Jorge F. Isah
Li, há uns 10 anos, “A Festa de Babette”,
de Karen Blixen e, para ser sincero, não me lembro de praticamente nada. Foi um
livro que passou por mim como se não tivesse passado, ou o fizesse tão
rapidamente que não deixou rastros. Isso acontece por vários motivos, sejam
pessoais (alguma instabilidade ou preocupação momentânea que bloqueia a
concentração), descuido ou pouco caso. Não sei precisar ao certo a razão, mas
durante os anos seguintes nutri o desejo de relê-lo.
Como coleciono exemplares da Cosac &
Naify, quase um fetiche, caiu-me às mãos o volume “A Fazenda Africana”;
comprei-o e fui baixar a versão em ebook para não desgastar o livro físico, já
que estava impecavelmente novo e não foi nada barato (também não foi absurdo;
considerei a compra quase uma pechincha, dado os valores exorbitantes que
exemplares da Cosac ganharam no mercado). Pois bem, encontrei a tradução
portuguesa, “África Minha”, e por ser lusitana (Tradução de Ana Falcão Bastos),
animei-me ainda mais; tenho apreciado muito essas traduções e, quando possível,
opto por elas.
Já nas primeiras páginas, Karen fisgou-me.
Não conseguia abandonar a leitura. A prosa fluída, às vezes poética,
autobiográfica, e sobretudo cativante em toda a sua simplicidade aparente (mas
não se engane!), fez-me refém. A história se desenvolve no período 10-30 do
século passado, quando a autora viveu no Quênia, próximo de Nairobi, onde,
juntamente com o marido (citado pouquíssimas vezes; era um espectro a pairar na
minha mente, sem nunca se materializar), adquiriu uma fazenda para cultivo de
café.
Dizer que a protagonista é a própria África, não
seria exagero. Karen está a compor um canto, elegia, entre sabores e
dissabores, do continente ao qual, desde o primeiro contato, tornou-se parte de
si e jamais esqueceu. As narrativas, algumas sequenciais, outras de fatos
isolados, espalham-se pelas mais de 400 páginas numa mistura equilibrada de
elementos a tornar o leitor correligionário de suas aventuras. Perdi a conta
das vezes em que me deparei a rir de situações onde a graça sutil estava
implícita, como uma pérola oculta na ostra. Era a maneira de presentear os
leitores, sem exageros e gargalhadas fáceis.
Pertencente à aristocracia dinamarquesa
(uma baronesa; casada com Bror Blixen-Finecke), as histórias tratam dos nativos
(Kikuys, Masais e Somalis), colonos, imigrantes
(indianos, europeus, árabes, etc), que povoaram a região à procura de
oportunidades. É nítido o amor e carinho com que Karen se refere ao povo e ao
país, ainda que utilize imagens, digamos, nada politicamente corretas para os
“mimizentos” de hoje. As comparações, antes de serem depreciativas, em sua
maioria são carinhosas e reais. Evidente haver paralelos negativos, porque,
sempre, em todo lugar, conviverão pessoas boas e dignas, e seus opostos. Ela
não glamouriza ou doura a pílula, como se fossem coitadinhos, merecedores de
pena. Não. A interação é zelosa, onde ela e outros “estrangeiros” se integram
sem maiores problemas aos indígenas. Não é uma relação de domínio e submissão,
mas de aliança. Ela aprende com os colonos que aprendem com ela, respeita sua
cultura e eles não parecem se preocupar com a dela. O ambiente é de nítida
liberdade, sem imposições e exigências, num clima de cuidado, harmônico e
pacífico.
Alguém pode aventar: “Mas a perspectiva é da autora
e não dos nativos!”. Tudo bem, é possível, afinal Karen é quem descreve os
eventos e mais ninguém daquele círculo se importou em fazê-lo; então, por que
duvidar?... Outro detalhe é: qual a possibilidade de, décadas depois, o bairro
onde existia a fazenda ter o nome da sua proprietária? E um museu, também? “É
pouco, e não quer dizer nada!”, garantiria o alguém. Mas para anos de
revoluções, massacres e guerras intermináveis, patrocinadas por movimentos
ideológicos, etnias que se odeiam e querem a eliminação dos seus opostos, o
nome Blixen ainda ser respeitado no lugar é quase um milagre.
Os “mimizentos” de plantão se horrorizam
com as caçadas (ela, perita caçadora), a injustiça (chamada tantas vezes pelos
nativos para julgar conflitos), os jogos de poder (sem entrar em conchavos e
sempre visando o melhor para “a sua gente”), mas esquecem-se de o mundo nunca
ter sido diferente disso, e de não ser o parque de diversões que os pretensos
reconstrutores da terra imaginam; até, por que, mesmo em parques temáticos e
recreativos, acidentes e mortes acontecem. E estamos a falar de um ambiente
altamente controlado, a fim de se evitar os sinistros... Convenhamos, o fato de
Karen ser mulher, independente e capaz de gerir uma fazenda, nos primórdios do
século XX, não é pouca coisa. E eles mesmos, os defensores do “feminismo”, se
veem a atacar o relato de uma mulher independente, não eivada por discursos
vazios e sem sentido, mas que, sem alardes e panfletagem, viveu-o. É por essas
e outras que não entendo a mente pós-moderna e sua quase suprema incoerência,
ou melhor, as artimanhas arrivistas enquanto posam de morais e éticos. Mas
deixemo-los com seus desvios e lapsos.
As descrições são bucólicas, quase
líricas. Pode-se dizer, saudosistas. A África é a sua terra prometida. A sua
Canãa. O lugar onde esperava permanecer até a morte e lá ser enterrada; do qual
foi exilada e viveu a diáspora na Europa. Mais do que vislumbre e expectação,
aquele lugar e, mesmo anos após partir, era onde deveria permanecer. Ela foi
peregrina em terras estranhas, em todas e todas, a buscar o Éden. Certamente,
as montanhas Ngong foram o lugar mais próximo de alcançá-lo.
O livro trata do triângulo amoroso, se é que podemos
chamar, entre Karen, o marido e o amante, Denys George Finch-Hatton, ex-piloto
da RAF (Royal Air Force), na Primeira Grande Guerra. Porém, de forma tão sutil
que alguns menos atentos podem sequer perceber. Na verdade, o marido, um
mulherengo empedernido que transmitiu sífilis à esposa, se separou dela em
1920, e se divorciou em 1925. Além de ser adúltero, era um péssimo gestor.
Karen, ao assumir as rédeas da fazenda, manteve-a em seu poder por 17 anos.
Após a separação, o relacionamento com o militar, antes uma amizade, tornou-se
amoroso; como disse, é sutilmente descrito na trama. O mais “santarrão” dos
leitores pode ficar tranquilo: não existem detalhes, cenas ou descrições
inflamadas; sequer são aventadas. São tão rarefeitas como a presença diáfana do
esposo.
É um livro de paixões e temores, mas acima de tudo
real.
Não cheguei a ler os livros de Hemingway sobre as
suas aventuras africanas. Estão na lista, à espera. Na adolescência me deparei
com alguns relatos de Livingstone, suas expedições e descobertas no coração da
África Meridional. Ele, missionário e pesquisador, empreendeu várias incursões
ao coração do continente, e tinha um amor genuíno e sincero para com os povos
subsaarianos. Então, os relatos de Blixen não têm correlações com outras obras
e leituras, nem como compará-las. Rendo-me, tão somente, ao seu talento e ao
fato de ser uma exímia contadora de histórias, com uma simplicidade enganadora,
já que as camadas do texto vão se revelando durante a narrativa: o seu
cristianismo, a sua independência, a sua solidão, e a “maternidade tardia”,
algo possível de se ver no relacionamento com muitas das crianças e jovens, e o
envolvimento afetivo e emocional.
Neste contexto, é possível notar que o trato era
quase familiar e, como tal, carregado de alegrias, decepções, tristezas e
solidariedade. Em tempos e cenários tão artificialmente concebidos como os
atuais, as histórias descritas de “África Minha” apresentam-se legítimas,
intensas, palpáveis e, em muitos sentidos, puras.
Karen Blixen vislumbrou o paraíso, desejou-o, e se
viu nele. Mesmo sem a perfeição original, o Éden era possível. E, talvez, ela
esteja agora, neste momento, ainda mais maravilhada.
_____________________________
Avaliação:
(****)
Título:
África Minha
Autora:
Karen Blixen
Editora:
Clube do Autor
Páginas:
381
Sinopse: “Em 1914
Karen Blixen chegou ao Quénia com o marido para gerir uma plantação de café
Imediatamente conquistada pelo mágico local, Karen Blixen passou aí os anos
mais felizes da sua vida, até ao colapso da plantação Foi então forçada a
regressar à terra natal, a Dinamarca, onde escreveu África Minha. Escrito com
uma vivacidade que nos faz sonhar imediatamente com o continente africano, o
livro retrata um estilo de vida desaparecido para todo o sempre.”
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