Jorge F. Isah
Neve de Primavera é um livro belo, melancólico, intimista e apaixonante. Terminei a leitura há mais de um mês e somente agora me dispus a escrever algo sobre ele. Primeiro, ressalto o estilo refinado, elegante (diria clássico) na escrita de Mishima. Segundo, como outros autores japoneses contemporâneos, está em luta constante entre o Japão tradicional, anterior às Guerras Mundiais, e o país moderno e ocidentalizado após a derrocada no último conflito. Terceiro, a desilusão com a vida (muito distante do pedantismo e niilismo modernos, diga-se), a precariedade das relações onde as influências exteriores decretam o destino da vida à revelia dos desejos e vontades pessoais; em outras palavras, não existe autonomismo, e por mais que no Ocidente o discurso de independência seja propalado e difundido, não é real e está muito além da capacidade individual de se garantir o futuro almejado ou a felicidade... Esta consiste de momentos fortuitos, quase arrancados a fórceps, entretanto cingidos pelos temores, perigos, vicissitudes íntimas ou públicas, a proclamar a todo tempo: alegre-se, enquanto é tempo! Quarto, a morte não alivia o sofrimento, mas se torna em passagem para o mundo metafísico (transmigração da alma ou reencarnação é um dos pilares do antigo espírito japonês) onde a carne, ao menos, é libertada.
Posto isso, escrever sobre o livro não é tarefa fácil, sem deixar algum spoiler. Esforçar-me-ei ao máximo para não fazê-lo... A história gira em torno da amizade de Kiyo e Satoko, criados juntos desde a infância e pertencentes às famílias de nobres nipônicos: Matsugae e Ayakura; aquela próspera financeiramente e em ascensão na aristocracia, enquanto a segunda desfrutava dos favores imperiais, mas estava em franca decadência.
Satoko é apaixonada por Kiyo que, apesar de reconhecer a sua beleza incomum e notável, não acolhe as suas investidas. Por terem-se criados juntos, talvez a veja como uma prima, uma jovem mimada e sempre disposta a colocá-lo em embaraços. E isso agrava-se pela têmpera introspectiva, quase sombria, de Kiyoaki. De poucos amigos, conecta-se apenas com Honda, colega de escola, estudioso, inteligente e compassivo, que praticamente “mendiga” o afeto de Kiyo, que, entretanto, não retribui similarmente, nem reconhece os esforços daquele, e mantem-se envolto em suas inquietações cotidianas; e, ainda, dois príncipes recém-chegados de Sião, a complementar seus estudos (na mesma escola de Kiyo e Honda), com os quais comunica-se apenas em inglês, já que não dominam fluentemente o japonês.
Os elementos de uma tragédia clássica estão instalados, entre os sentimentos e a razão, entre sonhos e realidade, o impossível e o tangível, o sal e o doce, culminam em frustrações e dores pelas próprias escolhas ou por deixar-se arrastar na avalanche de desejos incontroláveis. E, neste aspecto, o menosprezo e o orgulho aliados à intransigência e pirraça acabam por “desencavar” o amor imersivo e torná-lo em obsessão, no desejo intenso, na excitação incomum, a perigar as próprias vidas, as famílias e até mesmo a estabilidade e a honra imperiais... Se por um lado Kiyo encontrava-se recluso em seu mundo, preocupado em não se expor ou fazer-se notado (a intimidade, partilha apenas com o tutor; ainda assim em raros momentos), num estado de letargia e desinteresse, o aflorar do amor torna-o impulsivo, descomedido, uma ameaça para si e todos ao seu redor. Nem a compaixão de Honda subsiste incólume, benéfica, ao satisfazer o pedido do amigo, a causar-lhe remorso e compunção pela falta de juízo, de avaliar corretamente a gravidade e consequências do seu ato solidário mas fatal.
Os conflitos e interesses estão todos lá, explícitos ou subentendidos, alçados pelo lirismo ou sensibilidade, pelo ímpeto ou hesitação, a simplificação e complexidade, ânimo e desespero, ou quantos mais substantivos se escreva, e ainda assim rasparão sutilmente a superfície da complexa e entrelaçada teia onde a humanidade é esmiuçada em seu exotismo e capricho.
Não é um livro pesado, a se carregar um fardo, muito menos enigmático, pois Mishima diz o que tem a dizer, e o diz tão harmônico e requintado que não se torna penoso ou suportável mas irresistível...
Yukio foi chamado de o “Thomas Mann nipônico”... Não sou crítico literário, apenas leitor compulsivo e cauteloso com o passar do tempo, mas havendo peculiaridades entre eles, não o consideraria semelhante ao grande autor alemão. Ele é Yukio Mishima, ou melhor, Kimitake Hiraoka, seu verdadeiro nome, e para mim isso basta! Compará-lo, seja com quem for, é tirar um pouco do seu gênio e qualidade, ainda que eu saiba ser impossível, a qualquer escritor, não se apoiar nos ombros de autores do passado (Mann e Mishima foram, pode-se dizer, contemporâneos), reservando a cada um suas próprias idiossincrasias.
O Japão mudaria, se modernizaria, se ocidentalizaria, para o desgosto e aborrecimento do jovem tradicional, ao vê-lo fugir das próprias raízes e entregar-se ao materialismo hespérico. O livro versa também sobre isto, a sutil invasão de elementos alheios e desfigurantes da índole e caráter nipães.
E talvez, apenas talvez, a morte não seja a verdadeira derrota.
Nota: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga No. 13
Nota: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga No. 13
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Avaliação: (****)
Título: Neve de Primavera
Autor: Yukio Mishima
Páginas: 374
Sinopse: "Tóquio, 1912. O mundo hermético da antiga aristocracia da era Meiji está sendo invadido por ricas famílias das províncias sem o peso da tradição e com costumes e aspirações que imitam o modelo europeu da Belle Époque. Dessa elite emergente faz parte o ambicioso marquês de Matsugae, cujo filho Kiyoaki é enviado para a elegante família do conde Ayakura, membro da nobreza em declínio, para ser preparado a assumir seu lugar na corte quando atingir a maioridade."
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