10 junho 2022

Mil Tsurus, de Yasunari Kawabata: O ferro quente no couro

 



Jorge F. Isah


O primeiro contato com a literatura japonesa se deu com Yukio Mishima e o seu “O marinheiro que perdeu as graças do mar”, lido, provavelmente, nos finais dos anos 80 e início dos 90, não sei precisar ao certo. Depois dele veio, do mesmo autor, “Neve de primavera”; e, por um bom tempo, mesmo sabendo da necessidade de revisitar e ler outros volumes de Mishima, os autores japoneses foram deixados no ostracismo. Uma falha que, reconheço, se torna quase imperdoável.

Pois bem, instigado pelo prof. Rodrigo Gurgel, resolvi ler Yasunari Kawabata, e me decidi por “Mil Tsurus”, nova tradução da Estação Liberdade, e que também tem o título de “Nuvens de pássaros brancos”, pela Nova Fronteira, e outra tradução portuguesa “Chá e amor”, da Nova Vega; todas a partir do título original “Senbazuru” (Mil Tsurus) – com a referência à ave símbolo nacional no Japão, o grou.

Primeiro, quero acentuar, pois hoje em dia existem pessoas que não estão muito interessadas em leitura mais, digamos, “pesada”, cuja linguagem guarda elementos e significados mais profundos, de que a linguagem de Kawabata não é hermética ou incompreensível, pelo contrário, é fluída, lapidada o suficiente para não deixar dúvidas quanto aos objetivos do autor. Nada parecido com James Joyce ou Thomas Mann (deste sou fã, e do outro, é-me quase intragável... Tudo bem que a leitura de Joyce se deu há muito tempo, quase imediatamente após sair da adolescência, o que pode ter pesado na minha antipatia e desagrado. Talvez devesse relê-lo... se eu tiver coragem suficiente), por exemplo, asseguro.

Segundo, a história é acessível, sem digressões e mudanças abruptas do tempo narrativo, sem muitas personagens e temas secundários. Com isso, não estou a dizer que ela seja banal ou simplória, não é isso. É muito bem elaborada, delicada, diria quase poética, cujo tema central aparenta ser a feminilidade ou a sexualidade mas trata mesmo da complexidade dos relacionamentos, a consciência e o quão perigoso pode ser renunciar a ela, e os desejos... Por mais diferente e exótica seja a realidade oriental, no Japão dos anos 1940, o homem é o mesmo, seja lá ou cá, e as dúvidas, permeadas pela instabilidade emocional, apenas tornam isso ainda mais evidente, inexplicável e embaraçoso.

Terceiro, os personagens vivem em constante disputa, seja por afetos e carinhos, vingança ou autoafirmação, sutilezas e exageros, amor e ódio, presença ou ausência... Nada se perde em meio ao presente atrelado ao passado, como se ele fosse, e dele não se pudesse desvencilhar.

Tudo começa em uma cerimônia de chá ou Chadô (uma tradição iniciada no séc. XII, exclusivamente para homens, e que no final do séc. XIX foi aberto às mulheres). Mais do que uma simples reunião é um ritual budista, cujo Japão moderno e ocidentalizado queria se desvencilhar, ignorar e, por que não, combater. O Japão, ao negar a tradição, negava a si mesmo, desprezava-se, na busca de outra identidade, a aplacar a decadência moral, espiritual, e satisfazer-se à cata de novos desejos e anseios, sem saber ao certo aonde chegariam. É esse o pensamento e vontade de Kikuji, protagonista da história, e que se envolve com duas amantes do pai, falecido. Yukiko, a amante que tem uma mancha escura no seio, quer arrastá-lo de todo jeito para o complexo mundo da cerimônia do chá, e assim tornar-se proeminente em sua vida. Ao mesmo tempo, cínica e impiedosa, não se importa com nada ou ninguém além de si mesma e daquilo a apanhar as pessoas, torná-las subordinadas a seus princípios e interesses. Via de regra, toda a habilidade e presteza em realizar e conduzir as cerimônias do chá têm por fim seduzir e confinar as pessoas à sua vontade.

A outra amante do pai, a senhora Ota, enebria-o com a sua sensualidade, a ponto de, como Absalão fez com as concubinas do seu genitor, Davi, deitar-se com ela. Ela o seduz em sua fragilidade, em seu carinho, e ainda que inconsciente, pelas memórias afetivas e ternas e respeitosas do seu velho. A ponto do seu amor por Kikuji confundir, atormentar, molestar, levando-a a exaustão emocional. É a morte do velho, substituído pelo novo, aflitivo, perturbador, triste... As exigências do presente são impossíveis de se suportar, tornam-na vulnerável, em frangalhos.

Por fim, Kikuji mantém a amizade com Fumiko, filha da senhora Ota, e mais uma vez a novidade, neste caso o próprio Kikuji, parece vir mais para confundir e dilapidar as estruturas, o arcabouço convencional da vida japonesa, enquanto assiste, estoico e leviano, os desejos distanciá-lo mais e mais da realidade, não apenas a mera tradição, mas da responsabilidade com as pessoas... E assim se vê, pouco a pouco, em um círculo vicioso do qual não pode sair, não tem forças para sair, e nele se isola. Não é mau ou perverso, apenas desgovernado por suas paixões, confuso ao negar o passado sem saber o que lhe reserva o futuro. Em última análise, também morre ao idealizar um mundo morrediço enquanto vislumbra outro natimorto... Fumiko se torna também no fracasso do novo mundo, das expectativas e esperanças afogadas no nascedouro; e Kikuji vislumbra-se perdido, sem o passado descartado em prol das novidades e essas frustradas, sem sobrar nada além do apetite irrequieto e malsucedido.

Kawabata sabia muito bem isso e, à sua maneira, elegante e diáfana, imprimiu uma marca bruta na alma (assim como a mancha de Kurimoto, oculta, mas ainda uma chaga), como o ferro quente a atravessar o couro.


___________________________ 

Avaliação: (***)

Título: Mil Tsurus

Autor: Yasunari Kawabata

Páginas: 176

Editora: Estação Liberdade

Sinopse: 

"Publicado originalmente em capítulos por revistas japonesas, este romance foi escrito entre os anos 1949 e 1951. Nesse contexto em que a sociedade japonesa se reestruturava e também se defrontava com valores culturais vindos do Ocidente, Kawabata resgata valores tradicionais de seu país, fazendo da cerimônia do chá o pano de fundo para a história de Mil tsurus. Kikuji Mitani é um jovem que, durante uma cerimônia do chá, reencontra duas antigas amantes de seu falecido pai, Chikako Kurimoto e a viúva Ota, e de repente se vê profundamente envolvido com elas."









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