como algo a acrescentar pouco ou nada?


É inevitável observar que, para Deus, nada acontece sem o seu consentimento, sem a sua vontade estar manifesta, não podendo pegá-lo desprevenido, sem souber ou antever o acontecido. Não estou a defender a ideia de o Criador apenas vislumbrar, ver ao longe, todos os fatos e processos históricos para, somente então, decretá-los ou predestiná-los. Deus não é assim, contra-atacando ou reagindo a uma ação prévia. Antes ele é a causa primeira e última de todas as coisas, aquele pelo qual tudo se realiza, ou então nada viria a se conceber. Ele não é um espectador assistindo, com passividade, os personagens da história (toda a criação) agindo e interagindo como bem entenderem. Não, porque dois dos seus atributos são a soberania e todo-poder, de ser o agente da história, o seu construtor, motivado exclusivamente pela sua vontade, sem nos esquecer dos demais atributos, os quais se comunicam de forma inseparável em seu ser, a união de toda a sabedoria, toda a santidade, todo o amor, e tudo o mais a constituir o caráter e o ser divino.

Deus não vislumbra os acontecimentos, como se algo houvesse escapado ao seu controle, realizando-se à sua revelia, onde os fatos estariam à margem da sua vontade e poder, envolvendo-o caoticamente, como um bombeiro sem água diante de um incêndio. Ele não é inepto, omisso ou desinteressado, negligente ou incapaz de cuidar de toda a sua criação, nos mínimos e mais insignificantes detalhes, para que tudo esteja sujeito à sua ordem, à sua vontade soberana, como está escrito:

“E não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma: temei antes aquele que pode fazer perecer no inferno a alma e o corpo. Não se vendem dois passarinhos por um ceitil? E nenhum deles cairá em terra sem a vontade vosso Pai. ” (Mt 10.28-29)

Ora, se nem um passarinho, por menor que seja, cai sem se manifestar se forma objetiva e direta a vontade divina, podemos dizer o mesmo daqueles homens iníquos a invadirem a igreja primitiva, intentando destruí-la? Estaria o Senhor agindo como um omisso, leviano? Ao ponto de ser surpreendido? Quanto isto, o autor nega com vigor e veemência, pois eles haviam sido antes escritos para esse fim.

Mas, qual seria esse fim?

Ele usa a expressão “juízo”, designando uma sentença, uma condenação, punição; ou seja, aqueles homens, antes determinados ou escolhidos para adentrarem à igreja e praticarem suas impiedades, também foram feitos réus antes mesmo de nascerem, antes de praticarem o mal inevitavelmente praticado. Na mente divina, há um nítido objetivo para estarem ali, ou um leque de objetivos a fim de cumprirem um propósito específico. Poderia citar, por exemplo, a finalidade de purificar, amadurecer e fortalecer, a igreja contra combates ainda  piores a serem enfrentados no futuro. O certo é haver Deus escolhido aqueles homens maus para fazerem uma determinada obra na igreja, com um fim definido, e, por terem-no realizado, seriam irremediavelmente condenados.

O verso está a ressaltar a soberania divina e o seu caráter cuidadoso para com a igreja, mesmo trazendo sobre ela lutas e sofrimentos, algo que não podemos aquilatar em detalhes por causa da nossa pequenez e incapacidade de alcançar perfeitamente a mente de Deus (como pode a mente limitada, imperfeita e pecaminosa do homem compreender totalmente a mente infinita, perfeita e santa do Senhor?), mas podemos aceitar, como verdadeira, visto ser um dos pontos mais relatados nas Escrituras, revelando-nos um Senhor definido, necessário, e de deliberada resolução; o Deus a mover todas as coisas para um fim, as quais não acontecem pela aleatoriedade ou casualidade, mas pela determinação ou conselho divino. Em outras palavras, o autor está a falar-nos de uma doutrina estigmatizada e demonizada pela maior parte da igreja na atualidade, a doutrina da predestinação; Deus predestinando a igreja a passar por essas provações, assim como predestinou aqueles homens iníquos para afligirem-na.

Considero por bem ressaltar, mais uma vez, este ponto: a ação divina não é passiva, do tipo, Deus viu que o homem se salvaria, se santificaria, se esforçaria em entrar no Reino, aceitá-lo-ia e, então, somente então, Deus o predestinaria e o elegeria. Mas que eleição é essa onde o eleito é quem se auto predestina? Onde o escolhido se auto escolhe e impõe a sua escolha por seus próprios méritos para aquele que o predestinou? O que vem primeiro: a predestinação, ou o esforço do eleito em satisfazê-la e, por fim, ser predestinado? Seria o mesmo que dizer que alguém se afogou antes de entrar na água.


Nota: Excerto do Capítulo 3, do meu livro sobre o comentário à Carta de Judas, a ser lançado em breve.

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