08 agosto 2022

O Suicidio do Homem Moderno



Jorge F. Isah



Em um mundo no qual diariamente ouvimos falar de crimes, catástrofes, imoralidades e desprezo aos fundamentos mais caros à vida humana, perguntamo-nos: por que, e de quem é a culpa?

Nos últimos séculos, tem-se difundido uma culpa coletiva por algo que o indivíduo pratica, como se todos aqueles que nunca cometeram algum crime tornassem-se responsáveis ou coautores daquele que o cometeu uma, duas ou mais vezes. Essa é uma maneira do homem esquivar-se da responsabilidade que cabe, exclusivamente, a si mesmo. Conceitos sociológicos, antropológicos e psicológicos, cada vez mais tiram do indivíduo a culpa por algo somente cometido por ele, e do qual é o único responsável, transferindo-o a um "ente" coletivo, a uma criação teórica, fruto apenas e tão somente da imaginação deficiente de quem a propõe. E esta não pode ser uma verdade, não pode ser comprovada pela realidade; mas há uma insistência quase psicótica em se designar um culpado sem culpa (pode ser a sociedade, o capitalismo, a igreja, etc) tirando-a do verdadeiro artífice, o indivíduo.

O homem tem a possibilidade de escolher entre o bem e o mal, entre o certo e o errado, e se opta pelo delito ou crime, qualquer que seja o seu motivo, ninguém o fez por ele, mas ele decidiu fazê-lo por si mesmo. A fraqueza, ignorância, ou a coação, não são argumentos para isentá-lo, quanto mais alegar uma indução coletiva sobre a pessoa, como se um ser metafísico simbolizasse a mente e a razão de multidões sobre a ação e vontade de uma única alma. Ninguém é obrigado a nada, ainda que forçado, ainda que sem aparente saída, pois sempre a recusa é uma opção em qualquer situação, e ninguém está autorizado a não aceitá-la como legítima. De forma que o objetivo central é a prevalência da suposta inocência sobre a responsabilidade, sendo que alguém somente pode se considerar inocente quando usa o predicado de ser responsável; o leviano não pode apelar à ingenuidade por defesa. Não há ausência de culpa sem o exercício da sensatez; pelo contrário,  a ilicitude do ato praticado é que o torna em crime, e quem o realiza em condenado. Se até mesmo os animais sabem quando incorrem em um erro... 

Por exemplo, a minha cachorra, uma labradora, quando apronta alguma traquinagem, ao ouvir os meus passos, coloca-se em uma posição submissa, na defensiva, preparando-se para receber uma repreensão, olhando-me como se estivesse a pedir desculpas. Se até mesmo os débeis mentais têm noção dos seus erros, e muitos deles têm sincero arrependimento por tê-los cometido, por que o homem saudável não o pode ter?

Quanto ao impenitente, aquele que comete um crime com a cara mais limpa do mundo, o arrependimento não é uma palavra a se considerar em seu dicionário, mas está ausente, porque é-lhe mais conveniente praticar livremente o desejo mais íntimo do seu coração: o mal como o anseio máximo da alma, o delito por ofício. Ele certamente dirá que fez e fará de novo, se a oportunidade surgir, e não tem de se arrepender por nada. Porque o pensamento "humanista" absolve-o, ao diz-lhe não haver motivos para arrependimento, pois a culpa não é dele, mas da sociedade, que em sua maioria desconhece-o, mas foi capaz de levá-lo, induzi-lo, a cometer o pecado contra si mesma. Em linhas gerais, a sociedade ou um grupo (como os cristãos, por exemplo) é capaz de fomentar criminosos para o seu próprio prejuízo e dano; e, convenhamos, é uma ideia insana e absurda. A mensagem passada é a pior possível: indivíduos não são responsáveis por seus atos, mas sim um ente coletivo que sequer o desejava, e em nada colaborou para a sua prática. O humanismo moderno resume-se ao ódio ao homem e ao amor a uma ideia deficiente e postiça, travestida com uma roupagem de bondade e piedade, surrupiadas do Cristianismo.

A própria noção de culpa encontra-se destituída de significado, pois ela repousa sobre um entidade presumível, contudo, não tem uma mente, um corpo ou alma, a sintetizá-la, incorporá-la ou defini-la. Em uma sociedade, encontraremos indivíduos díspares, ainda que seja possível alguns, ou muitos deles, envolverem-se em projetos e grupos com objetivos comuns. A igreja, por exemplo, é um ajuntamento de crentes com o intuito de glorificar a Deus e realizar a obra que lhe foi dada a fazer. Ainda que retratada na Escritura como "Corpo", não se quer anuir com a exclusão das individualidades em prol de um coletivismo bovino, mas de que cada indivíduo, motivado pelo Espírito e pensando de per si, trabalhará e laborará para um intento comum. Nesse percurso, podem haver divergências, contrariedades, erros, confrontações, e uma série de eventos distintos a fortalecerem ou enfraquecerem o resultado final, implicando mesmo na saída de um ou outro daquele grupo específico de trabalho. E isso acontece exatamente por conta da individualidade e da responsabilidade assumida, pessoal e única.

Assim, cada vez mais é difícil encontrar, na igreja, pessoas comprometidas com a responsabilidade, seja dos seus líderes ou dos demais membros, negando, em muitos casos, qualquer possibilidade de se aplicar a disciplina eclesiástica, como uma afronta ao indivíduo, já que ele se considera imune a qualquer sentido de organização, com o discurso enganoso de dever apenas satisfação a Deus, um Deus que ele não vê nem conhece ou obedece, a quem subjaz apenas como artifício para se manter em rebeldia e insubmissão à autoridade do "Corpo". Em sua mente, acredita possível viver nele estando amputado ou extirpado, como se uma mão conservada em um vidro de formol na prateleira de um museu de anatomia ainda estivesse ligada ao organismo original.

Segue-se, também, o não reconhecimento do conceito de "pecado" e "arrependimento", levando o homem inicialmente à estagnação e, posteriormente à degradação do seu ser e do próximo. Quando não se reconhece os erros, e sua existência passa a ser algo meramente relativa, sem um caráter absoluto, o homem não somente não se corrige a si mesmo, mas torna-se incapaz de aperfeiçoar-se, de aprender com suas falhas. Há pessoas convictas afirmando não se arrependerem de nada, pois o arrependimento não existe, ao que as interrogo, dizendo: como, então, você aprende?

Na maioria das vezes, elas dizem não se arrependerem, mas são as mais exigentes e impiedosas com os erros alheios, e as mais prontamente dispostas a cobrar uma retratação e uma punição por crimes muito menores do que o cometido por elas mesmas. O que vale para elas não vale igualmente para o próximo e vice-versa. Na mesma linha de pensamento e aplicação dos fariseus, elas, em sua hipocrisia, não conseguem perceber a incoerência de suas vidas, obstinadas em punir qualquer um que se levante contra o seu senso particular de justiça. O que se vê, com maior frequência, são pessoas com o seu senso privado de justiça impondo-a a outras sem que haja a contrapartida. Para ela e seu diminuto grupo, tudo; para os outros, nada. Se a ideia de democracia indica um governo da maioria sobre a minoria (uma minoria ainda que numericamente significativa), temos hoje a supremacia de um governo da minoria (esta significativamente diminuta) sobre a maioria, e ainda querem apregoá-la como a "verdadeira" democracia, quando, em seu bojo, constitui-se em autoritarismo ditatorial. Para isso, a supressão da verdade, a transgressão da linguagem e do seu sentido, a propagação da mentira, o discurso farsesco, e o fingimento, são implementados com ardis,  sutilezas, um apelo à piedade e ao bem-comum ignorados, ridicularizando a ordem para salvaguardar o caos. E o caos é benéfico para a manutenção ou a tomada do poder, mantendo pessoas ignorantes e alienadas a circundá-lo.

Ao contrário de toda a lenga-lenga modernosa de não culpabilidade do homem, a Bíblia afirma ser ele responsável por seus atos, e por eles será julgado. Quando a humanidade se considera a si mesma detentora da verdade, da sabedoria e da justiça, temos um mundo cada vez mais eivado na mentira, na estultice e na injustiça. A soberba levou-nos ao rompante de cogitarmos um mundo sem Deus, mas ainda mais, um coração onde Deus não pode habitar, pois é prescindível. A ideia da descartabilidade divina somente ganhou contornos de veracidade a partir do momento em que o homem considerou-se superior ao ponto de negá-lo, odiá-lo com todas as forças, e, em um acesso tresloucado, considerou-se autossuficiente e autônomo, rejeitando tanto a sua bondade como a sua santidade, de onde deriva a moral e justiça. Coincidentemente, foi a mesma pretensão de Satanás; em sua vaidade e orgulho, considerou-se "livre" de Deus, querendo usurpar-lhe o trono celeste e tomá-lo para si. Ele, ao menos, sabia o que desejava, enquanto o homem busca apenas satisfazer-se a si mesmo em sua natureza caída, sem almejar trono ou coroa, muitas vezes apenas chafurdando na lama como um porco.

Por isso a tradição judaico-cristã é vista como inimiga da humanidade, ao colocar freios e coibir a vazão dos instintos mais vis e sórdidos ansiados pela alma enferma e fraca do homem sem Deus. Acontece, contudo, não haver homem sem Deus, no sentindo do simples fato do homem não o reconhecê-lo e abandoná-lo significar não estar sujeito à sua autoridade e juízo. Esta é a  tolice máxima, pois eu posso, por exemplo, não acreditar na Lua como um satélite terrestre, e pensar ser uma miragem, fruto talvez de uma psicopatia coletiva e sugestiva infundida por um gene defeituoso a levar todas as pessoas e, inclusive, eu, a acreditarem na existência lunar. A verdade é: independente do que eu pense, a Lua continuará existindo, mesmo se a humanidade decidir ou optar, sabe-se lá por qual motivo, por sua inexistência.

Isto posto, não há como duvidar do lugar onde esse caminho, trilhado pelo homem moderno, descambará: injustiça, mortes, desolação, e um poder ainda mais concentrado nas mãos de poucos a decidirem o destino de muitos. Parece-me que Satanás e seus servos estão ganhando a batalha, iniciada no Éden, contra o homem. Ao insuflá-lo à autonomia, a desordem interior, como consequência da rebelião, tornou-se evidente, e a motriz de uma existência desgraçada e permeada pela autodestruição, pelo aniquilamento do supremo bem, a solidificação da ofensa e das feridas a permear-lhe a alma, a abater a consciência, a afastá-lo da verdade. Enquanto tem a corda em volta do pescoço, espera paciente a árvore crescer para servir-lhe de forca.

Ao afastar-se de Deus, o homem entregou-se a si mesmo, como o pior dos  inimigos com o qual se mantém uma amizade descuidada, suicida. Especialmente por considerar-se autossuficiente, quando não o é; bondoso, quando não o é; generoso e fraternal, quando não o é; ainda que manifestações gerais dessas virtudes se deem exclusivamente pela "imago dei" existente no homem, mesmo no pior espécime. Se há resquícios de benignidade e de longanimidade no homem, existe somente pelo que ainda lhe resta de Deus no coração, e não pelo que é, a partir da negação de Deus, mas pelo que ainda não pode ou não conseguiu rejeitar dele.

Até o dia em que a rejeição o levará à morte definitiva; a eterna separação de Deus. E cada um será justamente condenado por seu pecado. 


Nota: Este é apenas um esboço, de uma introdução para um futuro estudo sobre a doutrina da depravação total do homem. 

23 julho 2022

A Máscara da Ciência Moderna



Jorge F. Isah
           

              Buscando não somente compreender a doutrina da Depravação Total do Homem, mas corroborá-la com o texto bíblico, abandonando o estudo realizado em Gênesis, capítulo 3 (cujo relato da Queda da humanidade deu-se juntamente com a Queda de Adão, o qual, como cabeça, nos representava e, com ele, todos nós pecamos, caímos), adentraremos agora no estudo do capítulo 6, do mesmo livro de Gênesis.
           Primeiramente, saliento a estranheza provocada na maioria das pessoas, muitas delas crentes praticantes e convictos, quanto ao conceito bíblico de depravação humana. Há uma tentativa, especialmente entre os mais letrados, de conhecer a natureza humana não pela realidade, por aquilo possível de se ver e observar no dia a dia, muito menos pelos relatos bíblicos¹, mas pelo arcabouço acadêmico e teórico da sociologia, antropologia, psicologia e pedagogia, muitas vezes não passando de construções mentais viciadas e, em alguns casos, delirante. Não há de se descartar essas ciências como instrumento para a compreensão do homem², mas, entretanto, ao abandonar-se a experimentos e metodologia dirigida (muitas vezes formadas sobre falsos pressupostos), quase sempre com o objetivo de confirmar ou atestar a veracidade do esquema especulativo proposto, compromete-se todo o seu resultado.
Infelizmente as ciências humanas têm se tornado, especialmente em países dominados pela mentalidade progressista, em um ajuntamento de postulados ideológicos onde a verdade, a exatidão, e a fidelidade aos fatos têm dado cada dia mais lugar à exploração artificial de um pensamento impossível e inalcançável, utópico, onde a realidade e o aspecto natural tornam-se necessariamente marginalizados e rejeitados dentro do espectro metodológico dos estudos; uma maneira de afugentá-los quanto ao possível dano que promoveriam no intento dominante, na convicção ou crença do ideólogo. Abandona-se o conhecimento adquirido pela prática, pelos estudos, pela observação, entregando-se ao adestramento acadêmico onde o princípio não é o da neutralidade nas pesquisas, mas o de se levar a cabo, até as últimas consequências, a defesa do pressuposto sugerido (digo, sugestionado), mesmo havendo, durante o seu curso investigativo, evidências do seu engano ou invalidação. E  somente isso  já seria o suficiente para comprovar que  a doutrina da Depravação Total do Homem é  não  somente crível,  mas real e incontestável. 
O conceito de ciência deturpou-se nos últimos cem anos ao ponto de não haver, em muitos centros de pesquisa, nada mais do que propaganda, de marketing dogmático, travestido de academicismo.Tentando separar os trabalhos  acadêmicos de qualquer  relação com Deus,  a humanidade embrenhou-se em uma luta insana e destruidora   contra  a própria razão,  contra  a própria natureza,  consigo mesma.  Por isso não passam de  uma desculpa esfarrapada,  sem pé  nem cabeça, com o único fim de sustentar o insustentável.  Pode parecer apenas ignorância, mas há um objetivo central em todo esse método e empenho "cientifíco": destruir a civilização ocidental e, mais especificamente, a tradição judaico-cristã, e a formulação de uma nova construção social, a partir da destruição daquela e dos valores que, no mínimo, são o fundamento de toda a existência humana.
Ao invés de haver uma incessante busca pelo saber, pela verdade, pelo conhecimento, afigura-se um sistema de simples reverberação do postulado, uma difusão do pensamento dominante ou establishment, uma ditadura do pensamento acadêmico conduzida por uma elite controladora, capaz de incluir ou excluir, o que vale dizer, garantir ou não os financiamentos públicos e privados, daqueles inseridos ou excluídos em seu organismo ideológico. A competência e o mérito não representam nada, bem como a plausibilidade das teorias e sua concreta veracidade, bastando ao candidato certificar-se de ser conivente e colaborar para a perpetuação do delito, certo de que sua mediocridade não será percebida nem repudiada, mas alimentada pelo acordo tácito de domesticação intelectual. E quanto mais confuso, hermético e delirante, maior será a sua aceitação entre os seus pares, uma vez que a obtusidade ficará camuflada pelo exagero ou bizarrice.
As ciências humanas produzem atualmente acadêmicos como uma fábrica de plásticos geram penicos, com a diferença de que os penicos cumprem um propósito natural, em prol da humanidade, enquanto os chamados cientistas asseguram-se, a si mesmos, uma factícia estabilidade em uma máquina emperrada e inútil; via de regra, se torna na finalidade, em um tipo de nobreza superior ao conhecimento, sem qualquer objetivo real de benefício social ou humanitário, limitando-se a ser instrumento e meio para o controle, para o apoderamento de corpos e almas.
Com isso, não há, de minha parte, uma sabotagem ao sistema acadêmico, o que é desnecessário, pois ele mesmo se encarrega de se autossabotar, mas a constatação da existência de vícios a impeli-lo ao desastre e impedi-lo de realizar sua nobre missão. Parece uma generalização fútil, exatamente pelo fato de não ser eu mesmo um acadêmico, mas ao travar conhecimento com muitos deles, fica patente a incapacidade dos mesmos para exercer aquilo que dizem defender e, na verdade, desconhecem-na por completo. Não são todos, claro, talvez nem a maioria, mas uma boa parcela instalada no Brasil faz o que a torna inexistente e ineficiente para o mundo como um todo: a não-ciência ou o cientificismo vulgar e corrompido.
Basta-lhes um diploma ou um título para certificarem-se do abandono absoluto do rigor acadêmico. O título traz em si mesmo todo o arcabouço suficiente para tomá-lo por infalível e inerrante e, a partir dessa premissa, excluí-lo da necessidade de ouvir, ler e pensar sobre qualquer outra coisa não relacionada à sua "deidade". Ainda mais se estiver ancorado pela nomenclatura, pelos pares a conferir-lhe genialidade e idoneidade sem a necessidade de prová-las. É como um curso de hipnose ou autoajuda: você não precisa ver nem entender nada além daquilo que lhe é dito e conferido como verdadeiro, mesmo que seja a mais sórdida e amoral mendacidade e charlatanice.
Ao contrário do que deveria ser, muitos cristãos entregam-se ao pensamento absurdo de reconhecer o mérito de um raciocínio não pelo seu conteúdo ou argumento, mas pelo fato do seu interlocutor ser um diplomado, uma autoridade. Conhecida como argumentum ad verecundiam é uma falácia lógica, das mais toscas, das mais improváveis, mas na qual os cristãos parecem ter uma predileção especial pelo seu mecanismo de inquestionabilidade. Acontece de falharem em vários aspectos, principalmente por depositarem credibilidade no autor, um homem sujeito a erros como ele mesmo, mas revestido de uma quase divindade a torná-lo infalível, ao invés de depositá-la no verdadeiro Autor, Deus. Centenas, milhares de anos de experiência cristã vívida, do testemunho de milhões de pessoas, relatos intermináveis de uma fé autêntica, não sujeita a titubeios e mudanças, apresentam-se insignificantes diante da solidez e da segurança do interlocutor³.
Não importa se ele solapou fatos, se desprezou evidências, se manipulou dados, se concentrou seus esforços em moldar um disfarce, blindando-o de ver reconhecida a sua incompetência ou insanidade. Os loucos gritam por não haver nada mais a fazer além de silenciarem-se, acontece de este estado anulá-los; então, vociferam, histrionizam, ensandecem, perturbam-se, ameaçando desmascarar os relutantes como ignorantes: “vejam aquele ali, é um burro! Não tem diploma, não faz parte da academia, mas teima em acusar-me!”. É a típica confirmação do dito: “ganhar no grito!”; e não há lenitivo que atenue a tensão pragmática da autoridade, a não ser a aceitá-lo e ao seu discurso sem hesitação. A acusação nunca é à fragilidade ou inexistência do argumento, mas ao indivíduo ameaçado, pego e acuado na própria traquinagem, não lhe resta outra saída a não ser urrar e mostrar os dentes ameaçadoramente. Como aquela criança que, após molhar as calças, olha assustada para a mãe enquanto o líquido quente escorre-lhe pelas pernas. Ela não tem como dizer: “não fiz isso”, mas o acadêmico picareta pode dizê-lo investido de uma autoridade, tornando-o inquestionável, ainda que todos possam ver-lhe os fundilhos ensopados.
Por que o crente insiste em moldar a sua fé à ciência, sem antes cuidar para saber se o que lhe é apresentado realmente não passa de impostura? Por que se dá atenção ao primeiro novo rumor em detrimento de séculos e séculos de experiência e confirmação da verdade, pelo corpo de Cristo? Acredito haver uma boa dose de vaidade e soberba em se fazer entendido daquilo que nem mesmo o seu proponente compreende. Parecer esperto ou inteligente é mais fácil do que sê-lo. E se há uma estrutura moldada para a validação de uma sapiência anacrônica, preenchendo os requisitos da própria implausibilidade, por que se esforçar pela busca da verdade se um arremedo dela é facilmente alcançado?
Com a resposta, você, se não for demasiadamente preguiçoso.

Notas: 1- A Bíblia apresenta o homem como ele é, sem floreios, sem suavizá-lo, sem fantasias, mas retrata-o em seus detalhes mais íntimos; os quais podem ser confirmados pela realidade, pela brutalidade pecaminosa empreendida diariamente por qualquer um de nós contra a ordem natural e santa criada pelo bom Deus.

2-   Incompreensível é o descarte que o mundo moderno dá à teologia, sendo ela a rainha de todas as ciências, sem a qual qualquer outro instrumento se torna, no mínimo, inadequado ou impróprio.

3-  E, por que não dizer do alto grau de loucura; ao ponto de fazer-se imperceptível aos olhos alheios, dada a entronização da sua personalidade? Heidegger, com o seu antissemitismo empolado, inspirou a construção do Estado-Nazi-fascista; assim como Marx, e seu delírio coletivista, fomentou Stálin, Hitler, Mussolini, Pol-Pot e Mao, para ficar apenas em alguns exemplos, dentre tantos outros de assassinos e tiranos.


 

30 junho 2022

"Pode o Homem Viver sem Deus?", de Ravi Zacharias

 



Jorge F. Isah


Ravi Zacharias é um dos maiores apologistas da atualidade; mesmo falecido em 2020, seus vídeos e livros persistente em levar a todos tipos de leitores a sua cosmovisão cristã, e o Evangelho ao qual tanto se empenhou em divulgar. Por todo o mundo, ele ministrou palestras e debates defendendo a existência de Deus e os princípios cristãos.
Neste livro, em sua primeira parte, ele faz uma defesa da “ideia” de Deus a partir de analogias morais e filosóficas. Há de se reconhecer o seu esforço, seu vasto conhecimento e erudição, seus pressupostos filosóficos (a maioria baseada em Aristóteles), e a defesa apaixonada de Deus.

Apesar de haver alguns "buracos", no conjunto ele é convincente, porém, nem tanto eficiente, já que o viés racional ou intelectual, obstante ser necessário, credencia o convencido a postulante da regeneração, sem, contudo, ser aspecto suficiente para torná-lo em um.

Pode parecer que estou contra Zacharias, o que não é verdade. Mas a questão é que não creio em apologética sem Cristo e seu Evangelho. Ideais filosóficos e estéticos são bons para se promover debates, para a discussão acadêmica, para inflar egos, mas nunca conversões; ao menos em sua plenitude de efeitos e finalidade. Conheci, e conheço, muitas pessoas que têm uma compreensão clara e inequívoca quanto à obra de Cristo, sua missão e o resultado dela na vida do crente, da igreja e no mundo, mas jamais se submeteram verdadeiramente a ele, não se arrependeram de seus pecados, e permanecem tal como sempre foram, levando a vida da mesma forma que sempre levaram, indispostos a abandoná-la, ainda que reconhecendo a necessidade. Existem acadêmicos e estudiosos (entre leigos, também) que conhecem todos os detalhes históricos, culturais, religiosos e relacionais das Escrituras, mas jamais se converteram, e os têm para satisfazer seus desejos por conhecimento, talvez o ego ou condição profissional.

Alguns dirão que Paulo demonstra conhecimento dos filósofos e poetas gregos em suas pregações. Concordo. Provavelmente, o apóstolo, como um homem extremamente culto, um douto em sua época, conhecia profundamente os filósofos e poetas gregos, como os judeus e outros tantos. Mas não vejo Paulo usando "sabedoria de palavras, para que a cruz de Cristo se não faça vã" (1Co 1.17), pelo contrário, como ele mesmo disse, a única coisa que lhe interessava era pregar a Cristo, e este crucificado, visto que Ele era escândalo para os judeus e loucura para os gregos (1Co 1.23).

O fato de Paulo conhecer filosofia e citá-la parcamente (e ainda assim, de forma indireta) não nos autoriza a substituir a pregação do Evangelho por ciências antropocêntricas, amoldando e acondicionando a Palavra a conceitos e teses humanas. Isso é pecado, esvazia a mensagem de Cristo, torna-a refém de nossa mente caída, e ineficiente diante dos homens. Com isso, mais uma vez, não desprezo o estudo, a análise, o escrutínio social, político, filosófico, artístico, cultural, ou outro elemento qualquer a validar e revelar o Criador, sua palavra, sua ação individual e entre as nações. Mas ater-se apenas a eles, sem entrar no cerne, no âmago da Revelação, ou seja, que Cristo encarnou, morreu e ressuscitou para resgatar para si um povo, a noiva, seus eleitos, ou a igreja, se assim julgar melhor, é um grave erro.

Paulo, como Pedro, João, Tiago e todos os apóstolos eram apologistas. Mas o eram com a mente de Cristo, e não com suas mentes imperfeitas; evangelizavam pela pregação da Palavra e o poder que somente ela tem; pois, se não há pregação, como crerão aqueles que não creem? (Rm 10.14-15).

Por isso, quase desisti de continuar a primeira parte de "Pode o Homem viver sem Deus?"... Por mais convincente que Ravi fosse em sua argumentação, não via muitas possibilidades de que alguém pudesse crer diante da sua exposição; crer no sentido em que já expliquei, para redenção. Pelo fato de não ser o Evangelho, seus pressupostos filosóficos eram passíveis de refutação. E ao revelar a verdade, como um conceito filosófico, tornava-a contra argumentável. Evidente que o Evangelho também pode ser refutado, negado ou distorcido, mas ao menos não se ficará iludido por uma simples acolhida ou receptividade intelectual discutível. E esse é, para mim, o principal problema dos cristãos racionalistas, o de acreditarem no convencimento pela razão à conversão; ainda que não excluam a ação do Espírito Santo, em sua maioria, ela se dá quase ou apenas no campo intelectual, e de que tudo pode e deve ser explicado racionalmente. Ora, a Queda afetou todos os aspectos humanos, inclusive a razão, e pôr todas, ou quase todas as fichas nela, me parece arrogância, no mínimo prova da sua própria corrupção (da razão, no caso).

Contudo, na segunda parte do livro, o autor da "nome" à Verdade: Jesus Cristo, o Deus Filho! E começa a expor a Verdade através do Evangelho. Então, fica evidente e patente a solidez de suas argumentações, e como torna-se impossível contradizê-las (apesar do quê, para os escandalizados e loucos com a cruz, somente há oposição na loucura e soberba do homem caído, abandonado por Deus)... Somente através da ação do Espírito Santo pela ministração da Palavra, ateus e todos os tipos de incrédulos se curvarão diante de Cristo, reconhecendo-o como Deus, Senhor e Salvador de suas almas.

Há alguns inconvenientes nos postulados filosóficos/psicológicos com os quais Ravi sustenta a existência de Deus, e Cristo como a única solução para o homem. Nitidamente, ele não quer expor o Evangelho em sua totalidade, e acaba por delinear Cristo com tintas suaves demais.

O Evangelho parte de um único fato: que Deus é santo e o homem pecador, e que esse homem está debaixo da ira de Deus, a qual somente Cristo pode aplacar, e sem Cristo o homem está e será condenado eternamente. O problema é que Ravi toca no assunto, mas de uma forma leve, tentando atenuar ao máximo o impacto que a revelação da verdade pode gerar no leitor. Entendo a sua cautela, afinal não deseja afugentar o leitor, e deseja retê-lo até estar diante de todos os seus argumentos e, assim, convencê-lo da sua irracionalidade em não crer no Cristo.

Ele não se omite em revelar a sua fé, nem em quem crê, mas, aparentemente, fica-se com a ideia de que essa é a sua opção, e de que pode haver outra (não digo que Zacharias frauda a sua fé, fazendo-a parecer descartável ou moldável. Não é isso. Ele refuta qualquer ideia de Deus contrária ao Evangelho de Cristo. Mas, talvez, o tom conciliatório e o apelo excessivamente intelectual o distancie muito de uma exposição pastoral e evangelística).

Ao citar os casos de "conversão", emite este sentido, passando uma noção de transformação ou mesmo de adequação do homem às mudanças que Deus opera nele. Novamente, Ravi não quer impactar o leitor com algo "primitivo" como uma conversão.

Abordando a questão da corrupção do homem e sua natureza pecaminosa, Zacharias acerta, ainda que não se aprofunde no conceito bíblico da queda e do pecado.

O livro daria uma boa discussão numa sala de bate-papo virtual ou não, mas não sei se levaria um incrédulo (ateu ou não) à conversão.

Oro, para estar errado!

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P.S.: Recebi a seguinte mensagem de um irmão, que não quis se identificar:

"Existe algo que não foi observado aqui na análise da obra em questão e eu gostaria de lembrar os leitores.

Estive vivendo na Europa por alguns anos e como estudo Apologética Cristã pude ver um problema típico de livros traduzidos sem ter o mesmo contexto / público. Vou explicar o que quero dizer: Para uma sociedade europeia, cínica quanto a fé cristã, alérgica a apelos e a sutis referências da Bíblia e a qualquer palavra que a lembre - a abordagem filosófica faz-se necessário. A lógica tem sido a melhor maneira até o presente momento para dar a liberdade aos europeus e apelar a eles de uma coerência na fé cristã.

Alemães e Ingleses por exemplo gostam de tomar a decisão por si mesmos, e apelos como fazemos no Brasil não são coerentes na realidade deles.

Bem simples - Ao falar com chineses e japoneses, europeus, hindus, budistas e principalmente muçulmanos, nossa abordagem precisa ser adaptada” (Anônimo)


Entendo a necessidade de se utilizar de meios, sejam culturais ou outros, para se levar o Evangelho. Não é uma crítica a isso, pura e simples. Apenas que, concomitante a essas ferramentas, não se pode diluir ou amenizar a mensagem da cruz, tão viva e necessária à época de Cristo e dos apóstolos quanto o é hoje; e, sem a qual, ninguém será regenerado, nem verá a Deus. Como está escrito: um pouco de fermento leveda toda a massa... e um pouco, um pouquinho apenas de jactância faz de incrédulos religiosos formais e pirrônicos.

 


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Avaliação: (***)
Título: Pode o homem viver sem Deus?
Autor: Ravi Zacharias
Páginas: 296
Editora: Mundo Cristão

10 junho 2022

Mil Tsurus, de Yasunari Kawabata: O ferro quente no couro

 



Jorge F. Isah


O primeiro contato com a literatura japonesa se deu com Yukio Mishima e o seu “O marinheiro que perdeu as graças do mar”, lido, provavelmente, nos finais dos anos 80 e início dos 90, não sei precisar ao certo. Depois dele veio, do mesmo autor, “Neve de primavera”; e, por um bom tempo, mesmo sabendo da necessidade de revisitar e ler outros volumes de Mishima, os autores japoneses foram deixados no ostracismo. Uma falha que, reconheço, se torna quase imperdoável.

Pois bem, instigado pelo prof. Rodrigo Gurgel, resolvi ler Yasunari Kawabata, e me decidi por “Mil Tsurus”, nova tradução da Estação Liberdade, e que também tem o título de “Nuvens de pássaros brancos”, pela Nova Fronteira, e outra tradução portuguesa “Chá e amor”, da Nova Vega; todas a partir do título original “Senbazuru” (Mil Tsurus) – com a referência à ave símbolo nacional no Japão, o grou.

Primeiro, quero acentuar, pois hoje em dia existem pessoas que não estão muito interessadas em leitura mais, digamos, “pesada”, cuja linguagem guarda elementos e significados mais profundos, de que a linguagem de Kawabata não é hermética ou incompreensível, pelo contrário, é fluída, lapidada o suficiente para não deixar dúvidas quanto aos objetivos do autor. Nada parecido com James Joyce ou Thomas Mann (deste sou fã, e do outro, é-me quase intragável... Tudo bem que a leitura de Joyce se deu há muito tempo, quase imediatamente após sair da adolescência, o que pode ter pesado na minha antipatia e desagrado. Talvez devesse relê-lo... se eu tiver coragem suficiente), por exemplo, asseguro.

Segundo, a história é acessível, sem digressões e mudanças abruptas do tempo narrativo, sem muitas personagens e temas secundários. Com isso, não estou a dizer que ela seja banal ou simplória, não é isso. É muito bem elaborada, delicada, diria quase poética, cujo tema central aparenta ser a feminilidade ou a sexualidade mas trata mesmo da complexidade dos relacionamentos, a consciência e o quão perigoso pode ser renunciar a ela, e os desejos... Por mais diferente e exótica seja a realidade oriental, no Japão dos anos 1940, o homem é o mesmo, seja lá ou cá, e as dúvidas, permeadas pela instabilidade emocional, apenas tornam isso ainda mais evidente, inexplicável e embaraçoso.

Terceiro, os personagens vivem em constante disputa, seja por afetos e carinhos, vingança ou autoafirmação, sutilezas e exageros, amor e ódio, presença ou ausência... Nada se perde em meio ao presente atrelado ao passado, como se ele fosse, e dele não se pudesse desvencilhar.

Tudo começa em uma cerimônia de chá ou Chadô (uma tradição iniciada no séc. XII, exclusivamente para homens, e que no final do séc. XIX foi aberto às mulheres). Mais do que uma simples reunião é um ritual budista, cujo Japão moderno e ocidentalizado queria se desvencilhar, ignorar e, por que não, combater. O Japão, ao negar a tradição, negava a si mesmo, desprezava-se, na busca de outra identidade, a aplacar a decadência moral, espiritual, e satisfazer-se à cata de novos desejos e anseios, sem saber ao certo aonde chegariam. É esse o pensamento e vontade de Kikuji, protagonista da história, e que se envolve com duas amantes do pai, falecido. Yukiko, a amante que tem uma mancha escura no seio, quer arrastá-lo de todo jeito para o complexo mundo da cerimônia do chá, e assim tornar-se proeminente em sua vida. Ao mesmo tempo, cínica e impiedosa, não se importa com nada ou ninguém além de si mesma e daquilo a apanhar as pessoas, torná-las subordinadas a seus princípios e interesses. Via de regra, toda a habilidade e presteza em realizar e conduzir as cerimônias do chá têm por fim seduzir e confinar as pessoas à sua vontade.

A outra amante do pai, a senhora Ota, enebria-o com a sua sensualidade, a ponto de, como Absalão fez com as concubinas do seu genitor, Davi, deitar-se com ela. Ela o seduz em sua fragilidade, em seu carinho, e ainda que inconsciente, pelas memórias afetivas e ternas e respeitosas do seu velho. A ponto do seu amor por Kikuji confundir, atormentar, molestar, levando-a a exaustão emocional. É a morte do velho, substituído pelo novo, aflitivo, perturbador, triste... As exigências do presente são impossíveis de se suportar, tornam-na vulnerável, em frangalhos.

Por fim, Kikuji mantém a amizade com Fumiko, filha da senhora Ota, e mais uma vez a novidade, neste caso o próprio Kikuji, parece vir mais para confundir e dilapidar as estruturas, o arcabouço convencional da vida japonesa, enquanto assiste, estoico e leviano, os desejos distanciá-lo mais e mais da realidade, não apenas a mera tradição, mas da responsabilidade com as pessoas... E assim se vê, pouco a pouco, em um círculo vicioso do qual não pode sair, não tem forças para sair, e nele se isola. Não é mau ou perverso, apenas desgovernado por suas paixões, confuso ao negar o passado sem saber o que lhe reserva o futuro. Em última análise, também morre ao idealizar um mundo morrediço enquanto vislumbra outro natimorto... Fumiko se torna também no fracasso do novo mundo, das expectativas e esperanças afogadas no nascedouro; e Kikuji vislumbra-se perdido, sem o passado descartado em prol das novidades e essas frustradas, sem sobrar nada além do apetite irrequieto e malsucedido.

Kawabata sabia muito bem isso e, à sua maneira, elegante e diáfana, imprimiu uma marca bruta na alma (assim como a mancha de Kurimoto, oculta, mas ainda uma chaga), como o ferro quente a atravessar o couro.


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Avaliação: (***)

Título: Mil Tsurus

Autor: Yasunari Kawabata

Páginas: 176

Editora: Estação Liberdade

Sinopse: 

"Publicado originalmente em capítulos por revistas japonesas, este romance foi escrito entre os anos 1949 e 1951. Nesse contexto em que a sociedade japonesa se reestruturava e também se defrontava com valores culturais vindos do Ocidente, Kawabata resgata valores tradicionais de seu país, fazendo da cerimônia do chá o pano de fundo para a história de Mil tsurus. Kikuji Mitani é um jovem que, durante uma cerimônia do chá, reencontra duas antigas amantes de seu falecido pai, Chikako Kurimoto e a viúva Ota, e de repente se vê profundamente envolvido com elas."









18 maio 2022

A Morte de Ivan Ilitch - Léon Tolstói

 




Jorge F. Isah

 

Mais do que a descrição da morte física (uma descrição tão detalhada e assustadora que senti as dores de Ivan, o personagem principal, como se minhas fossem), o livro descreve uma destruição progressiva e inevitável da vida pessoal e familiar de Ivan, onde muros eram construídos e aumentados à proporção da solidão, distanciamento e autopiedade na qual se lançava no curso da doença. Uma doença muito mais da alma, do espírito, do que física, culminando nas incertezas e desesperanças em que se via cada vez mais profundamente atrelado e mergulhado. E isso refletia diretamente em seus familiares que sofriam com a sua dor, mas sobretudo com a sua injustiça ao imputar-lhes a causa do seu mal.

De um problema físico, Tostói aborda, delineia e expõe as feridas e doenças da alma, em que as relações se tornam em angustiante tristeza e flagelo; a luta insana por conforto enquanto se trava uma batalha sem vitoriosos, todos vencidos.

A morte, tão presente, trazia ao homem confiante e seguro de si mesmo, satisfeito com o seu sucesso, suas realizações e conquistas, como o era Ivan, sentimentos de autocomiseração, falta de piedade, desamor e sobretudo medo; um medo tão tangível, que o apreendeu como uma moeda entre os dedos; o medo desesperançado, de atroz mortificação, implacável em seus infortúnios e flagelos. Destaco dois trechos a descreverem essa percepção:

"Em alguns momentos, depois de um período prolongado de sofrimento, desejava, mais do que outra coisa - envergonhava-se de confessá-lo, alguém que sentisse pena dele como se tem pena de uma criança doente".

"Chorou por sua solidão, seu desamparo, pela crueldade do ser humano, a crueldade de Deus e ausência de Deus".

Aqui certamente  está a resposta que tão relutantemente Ivan desdenhou quanto ao sofrimento e a desesperança: o abandono do homem em si mesmo, e a procura tresloucada de encontrar as respostas e o alívio em outras pessoas, quando em si não as há, nem mesmo em outras; a despeito de se compartilhar a humanidade, ela não se explica, nem se entende, muito menos conforta ou consola, traz esperanças ou expectações benévolas se não tiverem no Criador os seus princípios e fundamentos. Com isso, não estou a dizer que o homem, tal qual o conhecemos ou fingimos conhecer, ignorando suas origens e propósitos, é o “espelho” de Deus, ainda que o seja parcialmente e em algum sentido. Na verdade, se é fruto do acaso e forças impessoais, não há muito a ser descoberto além daquilo que somos ou podemos ser, sem ser o que imaginamos pela impossibilidade de sê-lo de fato.

Ivan esperava respostas que os seus interlocutores, ele e parentes e amigos, eram incapazes de decifrar, quanto mais explicá-las à luz das próprias consciências, autônomas e independentes. Então, não lhe restava outra coisa a não ser imputar nos outros, em Deus, ou fatalidades (a vida injusta, por exemplo) a sua própria incompreensão, ou melhor, a inaptidão para reconhecer o quão profundas, e até mesmo insondáveis, eram seus inquéritos... Somente Deus pode dá-las, e elucida-las, e mais do que isso, satisfazê-las, sem o que não restará nada a se fazer, a não ser sentir-se amargo e cínico, culpar a todos e tudo pelo que não se foi capaz de alcançar e não alcançará.

"Enquanto ela (a esposa) o beijava, ele (Ivan) odiou-a do fundo da sua alma e foi com dificuldade que conseguiu conter-se para não empurrá-la.

- Boa noite. Se Deus quiser, você dormirá bem!".

No final das contas, parece-me que Ivan não queria mesmo se curar (se não no início, durante a enfermidade agradou-lhe o sofrimento e a angústia e a indiferença, algo próximo da vitimização, e o medo que causava); e reunindo as forças que lhe restavam, sofria e fazia sofrer com empenho, a dedicação cega daqueles que ignoram o bem, não sabem vivê-lo nem deixam outros vivê-lo também. Apenas quando já não podia mais lutar, encontrou o sentimento de piedade pelos da sua casa, o que, de alguma maneira, trouxe-lhe paz e libertação, ainda que parcial, da morte iminente. Talvez esteja aí uma resposta ou fragmento de uma resposta, com a qual teve de lutar até se ver vencido. Da mesma forma que o antigo ditado diz, onde não há pão ninguém tem razão, pode-se dizer que onde não há amor há dor em profusão. E o que pode ser o amor se não um dom divino, no qual Cristo resumiu tudo: amar a Deus e ao próximo como a ti mesmo?

Ainda que tarde, Ivan talvez tenha experimentado uma centelha do amor, onde o corpo aflito poderia guardar uma alma confortada, ainda que enferma e à porta da morte.

Mais do que uma tragédia anunciada, Tolstói quis revelar a redenção, aquela pela qual somos finalmente tornados à semelhança de Deus... e apenas ele pode ordená-la.


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Avaliação: (****) 

Autor: Leon Tolstói

Páginas: 112

Editora: LP&M Pocket

Sinopse: "Esta obra mostra a história de um burocrata medíocre, Ivan Ilitch, um juiz respeitado que depois de conseguir uma oferta para ser juiz em uma outra cidade, compra um apartamento lá, para ele, sua mulher, sua filha e seu filho morarem. Ao ir para o apartamento, antes de todos, para decorá-lo, ele cai e se machuca na região do rim, dando início à uma doença"



22 abril 2022

A Humilhação, de Philip Roth

 





Jorge F. Isah



Um artista renomado, uma lenda viva do teatro, o último dos grandes atores, a figura emblemática, lendária e consagrada, este é Simon Axler, a história viva dos palcos americanos. O que poderia acontecer-lhe de pior? Perder o talento, a capacidade de interpretar? O sentido da vida? A própria vida? A saúde? O controle? O fracasso é inevitável? Ou seria possível suportar as perdas e reconstruir-se?... Já no primeiro parágrafo é possível se fazer essas e outras tantas perguntas, ao se ler:

“Ele perdera a magia. O impulso se esgotara. Ele nunca havia fracassado no teatro, tudo o que fizera sempre fora vigoroso e bem-sucedido, e então aconteceu esta coisa terrível: ele não conseguia representar. Subir ao palco tornou-se uma agonia.”

Philip Roth nos apresenta o principal dilema na vida do herói, um homem em declínio, nocauteado, a beijar a lona sem forças para se erguer, fustigado pelo passado glorioso, enquanto a encará-lo está o presente e futuro indignos.

“Humilhação” nos agarra inesperadamente, quase à força, e nos arrasta por suas páginas a conhecer o declínio, o crepúsculo do ícone entregue à própria incapacidade de se soerguer, de retomar o caminho ou, talvez, convergir a outro não tão glamoroso, mas ainda assim capaz de trazer-lhe a esperança de dias menos brilhantes mas viçosos e alentadores. Simon é um fatalista, niilista e, portanto, pessimista quanto ao seu destino. E não existem fatores externos a produzir desânimo e tristeza, pois a fonte das suas dores está em si mesmo, na negação, na autossabotagem, impedindo-o de recriar-se, de estabelecer novos vínculos e projetá-los para o amanhã. Resta-lhe então perder-se no passado, e colocar-se nele como fraude, embuste, nada do que viveu foi real, verdadeiro; e se sua vida constituiu-se de ensaios, atuações e prêmios, além de fama e reconhecimento, ele não viveu, não se realizou. A amargura assoma-o de tal maneira que não existe espaço para mais nada além da frustração de ter sido um “malogrado sucesso”.

Axler é um homem velho, solitário, e recusa qualquer ajuda, como um naufrago submergindo às ondas ciclópicas, nega-se ao socorro, afogado em seu orgulho, imerso em queixas, desprezo e autoestima, ainda que esta lhe traga vergonha e desgraça. É exatamente por não ser mais aquele grande homem do passado que está a negá-lo e a si mesmo. Teria a sua vida se misturado às dos seus personagens, em tantas tragédias, dramas, paródias e comédias? A torná-lo inábil, incapaz de se distinguir além das técnicas e arte? Aos sessenta e cinco anos, dores terríveis nas costas, chegando a imobilizar uma das pernas, sem família, sem amigos, não estaria em um palco, monólogo em curso, diante de uma plateia de cadeiras vazias? Permanentemente abandonado?... Esta foi a sua escolha, dentre tantos movimentos explícitos e furtivos de subjazer-se ao aparente, o seu adequado personagem valer-se do homem. Porém, o homem se rebela contra o personagem, e leva Simon ao sofrimento, à tristeza, ao desamparo, à quase loucura, a internar-se em uma clínica psiquiátrica; e para tanto é necessário o homem morrer e pôr fim às mentiras impostas pelo personagem.

No segundo ato, ele se reencontra com Peggeen, filha de amigos que viu nascer, e agora, aos quarenta anos, surge em sua vida como a tábua de salvação. Aqui, neste ponto, Axler tenta desesperadamente a redenção, ao mesmo tempo em que Peggeen também procura o recomeço, após viver uma relação homossexual frustrada, em que sua parceira decide, à sua revelia, transformar-se em um “homem” heterossexual, por meio de hormônios e cirurgias (digo, amputações: ou arrancar os seios seria o quê?). Duas personalidades erráticas se encontram, e nada pareceria mais improvável, ao mesmo tempo possível, do que a cooperação de almas aflitas e desconectadas da realidade, ou melhor, em um estado de hipérbole realista, onde parecem lançar-se para baixo, uma curva onde os focos são diferentes mas se vislumbra apenas a autodestruição. Se havia a confluência de escolhas e desejos, a aparentar solução dos dilemas, ele se mostrou frágil e efêmero, como um fio podre e quebradiço a conduzir as suas almas sobre o abismo. Enquanto Peggeen deixou-se modelar, reconstruir-se pelas mãos inseguras de Simon, este imaginou redimir-se no papel de “Criador”, ao transformar a amante, de homossexual no estilo “Joãozinho”, a uma heterossexual feminina e sedutora. A momentânea submissão de Peggeen se releva desesperadora, forçosa e débil, quase pantomímica; e a obstinação de Axler em reconduzi-la à naturalidade deixou-o inebriado com a sensação de controle, da situação exterior se refletir em equilíbrio ao seu interior arrasado pela descrença e ceticismo. Por um tempo, a esperança pareceu real, a expectativa vindoura de nova vida, novos rumos, a promessa de realização presumível.

A ideia do sexo e os necessários malabarismos e esquisitices a fim de sustentar o relacionamento provou-se frágil, enganosa, cuja escolha tornou-se ainda mais dolorosa, devastadora, quando extinguiu-se em si mesma, após alguns meses. Aqui temos o terceiro e último ato. Interessante que, no primeiro momento, o que se afigurava apenas apelativo e pretensioso (a narrativa de vários momentos de volúpia irrefreada) configurou-se em crítica, de Roth, ao vazio e insano valor que as pessoas dão aos desejos, ao irracionalismo, o verdadeiro “carrossel de emoções”, onde a gangorra da insegurança e desatinos não preenche as lacunas deixadas na alma, antes as põe a ferros, impenetráveis, sem a menor possibilidade de serem completadas ou satisfeitas. Constrói-se camadas e camadas de insatisfação e desgosto, ao ponto em que fugir, seja voltar-se à vida pregressa, no caso de Peggeen, ou aos planos interrompidos de Axler, tornam-se a única saída. O homem moderno, tão cheio de si, autossuficiente, a proclamar em bom som a sua autonomia, é presa fácil para o mundo cada vez mais pálido, inseguro, cinza e sem qualquer piedade aos maneirismos e vaidade, mais especificamente com aqueles dispostos a erguer um altar a si mesmos, e, no fim das contas, tornarem também a imolação, o sacrifício voluntário ao domínio da vontade; quando o preço a ser pago é a supressão da consciência, do fundamento, da vida. Então, restou a Simon ver suas forças exaurirem-se, e, por fim, ser completamente humilhado.

Ao final, até mesmo o personagem apagou-se. O esplendor fátuo entregou-o às sombras do tempo... no encerrar do último ato.

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Avaliação: (***)

Título: A Humilhação

Autor: Philip Roth


Páginas: 104

10 março 2022

O anti best-seller em "Grandes Esperanças", de Charles Dickens

 




Jorge F. Isah


É um livro fabuloso, em vários sentidos, e não poderia abarcar todos em uma simples resenha, talvez em um longo ensaio, mas não é este o objetivo. Quero ater-me à capacidade impressionante, e quase hipnótica, com a qual Dickens seduz e captura o leitor. De maneira que se torna impossível abandoná-lo, mesmo diante de quase mil páginas. Sim, é volumoso não apenas quanto ao número de laudas, mas quanto a profusão de personagens, lugares, descrições e sentimentos aflorados, expressos ou implícitos. Talvez, por isso, tenha me sido difícil sequer iniciar a escrita desta resenha, tal o grau de complexidade da narrativa se apresentava. Vinha-me tantas coisas à cabeça, ao mesmo tempo, que não sabia ao certo por onde começar. Porém, tudo tem um começo, e o meu se dá assim, em dizer ao caro leitor: escrevo não para desnudar a obra, mas apresentá-la do melhor jeito a fim de que se interesse em lê-la e desvendá-la.

Simplesmente, não há como ser ou ficar indiferente a uma só linha, a uma descrição, ação ou reação no enredo. Pode-se gostar ou não, e gosto não é, na maioria das vezes, a melhor forma de se avaliar um livro, música, filme ou qualquer outra coisa. Antes ele deve se subordinar ao caráter objetivo, intelectual e emoção à qual se está exposto. O crivo para a crítica jamais pode ser algo apenas questão de ânimo, simples paladar ou sensação, sem a habilidade e análise dedicada e criteriosa. Ou seja, literatura de qualidade não é apenas diversão, mas se mede com o equilíbrio da meditação e discernimento, o escrutínio de frases, parágrafos, capítulos, necessários à compreensão da mensagem, ou mensagens, entregue pelo autor. Não é uma ciência exata, algo a se imprimir rigor extremo, porém não pode tornar-se banalizada pelo capricho ou achismo, sem o exame íntimo, a capacidade de influenciar e alertar o leitor para as verdadeiras e essenciais questões a trazer sentido e revelação sobre a vida. Portanto, ao ler, ouvir ou ver qualquer obra de arte, não diga que é “bonitinha”, “engraçadinha” ou “legalzinha”, mesmo que a deteste profundamente, fuja do clichê, confronte-a consciente, e dê a definição, mesmo que não seja precisa e exata, do seu conteúdo, e o porquê de abominá-la.

Posto isso, o que dizer de “Grandes Esperanças”? Em muitos aspectos a temática do jovem órfão (tanto de Oliver Twist ou David Copperfield) está presente, com todos os aspectos trágicos, dolorosos e injustos aos quais os desamparados estão sujeitos. Não é diferente com “Pip”, sem pais e criado pela irmã, inflexível, severa e cruel, casada com Joe, um homem simples, ingênuo, bondoso e cujo coração é incapaz de revidar as agressões da mulher, habituada a tratá-lo com desprezo e violência física. Ele é uma alma terna, branda, benigna, e vê em Pip não o fardo ao qual a esposa se refere sempre, mas o amigo de infortúnios, cúmplice das mazelas pelas quais a vida arrocha. Ambos têm na comunhão, nos poucos momentos de solidão mútua, o descanso e alívio para o dia a dia conturbado, no qual esposa e irmã insiste em impor-lhes.

Quase todas as personagens à volta de Pip lhe são hostis, à exceção de Joe, como dito, Bitty, a amiga e professora, Herbert, futuro amigo de Londres, Wemmich e Magwitch, o “anjo da guarda” do órfão. Então, não é difícil imaginar as diversas situações em que o caráter de Pip é testado, diante de pessoas incapazes de agirem sem o desejo (mesmo inconsciente) de prejudicar e subjugar a pobre alma. E, entre elas, Dickens expõe as misérias sociais, mas também, e sobretudo, as moléstias e feridas individuais, sem as quais a sociedade não seria como era, ou não seria como é. Ou seja, ele fala, descreve, a humanidade, a nossa essência, de tal maneira que é possível, em um único ser, coabitar o mal e o bem, a mentira e a verdade, moral e cinismo, indiferença e arrependimento... Todos, não somente eles mas também nós, estamos diante dessa realidade, enquanto alguns satisfazem-se na perpetuação do mal, o descaso com o próximo, notabilizando-se naquilo a torná-los mais execráveis e hediondos, outros buscam a redenção, transformar, aperfeiçoar-se e serenar todas as guerras, em busca da paz interior, a despeito de haver ou não trégua do lado de fora.

Alguém pode aludir que esse estado de coisas nada mais é do que egoísmo disfarçado de superioridade, mas inquiro-o: é possível fazer a paz com o mundo se existisse a guerra no íntimo? O orgulho promove a guerra interna e externa, enquanto a caridade, em princípio, vê no outro aquilo a ser visto em si mesmo, com todas as suas implicações para o bem ou o mal. É entender o outro como deseja ser entendido, mesmo que não seja, e se não é possível o acordo e o fim das disputas, deve-se, no mínimo, não encorajá-la, antes esmorecê-la. Como Jesus diz: “Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem” (Mateus 5:44)... Desta forma, Pip descobre, com o passar dos anos, a verdadeira essência da vida, e de as “grandes esperanças” inicialmente vista como acaso ou sorte, se declarar providência e servir, ao mesmo tempo, de queda mas também de escada para compreender o seu lugar no mundo, e se relacionar saudavelmente com ele. Foi preciso adentrar a escuridão completa para desejar a luz e apreciá-la... Não é assim com todos, em maior ou menor grau?... Há, contudo, aqueles incapazes de anelar e perseguir a luz; para eles existem apenas breu e trevas, nada além da própria cegueira.

Algo notável em Pip é o fato de, em boa parte da infância, viver com o estigma do medo, da apreensão, à espera de castigos, reprimendas e sanções. À medida em que os anos se passavam, e sua vida se transformava radicalmente, persistiam medo e apreensão, não mais em relação aos outros, mas a si mesmo, de as grandes expectativas se transformarem em fracasso, de não alcançar aquilo que sempre desejou, de frustrar a si e suas promessas. Não é difícil notar o desregramento, a futilidade, a ingratidão, e o esforço estéril em fugir do passado, do presente, sem perceber o quão distante e improvável era-lhe as ambições futuras... O curso da vida sinalizava-lhe um horizonte nada auspicioso; talvez, por não levar a sério os alertas, optou em desprezá-los, não conseguindo suprimi-los ou derrotá-los.

Se você espera apenas se distrair, esqueça “Grandes Esperanças” ou qualquer outra obra de Dickens. Se busca um enredo histórico, saiba que ele transcende, em muito, a este detalhe. Se for uma trama de época, vale a mesma observação. Se for curiosidade, talvez se satisfaça, não pela curiosidade em si, mas pelo que ela o incitará a descobrir, ou, em outras palavras, descortinará de si mesmo enquanto lê; pois está a falar do âmago humano, do qual todos somos partícipes, uns mais outros menos, sem exceção.

Charles Dickens, como a maioria dos autores do século XIX, escrevia seus romances em periódicos, semanalmente, e foi um dos mais famosos de seu tempo, se não o mais famoso. Alguns dizem ser o equivalente aos autores de best-seller da atualidade, em nível de popularidade e vendas. Não consigo, por mais esforço dispenda, encontrar um único autor líder de vendas que seja ao mesmo tempo simples e profundo, pessoal e universal, peculiar e geral, característico e abrangente, como Dickens. A expressão “best-seller” tornou-se sinônimo de vulgar, ruim, comercial e descartável ao longo do tempo, e se existe uma coisa da qual Dickens não pode ser acusado é disso. Reputá-lo também como um mero contador de históricas ou fazedor de tipos, seria reduzi-lo a algo que jamais foi ou será, bastando ler qualquer das suas obras para se certificar desse engano... Talvez, e somente talvez, haja um “torcer de nariz” por conta da linguagem acessível, límpida e fluída, elegante e refinada, quase poética, a compor o texto, sem hermetismos, dubiedades e pedantismos típicos a agradar boa parte dos críticos e vanguardistas das artes. Para esses, se uma obra não for ininteligível, confusa e estanque não é arte, mesmo que se disserte e delongue sobre o extenso vazio de sua concepção. No caso, Dickens não somente tem muito a dizer, mas o diz, para leigos e peritos, doutos, eruditos ou simples mortais. Qualquer um pode, na medida do possível, apreender e apropriar-se da diegese, da realidade a fluir das suas centenas de páginas.

Portanto, sem citar Estela, Miss Havisham, Mr. Jaggers, Drummie, Mr. Pumblechook e tantos outros vultos imprescindíveis à compreensão da história e repletos de humanidade, deixo ao leitor essas parcas impressões que, contudo, espero ser suficientes para aflorar o desejo de tomar esta obra em suas mãos, degustá-la (mesmo indigesta, em vários pontos), e então compreender toda a complexidade, íntima e abissal, do homem. E Dickens é um dos maiores embaixadores ou representantes do espírito e coração a emanar da nossa natureza.

Leitura recomendadíssima!


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Avaliação: (*****)

Título: Grandes Esperanças

Autor: Charles Dickens

Páginas: 704

Editora: Penguin

Sinopse: 

“Grandes Esperanças” é, sobretudo, um romance de redenção e perdão de seus protagonistas: Narra a história de Philip Pirrip, ou simplesmente Pip, órfão criado pela irmã EM um ambiente de pobreza, Pip vive na casa de sua irmã mais velha, casada com um ferreiro do vilarejo. São pobres, mas não miseráveis, porém, o que aflige Pip, e seu cunhado e único amigo Joe Gargery, é a truculência com que são tratados por Mrs. Joe"