13 fevereiro 2023

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 1: A Bíblia: Única Verdade Insofismável!























Jorge F. Isah


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A) INTRODUÇÃO:


Meus irmãos, boa noite!

Antes de entrar propriamente nas questões doutrinárias da Confissão de Fé Batista de 1689, farei uma pequena introdução desse evento histórico, mas adianto que não encontrei muitas informações em minhas consultas, porém, no que foi possível encontrar, creio que servirão para que os irmãos tenham uma ideia daquilo que estaremos estudando, a partir de hoje, com mais detalhes:

1) Houve uma 1a. Confissão de Fé Batista de Londres em 1644, que foi a predecessora da que iremos estudar. Essa confissão antecedeu mesmo a famosa CFW – Confissão de Fé de Westminster, concluída em 1646 pelos presbiterianos.

2) Ambas as Confissões de Fé Batistas de Londres são reformadas e calvinistas, ou seja, defendem os princípios do livre exame da Bíblia [devemos entender que há uma grande diferença entre livre exame e livre interpretação. Durante séculos, a Igreja Católica proibiu a leitura da Escritura por leigos, de forma que apenas o clero tinha acesso a ela. Até mesmo ter uma Bíblia era pecado. Com a reforma protestante, através de Lutero, defendeu-se o livre exame da Bíblia; qualquer pessoa poderia ter acesso direto ao texto sagrado sem a dependência de um clérico fazê-lo em seu lugar (antes de Lutero, que traduziu a Bíblia para o alemão, algo quase impossível em seu tempo, tendo-se em vista a obrigatoriedade da Bíblia ser impressa e lida em latim; houve quem chegou a traduzir a Bíblia para as suas línguas pátrias, como John Wycliffe, um reformador inglês anterior à própria Reforma Protestante). Contudo, isso não quer dizer que qualquer um pode interpretá-la ao seu bel-prazer, distorcendo-a, desprezando a sua autointerpretação, pois a Escritura é autointerpretativa, e os vários séculos em que homens santos debateram e definiram pontos que estão presentes no texto mas que são difíceis de compreender (2Pe 3.16). Então todos temos acesso hoje à Sagrada Escritura, mas tendo-se o cuidado de não tirar ou colocar nela aquilo que ela não diz, o que normalmente acontece na forma de erro doutrinário ou heresia]; a defesa da salvação somente pela graça de Deus, e o batismo por imersão somente aos fiéis adultos, dentre outros pontos.

3) As Confissões de Fé de Londres de 1644 e 1689 surgiram pela necessidade de se distinguir os Batistas Particulares ou Especiais dos Batistas Gerais. Aqueles creem na salvação como dom exclusivo de Deus, e que através da sua escolha soberana derramará sobre o eleito a sua graça e misericórdia. Por isso se crê que a expiação de Cristo na cruz não foi por todos os homens, mas somente por aqueles que o Pai lhe deu; enquanto os Batistas Gerais acreditavam na expiação vicária de Cristo por todos os homens, e de que os homens colaboravam, de alguma forma, com a sua salvação.
Este ponto, da expiação vicária de Cristo, será apresentado mais à frente. Aqui interessa-nos apenas delinear os motivos pelos quais urgiu-se a elaboração das duas confissões de fé.


ALGUMAS QUESTÕES SOBRE AS CONFISSÕES DE FÉ:

1) Elas não são infalíveis e inerrantes, ainda que os pontos abordados por elas tenham como fonte direta a Escritura Sagrada, mas somente esta é a infalível, inerrante e inspirada palavra de Deus.

2) Elas têm o objetivo de declarar publicamente aquilo que os batistas creem, pregam e ensinam.

3) Elas foram redigidas pelos puritanos.

4) Têm por objetivo orientar e definir princípios claramente delineados nas Escrituras a fim de se evitar os erros e heresias que o inimigo persistentemente insiste em implantar na Igreja, através de seus servos, os quais Paulo chamou de lobos cruéis [At 20.29].


POR QUE ESTUDAR ESTA CONFISSÃO DE FÉ E NÃO OUTRA?

A resposta é simples: esta é a melhor e a mais detalhada confissão de fé batista já produzida, e dela derivaram todas as demais confissões de fé batistas [Filadélfia e New Hampshire, p. ex] . Ela se torna ainda mais importante por nos apresentar o estudo de questões caras, fundamentais e imprescindíveis à vida de qualquer cristão: o conhecimento de Deus e da sua vontade. Nela encontraremos capítulos que expõem a doutrina das Escrituras, o Deus Tri-uno, a Criação, a Igreja, a Salvação, o Matrimônio... ou seja, tudo o que Deus nos revelou através da sua palavra como sendo a sua vontade, e que para nós é a regra de fé e vida.
Então, sem mais delongas, vamos direto ao nosso estudo.


B) CAPÍTULO 1: AS SAGRADAS ESCRITURAS

[O texto abaixo, em itálico, é a transcrição direta da C.F.B. de 1689]
1. A Sagrada Escritura é a única regra suficiente, certa e infalível de conhecimento para a salvação, de fé e de obediência. A luz da natureza, e as obras da criação e da providência, manifestam a bondade, a sabedoria e o poder de Deus, de tal modo que os homens ficam inescusáveis; contudo não são suficientes para dar conhecimento de Deus e de sua vontade que é necessário para a salvação.
Por isso, em diversos tempos e por diferentes modos, o Senhor foi servido revelar-se a si mesmo e declarar sua vontade à sua igreja. E para a melhor preservação e propagação da verdade, e o mais seguro estabelecimento e conforto da Igreja, contra a corrupção da carne e a malícia de Satanás e do mundo, foi igualmente servido fazer escrever por completo todo esse conhecimento de Deus e revelação de sua vontade necessários à salvação; o que torna a Escritura indispensável, tendo cessado aqueles antigos modos em que Deus revelava sua vontade a seu povo.
[2Tm 3.15-17; Is 8.20; Lc 16.29-31; Ef 2.20; Rm 1.19-21, 2.14-15; Sl 19.1-3; Hb 1.1-2; Pv 22.19-21; Rm 15.4; 2Pe 1.19-20]


RESUMO:

1- O primeiro ponto apontado pela CFB é de que a Bíblia é a nossa única, infalível e suficiente regra de fé e vida. Todos os crentes, de uma forma geral, afirmam esta verdade. Porém o que vemos não é bem isso. Cada vez mais os cristãos têm se distanciado da verdade para aderirem a conceitos temporais e falíveis, como as ciências humanas. Há uma substituição progressiva do ensino bíblico, o conhecimento do que Deus nos revelou, pelo conhecimento elaborado pelo homem. Com isso, conceitos antropológicos, psicológicos e sociológicos têm tomado o lugar da verdade e transformado princípios absolutos em relativos e efêmeros. Para se ter a Bíblia como regra de fé e vida é necessário a sua leitura, exame e estudo, e reconhecê-la como a fiel, santa e perfeita palavra de Deus. Sem o seu conhecimento ninguém pode afirmar que ela dirige e guia a sua vida, pois será impossível alguém guiar-se e dirigir-se sem saber aonde ir e como ir. A Escritura é o “mapa” que nos levará seguramente ao encontro da vontade perfeita de Deus.

2- A Bíblia foi escrita no decorrer de aproximadamente 1.500 a 2.000 anos, por 40 autores diferentes, mas não encontramos um livro confuso, disforme e contraditório, como muitos querem fazer parecer. Ela tem uma unidade perfeita, somente possível porque Deus é o seu autor. Pelo poder do Espírito Santo, homens inspirados redigiram o santo conselho de Deus para a humanidade, de forma que nela não há erros, falhas, discrepâncias, incongruências, paradoxos ou conflitos que indiquem falibilidade e errância, comprometendo a sua autoria sobrenatural.

3- A natureza nos revela que há um ser criador, mas não é capaz de nos revelar o Deus pessoal, Senhor e salvador. Em certo aspecto, a revelação natural ou geral pode nos indicar que o Criador é Todo-Poderoso; ou seja, ela pode revelar a existência do Criador e de que esse Criador tem todo o poder, pelo qual a Criação é sustentada.

4- O homem se tornou inescusável ou indesculpável diante de Deus pois o Senhor deu a todos os homens o "senso divino", a ideia inata de si mesmo, de revelar-se a todos os homens; e isso se deu porque todos os homens são criados à imagem de Deus.
[Certa vez, em uma discussão com um ateu, eu disse que todos os homens nasciam teístas, que todos criam em Deus, mas que com o passar do tempo, a rebeldia se instalava de tal forma no coração do homem que ele negava completamente a Deus, tornando-se um ateu. Portanto, o ateísmo é uma degeneração, uma subversão e corrupção do "senso divino" que todo homem possuí, de tal forma que ele tenta anulá-lo com a sua descrença].

5- Porém, a revelação natural é insuficiente para que o homem tenha o exato conhecimento de Deus e de sua vontade necessária para a salvação. O que torna indispensável e fundamental a revelação especial, a Palavra de Deus. Pois Deus somente será revelado proposicionalmente, como realmente é, por intermédio de sua palavra. Com isso, temos que apenas as pessoas que têm acesso à Sagrada Escritura podem realmente conhecer a Deus. Fora dela, há "deuses", não o Deus verdadeiro e vivo.

6- Assim, tanto a sua natureza, como caráter, obra e vontade são comunicadas exclusivamente aos homens pela revelação escriturística, tanto no Antigo como no Novo Testamento.

7- Deus determinou que a revelação oral fosse registrada aos homens de maneira escrita para que servisse de instrução, orientação e edificação do seu povo; de maneira que o próprio Deus é o seu autor e aquele que preserva a sua palavra da corrupção, da maldade e da destruição por Satanás e seus servos. De maneira maravilhosa, Deus conservou e conservará a sua Palavra inerrante e infalível para que o seu povo seja por ela guiado, e assim, todos nós, possamos conhecê-lo e servi-lo segundo a sua sabedoria e vontade santas e eternas.

8- A salvação somente é revelada ao homem através da revelação especial, e por ela todos os eleitos serão salvos [Rm 10].


UM PONTO IMPORTANTE A SE ABORDAR: a Bíblia é a verdade ou ela contém a verdade? O que pensam os irmãos sobre isso?

Para explicar a primeira ideia, farei duas figuras no quadro negro que, na verdade, é um quadro branco: Na primeira figura temos um círculo de 20 cm de diâmetro; vamos chamá-lo de Bíblia. O segundo círculo tem também o diâmetro de 20 cm; vamos chamá-lo de verdade. Para nós, cristãos bíblicos, o círculo "Bíblia" e o circulo "Verdade" são sinônimos; tanto a Bíblia é a verdade, como a verdade é a Bíblia. Podemos então colocar entre os círculos o sinal de igualdade [=], de forma que a Bíblia é igual à verdade, e vice-versa [Bíblia=Verdade, ou seja, utilizamos nomes diferentes para dizer a mesma coisa].

Na segunda ideia temos o seguinte: farei um círculo de 10cm de diâmetro e nele colocarei o nome "Verdade", farei um círculo de 20cm de diâmetro e colocarei nele o nome "Bíblia". O que se quer dizer com a Bíblia contém a verdade é que uma parte dela, esse círculo menor, é que se pode considerar como verdadeiro. Justapondo-se um círculo ao outro, teremos uma boa parte da Bíblia como não verdadeira, ao ver de quem defende esse esquema maligno. Assim, como resumo, teremos o seguinte: a Bíblia é verdadeira apenas em alguns aspectos, como os necessários e suficientes para a salvação. Podemos resumir o esquema: V ∈ B, a verdade é elemento da Bíblia, está em B, pertence a B, mas B não é completamente V [o símbolo E é utilizado nos estudos matemáticos de conjuntos. Indica que determinado elemento pertence a um conjunto. Aqui a verdade é um elemento e a Bíblia é o conjunto de elementos, onde a verdade é um deles e a mentira o outro].

Vejam bem o perigo dessa afirmação. Quando se diz que a palavra de Deus contém a verdade, duvidamos de que ela seja a verdade, portanto como é possível dizer o que seja ou não verdadeiro na palavra? Se nem tudo o que está descrito nela é verdadeiro, como pode-se saber o que é falso ou não? O fato é que esse espírito que paira sorrateiro pelas igrejas é o espírito maligno que está à caça dos incautos e tolos para os manterem na incredulidade e ignorância. Não é possível que a Palavra de Deus seja verdade e mentira ao mesmo tempo. Ou que seja meia-verdade, e contenha enganos. Não é possível que Deus tenha também negligenciado a preservação da sua revelação. Quem assim crê labora para o erro e a mentira.

E, nesse caso, o que temos é nada além de soberba, arrogância e superioridade travestidos de intelectualidade. Quando o homem se coloca na condição de apto a “julgar” a Escritura, faz-se superior a Deus. Cristo disse que devemos julgar não pela aparência, mas pela reta justiça [Jo 7.24]. Acontece que apenas Deus é justo e reto, logo, o único capaz de um julgamento infalível. Nós, pelo poder de Deus, podemos ter alguns julgamentos retos e justos, mas, na maioria das vezes eles são como nós, imperfeitos e injustos. Portanto, apenas Deus é aquele que pode julgar todas as coisas de maneira santa e perfeita. Mas os homens se consideram capazes do mesmo; e, pior, se consideram capazes de julgar algo que está muito acima da capacidade máxima de julgamento humano: a palavra de Deus. E ao fazê-lo, julgam o próprio Deus, como loucos que são; dando vazão somente aos seus intentos carnais, ao orgulho e prepotência. Por isso investem-se de uma autoridade que não têm e rejeitam a autoridade divina a qual deveriam se submeter, mas, em estado de rebeldia, colocam-se no lugar que não lhes pertencem, tornando-se ídolos de si mesmos, para a sua própria condenação.

Há ainda aqueles que afirmam que apenas Deus é a verdade e que, por isso, a Bíblia não pode ser a verdade, pois não é Deus. Digo que a primeira afirmação é verdadeira, Deus é a verdade. O Senhor Jesus nos disse: Eu sou o caminho, a verdade e a vida [Jo 14.6]. Mas como se pode saber isso? Se não se conheceu pessoalmente o Senhor Jesus? Quero dizer, se não o viu, nem o tocou... Crer que Deus é a verdade somente é possível pela Escritura, a qual afirma ser Deus verdadeiro. Agora, se creio que ela não é a completa verdade, como crer que Deus é a verdade? Qual o critério de seleção para determinar o que seja verdade ou não? Se a equação Bíblia = Verdade não se fizer, não é possível se afirmar nada quanto a Deus e a verdade, pois apenas a Escritura é capaz de revelar tanto Deus como a verdade, de forma que Deus é a verdade. Foi o pedido de Cristo ao Pai, por suas ovelhas: "Santifica-os na tua verdade; a tua palavra é a verdade" [Jo 17.17].

O cristão bíblico [e nós, batistas, cremos na Bíblia como toda a verdade, como a fidedigna palavra de Deus, como todo o conselho divino para o homem, desde a primeira letra em Gênesis até a última letra em Apocalipse], jamais podemos nos enganar com as declarações aparentemente intelectuais, aparentemente sábias, mas que escondem apenas o engano e a fraude, e um caminho de trevas. Se é possível não crer em toda a sua inteireza, pureza e unidade [que revelam o pensamento santo e perfeito da mente santa e perfeita de Deus], não há como crer em algo e descrer em outra coisa, sem que se seja possível desconfiar de toda a estrutura da Escritura. Como será possível avaliar se o que o Senhor Jesus disse é verdadeiro ou falso? Por critérios humanos? Falíveis, imperfeitos e muitas vezes perversos?

Deus somente pode ser conhecido por sua palavra revelada, escrita e entregue à Igreja em todos os tempos através da Escritura Sagrada. E a Bíblia é verdadeira porque procede da mente do Deus verdadeiro.

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Notas:
1- Este é o resumo da aula que ocorreu em 25.09.2011 na E.B.D. do Tabernáculo Batista Bíblico

2- Agradeço ao pr Luiz Carlos Tibúrcio e aos demais irmãos do T.B.B. pela honra e alegria com que estamos estudando esta importante confissão de fé; e o privilégio de estar incumbido de levá-la aos demais irmãos. Deus nos abençoe, edifique e instrua através deste estudo, para a honra e glória do seu santo nome.





07 fevereiro 2023

"Regozijai-vos no Senhor!": Sermão em Filipenses 4.4






Por Jorge F. Isah




ESBOÇO DA PREGAÇÃO FILIPENSES 4.4

Todos de pé para a leitura da palavra de Deus, por favor, em Filipenses 4.1-4:

"Portanto, meus amados e mui queridos irmãos, minha alegria e coroa, estai firmes no Senhor, amados. rogo a Evódia, e rogo a Síntique, que sintam o mesmo no Senhor. E peço-te também a ti, meu verdadeiro companheiro, que ajudes essas mulheres que trabalharam comigo no evangelho, e com Clemente, e com os meus outros cooperadores, cujos nomes estão no livro da vida. Regozijai-vos sempre no Senhor; outra vez digo, regozijai-vos"

RESUMO DA PREGAÇÃO ANTERIOR:

Farei um resumo do visto na semana passada, pois este sermão é continuação daquele:

1) Meditamos sobre os versos 1 a 3, do capítulo 4 de Filipenses.

2) Vimos que a igreja estava sendo perseguida por judeus e romanos; muitos cristãos eram presos e destes, vários eram condenados à morte; a igreja encontrava-se em angústia e aflição, talvez até mesmo desanimada.

3) Paulo estava preso em Roma, sob rigorosa vigilância da guarda pretoriana, mas, mesmo assim, as cadeias não o impediram de evangelizar e levar muitos da “casa de César” à conversão, a reconhecerem Cristo como Senhor e Salvador.

4) A prisão de Paulo e os frutos do seu ministério mesmo impossibilitado de se deslocar, levou muitos irmãos ao ânimo, a pregarem Cristo sem temor.

5) Ele ordena-nos a estarmos firmes em Cristo (não como um pedido, conselho ou possibilidade, mas como uma obrigação).

6) O apóstolo exorta Evódia e Síntique a voltarem à unidade, à harmonia e a abandonarem a inimizade e disputa entre elas; voltando-se a um mesmo pensamento, um mesmo propósito, colaborando-se mutuamente e com os outros irmãos.

Agora, ele nos ordena, nos exorta, insufla, a alegria, ao gozo. Portanto, nos coloquemos de pé e leiamos, todos, o verso 4.4, de Filipenses:

“Regozijai-vos sempre no Senhor; outra vez digo, regozijai-vos.”

A palavra regozijar significa alegria, contentamento, satisfação, júbilo. Pare um pouco e pense; darei alguns segundos para responder: Eu me regozijo no Senhor? Eu me alegro em Cristo? A minha vida é plena de satisfação nele ou não?


INTRODUÇÃO:

- Complexidade do tema “Alegria sempre”;

- Assunto amplo, abrangendo desde a questão do sofrimento, pelo da perseverança ou preservação dos santos, testemunho diante dos homens e na obra de evangelização. O regozijo no Senhor está ligado diretamente a estes assuntos;

- Mas tratarei inicialmente de quando a alegria acontece em meio às tribulações, sofrimentos e dores.

- O senso comum diz que o sofrimento é por alguma culpa ou coisa de ruim que fizemos (os judeus atribuíam o sofrimento ao pecado cometido).

- Teologia positivista ou da prosperidade que afirma a vitória do crente ou seja, de que ele não pode e não deve sofrer e, se acontece, é por falta de fé.

- Mas, o que a Escritura nos diz?

. 2 Co 7.4: Paulo afirma conseguir alegrar-se nas suas tribulações dos demais irmãos;

. Rm 12.12: Alerta-nos a ter paciência nas tribulações;

. Mt 5.11-12, Jesus disse que seriamos bem-aventurados se exultássemos e alegrássemos nas injúrias, perseguições e todo o mal que fizessem contra nós.

.1 Pe 4.13, Pedro exorta-nos a alegrar-nos em participar das aflições de Cristo.

Este é um tema a suscitar muitas pregações e estudos, pois se há algo que o crente pode ter certeza é de não somente crer em Cristo, mas de também padecer por ele (Fp 1.29).

Provavelmente não chegaremos à unanimidade quanto a alguns pontos, mas podemos chegar à unidade de clamar a Deus para ele nos fazer alegres sempre.

QUAL É A ALEGRIA?

Há aquele hino no Cantor Cristão, “Sou Feliz”, No. 398, e em sua primeira estrofe diz:

“Se paz a mais doce me deres gozar
Se dor a mais forte sofrer, oh! Seja o que for,
Tu me fazes saber que feliz com Jesus sempre sou!”

- Os autores dizem que em qualquer situação, benéfica ou desfavorável, somos felizes com Jesus.

- Mais do que isto, Cristo é a causa da nossa alegria, o único motivo pelo qual podemos ser verdadeiramente alegres.

- Podemos dizer, convictos, o mesmo que Paulo nos ordena, “Regozijai-vos sempre” (1 Ts 5.16)?

- Paulo está ordenando, exortando-nos ao regozijo, já que o verbo está no imperativo, como uma obrigação, um dever, mas também como um privilégio, uma honra.

- Na Carta aos Filipenses, o Apóstolo faz referência a gozo, a alegria, 14 vezes, em um momento dramático para a igreja e para si mesmo.

- “E, ainda que seja oferecido por libação sobre o sacrifício e serviço da vossa fé, folgo e me regozijo com todos vós. E vós também regozijai-vos e alegrai-vos comigo por isto mesmo” (2.17-18).

- Sacrifício = derramamento de vinho ou licores em honra aos deuses. No Brasil, os bebuns têm o hábito de derramar a aguardente no chão em honra ao “santo”. Paulo está-nos dando a ideia de deixar a sua vida esvair-se, gastá-la, em honra dos irmãos.

- É possível o regozijo em meio à dor e o sofrimento?

- O fato da alegria do crente ser diferente da alegria do homem natural.

- A alegria no homem natural se deve, em sua maioria, a fatores externos: conforto, dinheiro, saúde, morar em um duplex com uma bela vista, estar junto das pessoas que amamos, comprando, bebendo, acumulando bens, etc.

- A alegria do incrédulo é dependente de coisas condicionais, tendo-as se satisfaz, não tendo-as entristece-se.

- O homem natural não se alegrará jamais em meio à tristeza, pois falta-lhe os “meios” para alcançar o estado de alegria.

- O mundo exterior não traz segurança, e as coisas que nos trazem alegria podem mudar de uma hora para outra: perde-se a saúde, o dinheiro, a juventude, a paz, pessoas amadas, etc, e, acontecendo a tristeza e o desânimo tomam o seu lugar.

- Há pessoas detentoras de todos esses “meios” e muitos mais, como beleza, eloquência, inteligência, poder, influência, etc, e, ainda assim, não se regozija com o que tem.

- Satanás veio para roubar, matar e destruir.

- No caso do crente, ele tem de se alegrar mesmo nos momentos mais dolorosos e sofridos. A nossa alegria não depende dos “meios” externos para subsistir. Por que? Porque é a comunhão, o relacionamento, a intimidade com Deus, que permite-nos estar e ser alegres todo o tempo.

- E isto se dá independente dos acontecimentos e fatos exteriores.

- O crente é como o mar, na superfície, ele é sacudido pelos ventos, provocando uma inconstância, uma instabilidade, enquanto nas profundezas do mar há um estado permanente de segurança, onde as intempéries da superfície não podem alcançá-la, nem alterá-la.

- Fp 3.1: “Resta, irmãos meus, que vos regozijeis no Senhor”.

- Qual o significado de “resta”? Seria a busca em mundo caído de alegria e, não encontrando-a, resta apelar para Cristo com última esperança? Ou ele está demonstrando que, em todo o universo, não há alegria perene a não ser em Cristo, ou seja, somente nele é possível encontrar-se a alegria verdadeira?

- A única fonte segura de regozijo é o Senhor.


COMO BUSCAR A ALEGRIA?
 

1) Deus ser o centro da nossa vida;
Em 1 Coríntios 29-31, lemos a respeito do cristão: “Para que nenhuma carne se glorie perante ele. Mas vós sois dele, em Jesus Cristo, o qual para nós foi feito por Deus sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção; para que, como está escrito: Aquele que se glória glorie-se no Senhor”.

2) Reconhecer a nossa total dependência de Deus.
É o que o profeta diz:
“Regozijar-me-ei muito no Senhor, a minha alma se alegrará no meu Deus; porque me vestiu de roupas de salvação, cobriu-me com o manto de justiça, como um noivo se adorna com turbante sacerdotal, e como a noiva que se enfeita com as suas jóias”. (Is 61.10)

3) Cristo é a própria alegria:
“O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que temos contemplado, e as nossas mãos tocaram da Palavra da vida (Porque a vida foi manifestada, e nós a vimos, e testificamos dela, e vos anunciamos a vida eterna, que estava com o Pai, e nos foi manifestada); O que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que também tenhais comunhão conosco; e a nossa comunhão é com o Pai, e com seu Filho Jesus Cristo. Estas coisas vos escrevemos, para que o vosso gozo se cumpra.” (1 Jo 1.1-4).

4) Entender que a alegria é um dom divino:
“Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor; do mesmo modo que eu tenho guardado os mandamentos de meu Pai, e permaneço no seu amor. Tenho-vos dito isto, para que o meu gozo permaneça em vós, e o vosso gozo seja completo" (Jo.15.11).

5) E de que Deus é aquele que nos enche de alegria e gozo:
“Ora o Deus de esperança vos encha de todo gozo e paz em crença, para que abundeis em esperança pela virtude do Espírito Santo” (Rm 15.13).



O PECADO TIRA-NOS A ALEGRIA

- Porque ele nos afasta do Senhor.

- Arrependimento.

- "Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda a injustiça” (1Jo 1.9).

- Fugir do pecado.


O ÓDIO E O RANCOR TIRA-NOS A ALEGRIA

- Porque ele tira-nos o amor, e, se não amamos ao próximo que vemos como poderemos amar a Deus que não vemos? Novamente, João escreve:

“Nós o amamos a ele porque ele nos amou primeiro. Se alguém diz: Eu amo a Deus, e odeia a seu irmão, é mentiroso. Pois quem não ama a seu irmão, ao qual viu, como pode amar a Deus, a quem não viu? E dele temos este mandamento: que quem ama a Deus, ame também a seu irmão”. (1 Jo 4.19-21)

- O Senhor disse no Sermão do Monte:

“Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem; para que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus” (Mt 5.44); 



e, ainda, na oração do Pai Nosso:
 
“E perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores... Porque se perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai celestial vos perdoará a vós; se, porém, não perdoardes aos homens a suas ofensas, também vosso Pai vos não perdoará as vossas ofensas” (Mt 6. 12, 14-15).

- Porque o que seria o “não perdão” senão uma forma de se vingar do ofensor? Acontece que o nosso coração fica aprisionado nessa armadilha, cujo objetivo principal é impedir-nos de ter o essencial, de estar em conformidade, em união, com o Espírito do Senhor.


CONCLUSÃO:

Como já disse, a alegria é a estreita, profunda e intrínseca relação com o Senhor. Ele é a nossa alegria, e fora dela não há alegria verdadeira. Devemos ter o entendimento correto de o regozijar-se é uma dádiva, um dom divino, e privilégio concedido a nós. É algo essencial e da natureza do cristão bíblico, portanto, devemos clamar a Deus para nos fazer cada dia mais alegres, cada dia ele se torne mais suficiente em nossas vidas, cada dia queiramos mais e mais a sua presença, ao ponto de nos entristecermos quando isto não acontece. Pois somente assim poderemos, nas benesses e desfavores do dia-a-dia, estarmos alegres, em júbilo, regozijando-nos em Cristo. 



Notas: 1 - Pregação realizada no culto dominical do Tabernáculo Batista Bíblico;
2 -  Seria ideal a leitura deste resumo e a audição da pregação, disponível acima. 

04 fevereiro 2023

Desilução e Morte em "Neve de Primavera", de Yukio Mishima

 



Jorge F. Isah



Neve de Primavera é um livro belo, melancólico, intimista e apaixonante. Terminei a leitura há mais de um mês e somente agora me dispus a escrever algo sobre ele. Primeiro, ressalto o estilo refinado, elegante (diria clássico) na escrita de Mishima. Segundo, como outros autores japoneses contemporâneos, está em luta constante entre o Japão tradicional, anterior às Guerras Mundiais, e o país moderno e ocidentalizado após a derrocada no último conflito. Terceiro, a desilusão com a vida (muito distante do pedantismo e niilismo modernos, diga-se), a precariedade das relações onde as influências exteriores decretam o destino da vida à revelia dos desejos e vontades pessoais; em outras palavras, não existe autonomismo, e por mais que no Ocidente o discurso de independência seja propalado e difundido, não é real e está muito além da capacidade individual de se garantir o futuro almejado ou a felicidade... Esta consiste de momentos fortuitos, quase arrancados a fórceps, entretanto cingidos pelos temores, perigos, vicissitudes íntimas ou públicas, a proclamar a todo tempo: alegre-se, enquanto é tempo! Quarto, a morte não alivia o sofrimento, mas se torna em passagem para o mundo metafísico (transmigração da alma ou reencarnação é um dos pilares do antigo espírito japonês) onde a carne, ao menos, é libertada.

Posto isso, escrever sobre o livro não é tarefa fácil, sem deixar algum spoiler. Esforçar-me-ei ao máximo para não fazê-lo... A história gira em torno da amizade de Kiyo e Satoko, criados juntos desde a infância e pertencentes às famílias de nobres nipônicos: Matsugae e Ayakura; aquela próspera financeiramente e em ascensão na aristocracia, enquanto a segunda desfrutava dos favores imperiais, mas estava em franca decadência.

Satoko é apaixonada por Kiyo que, apesar de reconhecer a sua beleza incomum e notável, não acolhe as suas investidas. Por terem-se criados juntos, talvez a veja como uma prima, uma jovem mimada e sempre disposta a colocá-lo em embaraços. E isso agrava-se pela têmpera introspectiva, quase sombria, de Kiyoaki. De poucos amigos, conecta-se apenas com Honda, colega de escola, estudioso, inteligente e compassivo, que praticamente “mendiga” o afeto de Kiyo, que, entretanto, não retribui similarmente, nem reconhece os esforços daquele, e mantem-se envolto em suas inquietações cotidianas; e, ainda, dois príncipes recém-chegados de Sião, a complementar seus estudos (na mesma escola de Kiyo e Honda), com os quais comunica-se apenas em inglês, já que não dominam fluentemente o japonês.

Os elementos de uma tragédia clássica estão instalados, entre os sentimentos e a razão, entre sonhos e realidade, o impossível e o tangível, o sal e o doce, culminam em frustrações e dores pelas próprias escolhas ou por deixar-se arrastar na avalanche de desejos incontroláveis. E, neste aspecto, o menosprezo e o orgulho aliados à intransigência e pirraça acabam por “desencavar” o amor imersivo e torná-lo em obsessão, no desejo intenso, na excitação incomum, a perigar as próprias vidas, as famílias e até mesmo a estabilidade e a honra imperiais... Se por um lado Kiyo encontrava-se recluso em seu mundo, preocupado em não se expor ou fazer-se notado (a intimidade, partilha apenas com o tutor; ainda assim em raros momentos), num estado de letargia e desinteresse, o aflorar do amor torna-o impulsivo, descomedido, uma ameaça para si e todos ao seu redor. Nem a compaixão de Honda subsiste incólume, benéfica, ao satisfazer o pedido do amigo, a causar-lhe remorso e compunção pela falta de juízo, de avaliar corretamente a gravidade e consequências do seu ato solidário mas fatal.

Os conflitos e interesses estão todos lá, explícitos ou subentendidos, alçados pelo lirismo ou sensibilidade, pelo ímpeto ou hesitação, a simplificação e complexidade, ânimo e desespero, ou quantos mais substantivos se escreva, e ainda assim rasparão sutilmente a superfície da complexa e entrelaçada teia onde a humanidade é esmiuçada em seu exotismo e capricho.

Não é um livro pesado, a se carregar um fardo, muito menos enigmático, pois Mishima diz o que tem a dizer, e o diz tão harmônico e requintado que não se torna penoso ou suportável mas irresistível...

Yukio foi chamado de o “Thomas Mann nipônico”... Não sou crítico literário, apenas leitor compulsivo e cauteloso com o passar do tempo, mas havendo peculiaridades entre eles, não o consideraria semelhante ao grande autor alemão. Ele é Yukio Mishima, ou melhor, Kimitake Hiraoka, seu verdadeiro nome, e para mim isso basta! Compará-lo, seja com quem for, é tirar um pouco do seu gênio e qualidade, ainda que eu saiba ser impossível, a qualquer escritor, não se apoiar nos ombros de autores do passado (Mann e Mishima foram, pode-se dizer, contemporâneos), reservando a cada um suas próprias idiossincrasias.

O Japão mudaria, se modernizaria, se ocidentalizaria, para o desgosto e aborrecimento do jovem tradicional, ao vê-lo fugir das próprias raízes e entregar-se ao materialismo hespérico. O livro versa também sobre isto, a sutil invasão de elementos alheios e desfigurantes da índole e caráter nipães.

E talvez, apenas talvez, a morte não seja a verdadeira derrota.


Nota: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga No. 13
____________________ 

Avaliação: (****) 

Título: Neve de Primavera 

Autor: Yukio Mishima 

Páginas: 374


Sinopse: "Tóquio, 1912. O mundo hermético da antiga aristocracia da era Meiji está sendo invadido por ricas famílias das províncias sem o peso da tradição e com costumes e aspirações que imitam o modelo europeu da Belle Époque. Dessa elite emergente faz parte o ambicioso marquês de Matsugae, cujo filho Kiyoaki é enviado para a elegante família do conde Ayakura, membro da nobreza em declínio, para ser preparado a assumir seu lugar na corte quando atingir a maioridade."




25 janeiro 2023

Objetivo Final















Por Jorge Fernandes Isah

     Em recente conversa, foi-me perguntado qual o objetivo de Deus para o crente. E, concluiu: seria a salvação? Pensei alguns segundos, e respondi quase de estalo: Não!
      Mas, então, qual o propósito de Deus para as nossas vidas?
Sei que o fim de tudo é a sua glória. Ele não quer nada menos que isso, que o seu nome seja louvado por toda a criação, e em especial, pelo seu povo. Esse é o objetivo final de Deus para a sua obra, que ela o exalte, revelando-o como Senhor e Criador bendito e glorioso. Acontece que essa é a resposta para outra pergunta, não aquela.
    Na verdade, pode-se dar vários significados à pergunta, e abordá-la em múltiplas formas, e em diversos contextos. Desde a importância do cristão na igreja, como parte do corpo e sua contribuição para a obra dos santos, como a sua ação individual na família, no trabalho, na escola, na comunidade. Há aspectos e áreas em que o crente atuará: nas artes, na cultura, na política, filosofia e, sobretudo, na religião. Mas nada disso se configura o objetivo divino, antes são os meios pelos quais o Senhor nos usará para realizar a sua obra, e responder à pergunta não formulada e já respondida, sobre o fim de tudo.
    Igualmente, a redenção, salvação, santificação não são os objetivos finais para o crente. Repito: Deus usará toda a sua obra para que o fim seja alcançado: a sua glória. Da mesma forma serão usados meios para que sejamos, ao final, exatamente o que ele quer que nos tornemos. Por isso, farei um resumo da Criação e Redenção, em alguns pontos específicos apenas, sem pensar em ser exaustivo.
   Deus criou o homem à sua imagem e semelhança [Gn 1.26]. Adão era para ser o “top” da Criação, a criatura perfeita, aquela que revelaria o esplendor da glória divina. Contudo Adão foi incapaz de preservar-se a si mesmo, e caiu no Éden [Gn 3.2-8]; e com ele, toda a humanidade caiu; com ele, morremos espiritual e fisicamente, de tal forma que tivemos os olhos abertos para o pecado [v.7] e fechados para Deus. É interessante como a Bíblia revela que os olhos de Adão e Eva foram abertos, e a conseqüência foi reconhecerem-se nus, necessitando guardarem-na em vestes cozidas de folhas de figueira. Ao mesmo tempo em que seus olhos estavam fechados para a comunhão com o Senhor, o que os fez esconderem-se de diante da sua face, entre as árvores do jardim [v.8].  Dali em diante, a constatação é a de que o homem se degradou progressiva e rapidamente, ao ponto da sua maldade se multiplicar sobre a terra “e que toda a imaginação dos pensamentos de seu coração era só má continuamente” [Gn 6.5]. É o que Paulo diz, também: “Porquanto, tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças, antes em seus discursos se desvanceram, e o seu coração insensato se obscureceu” [Rm 1.21]. O restante da história, não é preciso descrever.
                Uma pausa.
   Tudo no universo tem por objetivo revelar a Deus. O homem foi criado para isso. A Lei entregue a Moisés, também. Mas somente Cristo, o Filho Amado, foi quem o revelou [Jo 1.18]. Muito antes dos céus e terra surgirem, estava determinado que o Verbo encarnaria, far-se-ia homem como nós, para que Deus nos fosse revelado. Muito antes de Adão cair, estava certo que Cristo viria ao mundo. Pois, somente assim, seria possível conhecer o Pai na plenitude do Filho, “o qual, sendo o resplendor da sua glória, e a expressa imagem da sua pessoa” [Hb 1.3] mostrou-nos a si mesmo, Deus.
Como homem perfeito, santo e imaculado, diferente do Adão terreno, Cristo, o Senhor, o Adão celestial [1Co 15.46], encarregou-se de resgatar e formar, pelo seu sacrifício, poder e vontade, filhos verdadeiros do Deus vivo, como está escrito: “mas recebestes o Espírito de adoção de filhos, pelo qual clamamos: Aba, Pai.... E, se nós somos filhos, somos logo herdeiros também, herdeiros de Deus, e co-herdeiros de Cristo: se é certo que com ele padecemos, para que também com ele sejamos glorificados” [Rm 8.15, 17].
               Novo parênteses.
  Quando Paulo diz que com Cristo padecemos para que sejamos glorificados, descreve-nos exatamente o que aconteceu ao Senhor. Era necessário que o seu sangue fosse derramado para que houvesse paz, e “por meio dele reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, tanto as que estão na terra, como as que estão nos céus” [Cl 1.20]. Primeiro, humilhando-se e sujeitando-se à vontade do Pai, o santo fazendo-se pecador; aquele que não pecou levou sobre si os pecados de muitos, para congregar em si “todas as coisas, na dispensação da plenitude dos tempos, tanto as que estão nos céus como as que estão na terra” [Ef 1.10]. Com isso, Paulo não está a afirmar que todas as coisas serão reconciliadas com Cristo, nem todos os homens, nem todos os anjos. Não há perdão para satanás e seus demônios, nem para os ímpios, os quais não serão restaurados e nem participarão do reino celestial. Há, porém, a necessidade de uma redenção cósmica, onde todo o universo entrou em colapso e desordem por causa da desobediência no Éden, e será restaurado a seu tempo, visto a criação gemer com dores de parto, e estar sujeita à vaidade de quem a sujeitou, o homem; esperando a libertação da servidão da corrupção para a liberdade da glória dos filhos de Deus [Gn 3.17, Rm 8.19-22].
    No grego, a palavra congregar é anakephalaiomai que tem o significado de ajuntar tudo sobre um mesmo princípio unificador, ou seja, reunir os eleitos, homens e anjos, debaixo da mesma cabeça, Cristo. Ele é quem nos une, e nos manterá unidos sobre a sua graça eternamente. O apóstolo não está a falar de uma redenção universal, no sentido de que todos serão expiados e salvos, mas de uma redenção particular, somente para aqueles que o Pai entregou ao Filho para que por ele o seu nome fosse manifestado aos eleitos [Jo 17.6].
  Segundo, humilhando-se a si mesmo até a morte, Deus o exaltou soberanamente, “para que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho dos que estão nos céus, e na terra, e debaixo da terra. E toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai” [Fp 2.10-11]. Todos, sem exceção, santos e ímpios, anjos e demônios, se prostarão diante dele, e proclamarão que reina sobre tudo e todos, eternamente. E assim como Cristo, devemos padecer até a morte [no espírito carnal e físico], para sermos, com ele, glorificados na vida [temporal e eterna].
              De volta à pergunta original.
   Podemos afirmar que a eleição, o chamado, a regeneração e salvação, e a santificação não são os objetivos finais de Deus, mas partes do processo que culminará no objetivo final: que todos os seus filhos se tornarão como Jesus Cristo; “porque os que dantes conheceu também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos” [Rm 8.29]. Essa foi a resposta que dei naquela ocasião; Deus nos quer e sempre nos quis como a seu Filho Amado, de forma que tudo, desde o seu início, muito antes de fazer os céus e terra, tinha por certo isso: fazer um povo que em tudo fosse semelhante a Cristo, e pudesse reconhecer-se nele, como imagem agora perfeita, santa e imaculada, assim como ele é; assim como desfruta do amor do Pai, também o desfrutamos. Somos participantes em tudo que o Senhor também participa, a fim de que ele seja tudo em todos. Nem menos, porque a perfeição e santidade somente podem ser na medida exata de Cristo; nem mais, porque é impossível qualquer variação naquele que é, e se faz conhecido como o "Eu sou". 
           E o que ele é, jamais pode não ser.

09 janeiro 2023

Doutor Fausto, de Thomas Mann: tomando o lugar do diabo

 





Jorge F. Isah


Os livros de Thomas Mann não são fáceis de ler, muito menos explicar. Estão carregados de símbolos, analogias, referências históricas, literárias, filosóficas e religiosas que fazem a cabeça de qualquer um andar em círculos, feito barata tonta ou como o camundongo na roda, sem sair do lugar. Por isso, não é uma leitura a se fazer célere, mas requer tempo, ainda mais a necessidade de meditar em seu conteúdo parcimoniosa e diligentemente. Mann é meticuloso, detalhista e parece fazer uma pesquisa rigorosa dos temas e assuntos abordados em suas obras de forma a não apenas conhecer o assunto mas conhecer o suficiente para expô-lo como um mestre. Ele não se permite vacilos ou linhas supérfluas, pois tudo tem um propósito, cada personagem, lugar, ideia e ato. Óbvio ser um autor culto, no sentido mais reverente e erudito do termo, por isso não é igualmente fácil, e até aprazível, a leitura dos seus romances, novelas, contos e ensaios. É como alguém escavar uma grande rocha utilizando-se apenas de talheres: é preciso tempo, empenho e obstinação. Conheço algumas pessoas que desanimaram antes de uma dezena de páginas, alcunhando-o de pedante. Nada é mais injusto ou desproporcional do que isso. Eu mesmo vivo a indicá-lo a amigos e conhecidos, e depois de algum tempo, quando os interrogo, sempre me deparo com as justificativas: não tive tempo ou não gostei, é por demais grandiloquente. De minha parte, apesar de todas as dificuldades, impostas mais por minha própria defasagem do que alguma eventual falha intelectual-literária dele, insisto, e me deparo, não raramente, deslumbrado e arrebatado durante a leitura.

Fiz esta introdução para alertar o leitor de que as minhas impressões a seguir não são exaustivas ou dão a dimensão do universo “manniano”; são apreensões e impressões muitas vezes insatisfatórias e limitadas, na tentativa de arrastar um e outro para esse mundo complexo (não há aqui qualquer sugestão de hermetismo; fique claro!), entretanto fascinante e irresistível.

Quase todo mundo já se deparou, ao menos uma vez na vida, com a história de Fausto, o sábio humanista que vendeu a sua alma ao diabo (Mefistófeles) em troca da satisfação dos seus desejos. Mann utiliza-se da tragédia escrita por Goethe para fazer uma alegoria entre o personagem principal, Adrian Leverkühn, e a Alemanha, mais especificamente a Alemanha Nazista. Ao contrário de Goethe, o “Dr. Fausto” de Mann é implacavelmente derrotado; se em Goethe o “Fausto” alcançava a redenção, em Mann ele é punido severamente.

Mas antes de entrar nesse aspecto, há de se ressaltar o volume assombroso de informações contidas na narrativa sobre teologia, filosofia e, especialmente, música. Thomas teve o auxílio de Theodor Adorno (filósofo, musicólogo e compositor alemão pertencente à Escola de Frankfurt), que se tornou seu conselheiro, entre outros músicos e amigos, a elaborar os inúmeros detalhes e diálogos sobre composição musical. Chega a ser asfixiante o número de informações apresentadas, que para leigos e nada iniciados na arte criativa de ritmos e harmonias de sons como eu (em um trecho encontra-se pormenores a respeito do “dodecafonismo” criado por Leverkühn; entretanto, na vida real era originalmente de Schoenberg, e levou o autor a se retratar em edições posteriores, a reconhecer a técnica como criação desse), se apresenta instigante mas ao mesmo tempo intimidadora. Mann é sempre assim, ele não deixa nada apenas na superfície; escava várias e várias camadas até atingir as profundezas da alma humana, o conhecimento e a realidade como poucos autores são capazes de alcançar.

A história versa sobre a vida e obra de Adrian Leverkühn contada pelo amigo e admirador Serenus Zeitblom. Ambos vão estudar na universidade de Wittenberg (alusão a Lutero e o protestantismo), e Adrian pretende se formar em teologia. Entretanto, ao ouvir uma palestra de um musicólogo, Kretzschmar, que não acredita na subordinação da música e cultura à religião (esteticismo), se interessa por polifonia e harmonia, e segue para Leipzig a fim de estudar com o seu novo mestre. Com o passar do tempo, ele abandona a polifonia e os princípios tradicionais da composição clássica e se aproxima dos elementos atonais e sua caótica “organização”; era a história e os valores tradicionais sendo escamoteados em favor de uma nova ordem liberal e moderna, e levou ao colapso a maior parte do mundo. Assim, quando o narrador, ao vê-lo abandonar a teologia em favor da música, e as mudanças radicais de composição, começou a temer pelo futuro do amigo, em vista da sua abrupta mudança de objetivo: o afastar de Deus e achegar-se perigosamente ao mal. Com o passar do tempo e o envolvimento com estranhas companhias, se deparou com uma personalidade demoníaca, ao isolar-se, a demonstrar uma “frieza” até mesmo com a música, algo meramente racional e pragmático, apesar da sua genialidade.

Lá pelo fim do segundo terço, ocorre o pacto entre Leverkühn e Mefistófeles (um diálogo magistralmente composto por Mann), e este concorda em dar àquele a genialidade criativa, a fama e o reconhecido talento musical. Em contrapartida, existe um senão: Adrian está impossibilitado de amar e, consequentemente, ser feliz, além de sofrer com fortes enxaquecas e dores abdominais advindas da sífilis contraída com a amante, Esmeralda. Pouco a pouco a sua personalidade se tornará cada vez mais sombria, orgulhosa, desumana, ao ponto de o devotado Serenus (a antítese do temperamento irrequieto de Adrian) introverter-se, sintoma do agastamento pelas mudanças negativas. A degradação física, moral e espiritual de Adrian tem a Alemanha como pano de fundo. A sífilis tal qual uma ideologia totalitária a desprezar os valores morais e éticos do cristianismo em prol do niilismo e do esteticismo nacionalista (uma fusão destrutiva com o fim de se sobrepor e aniquilar qualquer forma de influência moral e cultural tradicionais), levará Adrian e a Alemanha ao mesmo fim, vitimados pela própria arrogância e autonomismo, levados à loucura e delírio máximo pelo narcisismo. Adrian se confunde com a história alemã do entreguerras, e perde a noção da ruína na qual se formou. E por causa do pacto diabólico, mesmo o pouco amor e empatia que lhe restava, transformou-se em tragédia na qual se arrasta a si e a outros pela vida.

Quanto a Serenus, a sua passividade em relação à autodestruição do amigo e consequente destruição de quem está próximo (o Midas ao contrário, onde o toque do mal produz apenas mal), inspira a reflexão em relação aos negligentes diante da possibilidade de resistência, à qual rejeitaram, deixando-se entregar à enxurrada de desgraças, conformados em deslizar a favor da correnteza. Ele mantém o relacionamento com Adrian numa espécie de cumplicidade, o fazer vistas grossas, ao receber alguma dignidade pelo tratamento familiar e exclusivo dispensado por Adrian, e o orgulho de participar do seu círculo de amizades. Não havia o porquê de confrontar o amigo, bastava acompanhá-lo, o mais próximo, em seu declínio moral e espiritual.

Em tempos onde o mundo é soterrado pela própria aspereza ideológica, política, cultural e intelectual, bem aos moldes da Alemanha pré-nazista, e potencializado por ela (o mesmo vale para qualquer governo marxista, socialista ou que o valha), onde os ideias revolucionários, juntamente com as chamadas “políticas sociais” e o liberalismo, são motes para o controle, manipulação e reengenharia da sociedade, os alertas de Dr. Fausto deveriam ecoar como sirenes antiaéreas, iguais às usadas na Europa durante a I e II Grande Guerra, pois a história é cíclica, de tempos em tempos se repete, e a tragédia fáustica parece próxima de se concretizar, todavia, em caráter global. Não à toa, a obra máxima de Leverkühn, o Apocalypsis cum Figuris, afigura-se literalmente o rumo maligno que a vida de Adrian/Alemanha tomaram ao desprezar os valores ordenadores da vida (refiro-me aos princípios cristãos), substituindo-os pelo colapso mortal e inevitável de uma ilusão de autonomia e tentativa de reconstruir o homem e o mundo. Em outras palavras, ao afastar-se de Deus e de sua condução, a humanidade depara-se consigo mesma em sua pior performance.

Ao descrever o pacto diabólico ficcional, Mann expõe a realidade do inferno, a insensatez e desvario de milhões, quiçá bilhões de adãos ao entregarem-se à cilada da serpente e desejar ser como Deus.


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Avaliação: (****)

Título: Doutor Fausto - A Vida Do Compositor Alemão Adrian Leverkühn Narrada Por Um Amigo

Autor: Thomas Mann

Páginas: 624

Editora: Cia das Letras

Sinopse: Último grande romance de Thomas Mann, Doutor Fausto foi publicado em 1947. O escritor fez uma releitura moderna da lenda de Fausto, na qual a Alemanha trava um pacto com o demônio - uma brilhante alegoria à ascensão do Terceiro Reich e à renúncia do país a sua própria humanidade. O protagonista é o compositor Adrian Leverkühn, um gênio isolado da cultura alemã, que cria uma música radicalmente nova e balança as estruturas da cena artística da época. Em troca de 24 anos de verve musical sem paralelo, ele entrega sua alma e a capacidade de amar as pessoas. Mann faz uma meditação profunda sobre a identidade alemã e as terríveis responsabilidades de um artista verdadeiro.




27 dezembro 2022

Teeteto: A imagem de Deus neutralizando o mal






Jorge F. Isah


Sócrates descreveu como exceção, para todos os tempos, mas tornou-se regra nos últimos cem ou mais alguns anos, e é quase unanimidade nos dias atuais, seja por dolo, seja por ignorância e incapacidade de muitos percebê-lo; seja por descuido, apatia ou o desejo de copiar o "espírito" do senso comum. Vamos, então, a ela!

Ao mesmo tempo em que afirmou o "Imago Dei" no homem, ele também descreveu que, quanto mais o homem se afasta de Deus e de sua santidade, mais o "Imago Dei" se esvanece e sucumbe à natureza pecaminosa. Ou seja, aquilo que Agostinho reproduziu séculos depois, e que foi afirmado por profetas, apóstolos, pela igreja em geral e, especial e necessariamente por Cristo, era uma ideia compartilhada com o filósofo gregos.

Evidente que o povo de Deus tem a melhor resposta, na verdade, a única resposta: pois o Deus bíblico e pessoal, na pessoa do Pai, Filho e Espírito Santo é o único Deus. Todos que se aproximarem dele, verdadeiramente (não vale a adesão nominal, quando o coração está voltado e focado no serviço ao pecado), estarão mais distantes dos efeitos noéticos, e do mal a sucedê-lo.

Infelizmente os tolos pensam que não pagarão pelos seus desvios, enquanto um bando de medrosos alisam sua própria vaidade, distraídos o suficiente para não se aperceberem tolos e ludibriados pelo próprio orgulho e presunção.

Mas é, contudo, a imagem de Deus que neutraliza o mal, segundo Sócrates. O que, mesmo não sendo dito dessa maneira pelo Cristianismo, acaba por ser uma percepção cristã: mais próximo de Deus, mais distante do mal. Mais distante de Deus, mais próximo do mal. 


Vale a pena a reprodução do trecho do livro:

"Sócrates: As demais aparências de habilidade e de sabedoria, quando se mostram no exercício do poder público, são conhecimentos grosseiros, nas artes, vulgaridade. Assim, quando alguém é injusto ou ímpio, por ações ou palavras, será melhor não conceder-lhe que todo o seu êxito se baseia na astúcia, pois esse indivíduo se envaideceria com o reparo, muito ancho por ter ouvido dizer, segundo crê, que não é néscio ou fardo inútil sobre a terra, porém homem como terão de ser os que melhor sabem vencer na vida pública. A esses tais é preciso dizer-lhes a verdade: que são tanto mais o que julgam não ser, quanto menos sabem o que são. De fato, todos eles desconhecem qual seja o castigo da injustiça, o que menos do que tudo não se pode ignorar. Não é o que todos pensam; castigos corporais e morte, de que os malfeitores muitas vezes escapam, sendo penalidade a que ninguém se exime.

Teodoro: A que penalidade te referes?

Sócrates: Na própria ordem das coisas, amigo, há dois paradigmas: um divino e bem-aventurado; outro, contrário a Deus e miserabilíssimo. Porém nada disso eles percebem; a enfatuação e a demência em grau máximo os impedem de sentir que com suas ações injustas eles se aproximam do segundo e cada vez mais se afastam do primeiro. São castigados pela vida que levam, conforme ao modelo de sua preferência. E se lhes dizemos que se não renunciarem àquela habilidade, depois de mortos não serão recebidos no local estreme de maldades e aqui em baixo terão de levar vida conforme seu caráter; os maus convivendo com a maldade; tudo isso eles escutam, sabidíssimos e astuciosos, como palavreado vazio, de pessoas desprezíveis"

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Livro "Teeteto"

Autor: Platão

Ebook gratuíto na Amazon




20 dezembro 2022

Agostinho: a aflição do homem e o descansar em Deus



- Pequena reflexão a partir do livro II de

 “Confissões”, de Agostinho -








Por Jorge F. Isah

No livro, Agostinho trata do pecado, mais especificamente, dos seus pecados. O tema é a depravação humana a partir dos seus exemplos pessoais e da experiência pecaminosa adquirida; do seu afastamento de Deus; da sua desobediência à lei divina; do gozo e prazer com tudo o que se podia configurar "mundano".

Agostinho abre a sua alma a Deus; o livro é uma grande oração, onde o seu coração é posto no lugar adequado: em Cristo, sua misericórdia e sacrifício.

Ele tece um longo poema em que as palavras fluem ritmadas; em que busca as mais profundas e límpidas expressões para retratar o que sentia à época em que era incrédulo, e também da sua alegria após a conversão e a reconciliação com Deus. "Confissões" é um fluir e brotar do espírito quebrantado e submisso ao Senhor.

Não há a preocupação em explicitar a teologia, ainda que ele faça teologia no livro. Não há lugar para o debate teológico, ainda que se possa discutir suas idéias. Por exemplo, ao afirmar que a cada dia se afastava mais de Deus, podemos entender que:
1)Havia um distanciamento maior, uma impossibilidade de se aproximar dele; e de que se encontrava cada vez mais afastado, a partir do afastamento inicial.
2)Ou pode-se ter a impressão de que em algum momento o homem esteve próximo de Deus e, com o decorrer dos dias e dos pecados, vai-se afastando naturalmente dele.
Aqui, nitidamente, Agostinho aponta para o conceito 1), a partir da separação inicial, o homem vai-se distanciando ainda mais da comunhão e santidade divinas. 

Há de se entender que Agostinho acreditava na doutrina da pré-existência da alma, o que pode levá-lo a crer, em algum momento, que essa alma estava com Deus. Ao encarnar-se, assumindo a carne, ela irá afastar-se de Deus, em virtude do pecado original. 

De qualquer forma, sem entrar em todos os pormenores que envolvem a questão, a afirmação de que quanto mais o homem peca, mais se afasta de Deus, é bíblica e correta. Apenas esse homem já está afastado, nunca teve comunhão com o Senhor, e labora para ir ainda mais para longe dele em seu estado de rebeldia.
Em toda a sua vida iníqua, em que o prazer ilícito e o desejar desfrutá-lo trazia-lhe uma alegria fortuita, ele reconhece a misericórdia divina em perdoá-lo de todos os seus pecados; reconhecendo a obra de Deus em resgatá-lo da podridão em que se encontrava; e, ao experimentar o seu amor e graça, percebeu a perenidade desse amor e da felicidade advinda dele, e a fugacidade daqueles outros "amores" terrenos: "Eis o meu coração, Senhor, o coração que olhaste com misericórdia no fundo do abismo. Que o meu coração te diga, agora, o que procurava então, ao praticar o mal sem outro motivo que não a própria malícia" [pg. 55].

O autor declara o estado em que se encontrava antes da conversão, o estado de impiedade; um aliado do mal; um coração aprisionado e atormentado, antes de Deus retirá-lo, por sua misericórdia, do fundo do abismo. 

As declarações que se seguem, e as descrições que as acompanham, indicam uma alma depravada e impossibilitada de se aproximar de Deus; a cada dia mais envolvida com o pecado, desejando-o; e desprezando a Deus; completamente afastada dele.

Agostinho afirma a quase suficiência das obras más na vida do homem caído: "As próprias obras é que prejudicam os malvados" [pg 58]. Mas em qual sentido? Estariam elas independentes da vontade do homem? Seriam maiores que ela? Ou até mesmo do homem? Ou ao se concretizarem, sendo obra consumada [a realização temporal, prática, efetiva do pecado] é que os tornaria em homens perversos?

Agostinho considera o homem que comete tais obras como já sendo mau. Não há bondade nele, e o que acontecerá nada mais é do que a vazão pecaminosa indicando-lhe o caminho de perdição e de pecado, que culminará na condenação daquele que não creu no poder regenerador e salvífico do nosso Senhor Jesus Cristo.

Ao citar o dia em que ele e os amigos invadiram uma propriedade e furtaram pêras, pelo simples prazer do furto, para lançá-las fora, resumiu: "O fato é que não eram os frutos que me atraíam, mas a ação má que eu cometia em companhia de amigos que comigo pecavam" [pg 61]. 

Claramente, ele notifica não a fome, nem a beleza dos frutos, nem o seu sabor, ou o desejo de ganhar algum dinheiro com eles, nada disso. Agostinho nos fala apenas da ânsia de cumprir na sua carne o mal que habitava nela; a realização do desejo suficiente em si mesmo, e vivendo por si mesmo. 

Mas há nele, agora, o arrependimento: "Eu, miserável, que frutos colhi das ações que cometi então e que agora recordo envergonhado, especialmente daquele furto que me satisfez pelo furto em si e nada mais? De fato, ele em si nada valia, e por isso me tornei ainda mais miserável!" [pg 61].

Para em seguida perguntar [sentenciando]: "Quem me pode responder senão aquele que me ilumina o coração e lhe dissipa as trevas?".

Falando da paz pela santidade, conclui: "Quem mergulha em ti, 'entra no gozo do seu Senhor', não terá mais receio, e permanecerá sumamente bem no Bem supremo. Desandei longe de ti, meu Deus, e na minha adolescência andei errante sem teu apoio, tornando-me para mim mesmo um antro de miséria" [pg 62].
O homem arrependido dos seus pecados e submisso a Deus, glorifica-o, e não tem parte no mundo, está nele, mas não é parte dele: "A amizade a este mundo é de fato adultério, prevaricação e infidelidade a ti" [pg 36 – referindo-se a Deus]. 
Que o bom Deus nos dê um coração quebrantado e submisso ao nosso Senhor Jesus Cristo, que pagou alto preço para que fosse derramado sobre nós a sua graça e misericórdia eternas e infinitas.