19 julho 2010

Pecado, a tragédia!















Por Jorge Fernandes Isah

Nos últimos anos, temos lido e ouvido uma avalanche de justificativas para as tragédias que têm acometido o mundo: tsunamis, terremotos, enchentes, seca, e muitas outras catástrofes que nos têm deixado atônitos. A pergunta que não quer se calar é: qual a relação entre essas tragédias e o pecado?


Muitos apelarão para o deus que se surpreende com um tsunami ou um terremoto. Outros dirão que ele abriu mão da sua onipotência e onisciência para sentir e sofrer como nós, logo, estando impotente para agir diante das desgraças, e mesmo da vontade do homem; um pobre-coitado preso na própria armadilha, sem chance de se libertar. Outros, ainda, alegarão que deus não está nem aí para este mundo. Haverá os que defendem a soberania da natureza, a eco-divindade, a deusa Gaya dos tempos modernos, que está a se revoltar contra as agressões perpetradas pelo homem. Porém, o fato é que:


1) Deus é soberano; e nada acontece alheio ou contra a sua vontade: “Eu sou o Senhor, e não há outro. Eu formo a luz, e crio as trevas; eu faço a paz, e crio o mal; eu, o Senhor, faço todas estas coisas” [Is 45.6-7]; “Tocar-se-á a trombeta na cidade, e o povo não estremecerá? Sucederá algum mal na cidade, sem que o Senhor o tenha feito?” [Amós 3.6].


2) Deus controla e coordena todas as coisas, inclusive as mais insignificantes e desprezadas; ao ponto em que muitos se perguntam: Por que Deus se importaria com isso?... Ele tem mais o que fazer!


Acontece que Ele é Deus, o Criador de todas as coisas; e se foram criadas, foram-no com um propósito definido, irrevogável, ultimado, a produzir eficazmente os resultados que determinou antes da fundação do mundo; portanto, por que o Senhor deixaria ao léu a criação? À própria sorte? Como está escrito: “E todos os moradores da terra são reputados em nada, e segundo a sua vontade ele opera com o exército do céu e os moradores da terra; não há quem possa estorvar a sua mão, e lhe diga: Que fazes?” [Dn 4.35].


3) O cerne da questão é: até que ponto o Deus bíblico pode deixar de ser Deus? Até que ponto Ele pode abandonar a sua criação e continuar Deus? E se existe alguma autonomia nas coisas, seja na natureza ou no homem, Deus permaneceria Deus, o Todo-Poderoso, o Soberano, Senhor de tudo? Não, porque Ele mesmo diz de Si mesmo: “Como pensei, assim sucederá, e como determinei, assim se efetuará... Porque o Senhor dos Exércitos o determinou; quem o invalidará? E a sua mão está estendida; quem pois a fará voltar atrás?” [Is 14.24, 27].


Algo que o crente jamais poderá duvidar é na completa, plena, irreversível e inexorável soberania divina, com o risco de se comprometer a fé bíblica e ser achado entre os que rejeitando a fé e a boa consciência “fizeram naufrágio na fé”[1Tm 1.19]. Então, sejam os tsunamis, os terremotos, incêndios, pestes, ou um tiro desferido ao “acaso” e que vitimou alguém, ou uma doença incurável, tudo estará magistralmente sob o domínio do Senhor, sem que um mísero fio de cabelo caia por indiferença, ao contrário, ele cairá sempre e infalivelmente segundo a autoridade dAquele que decretou eternamente que caísse: “Não se vendem dois passarinhos por um ceitil? E nenhum deles cairá em terra sem a vontade de vosso Pai. E até mesmo os cabelos da vossa cabeça estão todos contados” [Mt 10.29-30].


Assim, dizer que Deus não quis que milhões de pessoas morressem desgraçadamente, vitimadas por calamidades naturais é, para dizer pouco, uma blasfêmia; quando não, o reflexo do ceticismo, da autoidolatria, da não-conversão, em que muitos, por não aceitar a verdade, refestelam-se na mentira. Pois como Ele diz: “Eu sou o Senhor, e não há outro; fora de mim não há Deus” [Is 45.5]. Se alguém está a crer em outra coisa, seja o homem, a ciência, ou em outro deus qualquer, jamais a fé estará depositada no Deus bíblico, o Deus de Abraão, Isaque e Jacó, e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. 


Acreditar que o "acaso" ou forças impessoais dirigem o universo, e de que Deus é um mero espectador, impassível ou angustiado em sua impossibilidade de ação, é estar imerso na mais falsa e espúria corrupção, ao ponto em que Deus é desfigurado de tal maneira que não guarda nada em sua essência que seja verdadeiro. Resta aos defensores dessas doutrinas assumirem as consequências de não terem a mente de Cristo; e urge voltarem à Palavra, sob pena de serem por ela declarados culpados [Jo 12.48].


Voltando à pergunta inicial, qual a relação entre as tragédias e o pecado? É certo afirmar que o pecado não tem nada a ver com as catástrofes pessoais ou coletivas? Errado! Porque não entender que todas as coisas acontecem pelo vontade ativa do Senhor torna o homem num tolo, já que "na sua mão está a alma de tudo quanto vive, e o espírito de toda a carne humana" [Jó 12.9-10]


A primeira conseqüência do pecado foi a morte do homem. Não a morte física, mas a morte espiritual. O homem foi separado de Deus. E pode haver conseqüência pior, mais danosa? Foi o Senhor quem disse a Adão: “Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás” [Gn 2.17]; o que também foi confirmado pelo profeta: “Cada um morrerá pela sua iniqüidade” [Jr 31.30]. A pior morte não é a corrupção da carne, sendo ela também reflexo do pecado, mas a separação profunda e intensamente letal de Deus.


Em Gênesis, após o pecado de Adão e Eva, Deus os amaldiçoou, bem como a serpente; e lê-se: “maldita é a terra por causa de ti [Adão]; com dor comerás dela todos os dias da tua vida... No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que te tornes à terra; porque és pó e em pó te tornarás” [Gn 3.17, 19]. Ou seja, o pecado do homem afetou não somente a sua condição, mas a condição de toda a criação, que clama pelo dia em que será redimida também: “Porque sabemos que toda a criação geme e está juntamente com dores de parto até agora. E não só ela, mas nós mesmos que temos as primícias do Espírito, também gememos em nós mesmos, esperando a adoção, a saber, a redenção do nosso corpo” [Rm 8.22-23]. O pecado é o maior de todos os males, a desgraça potencialmente destrutiva e que, se minimizado, representará a completa destruição daquele que negligencia sua nocividade, sendo indulgente para com ele.


Paulo diz: “Mortificai, pois, os vossos membros, que estão sobre a terra: a fornicação, a impureza, a afeição desordenada, a vil concupiscência, e a avareza, que é idolatria; pelas quais coisas vem a ira de Deus sobre os filhos da desobediência” [Cl 3.5-6].


Podemos afirmar, seguramente, que as tragédias não têm nada a ver com o pecado? E que não acontecem como manifestação da ira divina? Em quais bases os “apologistas” desta doutrina se firmam para garanti-la?


Será, porventura, no Salmo 78.31? “Ainda lhes estava a comida na boca, quando a ira de Deus desceu sobre eles, e matou os mais robustos deles, e feriu os escolhidos de Israel”.


Ou será em Atos 5.1-10? Quando Ananias e sua mulher venderam uma propriedade, retiveram parte do dinheiro, e depositaram o restante aos pés dos apóstolos? “Disse então Pedro: Ananias, por que encheu Satanás o teu coração, para que mentisses ao Espírito Santo, e retivesses parte do preço da herdade? Guardando-a não ficava para ti? E, vendida, não estava em teu poder? Por que formaste este desígnio em teu coração? Não mentiste aos homens, mas a Deus. E Ananias, ouvindo estas palavras, caiu e expirou” [v. 3-5].


Pode ser Atos 13.8-12? Em que Elimas, o encantador, resistia a Paulo e Barnabé, diante do Procônsul Sérgio Paulo, procurando afastá-lo da fé? Ao que Paulo disse: “Ó filho do diabo, cheio de todo o engano e de toda a malícia, inimigo de toda a justiça, não cessarás de perturbar os retos caminhos do Senhor? Eis aí, pois, agora contra ti a mão do Senhor, e ficarás cego, sem ver o sol por algum tempo. E no mesmo instante a escuridão e as trevas caíram sobre ele e, andando à roda, buscava a quem o guiasse pela mão” [v.10-11].


Porventura seria 1 Samuel 5? Em que os filisteus tomaram a arca de Deus, colocando-a na casa de Dagom? “Porém a mão do Senhor se agravou sobre os de Asdode, e os assolou; e os feriu com hemorróidas, em Asdode e nos seus termos”[v.6].


A arca foi passada de mão em mão, e a peste se alastrou sobre aqueles que retinham a arca de Deus: “A arca do Deus de Israel será levada até Gade... E sucedeu que, assim que a levaram, a mão do Senhor veio contra aquela cidade, com mui grande vexame” [v. 8.9]. “E os homens que não morriam eram tão atacados com hemorróidas que o clamor da cidade subia até o céu” [v.12].


Quem sabe em Levítico 10? “E os filhos de Arão, Nadabe e Abiú, tomaram cada um o seu incensário e puseram neles fogo, e colocaram incenso sobre ele, e ofereceram fogo estranho perante o Senhor, o que não lhes ordenara. Então saiu fogo de diante do Senhor e os consumiu; e morreram perante o Senhor” [v.1-2].


Ou ainda, em 2 Samuel 6? “E, chegando à eira de Nacom, estendeu Uzá a mão à arca de Deus, e pegou nela; porque os bois a deixavam pender. Então a ira do Senhor se acendeu contra Uzá, e Deus o feriu ali por esta imprudência; e morreu ali junto à arca de Deus” [v. 6-7].


Acho que não...


Assim como esses versos, há uma profusão de outros versos na Escritura que revelam o castigo divino sobre os rebeldes, sejam castigos físicos ou espirituais, ou ambos. Dizer que Deus não castiga o pecador é um grande engano. Da mesma forma, muitos querem humanizá-lo a partir de falsos pressupostos, como se o crente não devesse se utilizar dos pressupostos bíblicos. Por isso, muitos desprezam a Escritura, querem desacreditá-la, reescrevê-la, reinterpretá-la, a fim de atender aos objetivos mais vis e desprezíveis que a alma humana pode conceber. Há uma legião de falsos crentes que estão sistematicamente a deflagrar em outros o seu ceticismo, ao ponto de acreditarem apenas na própria tolice. Estão a entoar uma canção fúnebre, marchando em direção ao abismo, evitando qualquer contato com a sabedoria que vem do alto [Ecl 7.5].


Um dos argumentos mais usados para defender o não-castigo para o pecado é o trecho em que Cristo fala sobre os galileus, presente em Lucas 13. Segundo o argumento deles, diga-se de passagem distorcido, se Cristo diz: “Cuidais vós que esses galileus foram mais pecadores do que todos os galileus, por terem padecido tais coisas? Não, vos digo; antes, se não vos arrependerdes, todos de igual modo perecereis” [v. 2-3], é sinal de que não foi pelo pecado que aqueles homens padeceram a tragédia [esses galileus foram mortos e tiveram o sangue misturado com os seus sacrifícios no templo, por Pilatos]. Porém, não é isso que o Senhor afirma, pois, o que está a dizer é: todos são pecadores, e não foi porque alguns pecaram mais que sofreram mais; contudo, mesmo não pecando tanto como aqueles, se não se arrependerem perecerão de igual modo. O Senhor está chamando a atenção não para o grau de pecado, se maior ou menor, mas para o fato de que pecando, seja em qual nível for, sem arrependimento estarão todos condenados à morte. Ou seja, o pecado será sempre punido, de uma forma ou de outra.


Outro trecho muito utilizado é o de João 9. Ali, os discípulos ao verem um cego de nascença, perguntam: “Rabi, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego? Jesus respondeu: Nem ele pecou nem seus pais; mas foi assim para que se manifestem nele as obras de Deus” [v.2-3]. Apressadamente, muitos dirão: "Viu! O mal não sobrevém por causa do pecado. O cego não fez nada para merecer a cegueira, coitadinho! Senão, como explicar que ele nasceu cego? E por que eu não nasci cego?".


Especificamente, nesta questão, Cristo disse que a cegueira daquele homem era para que a obra de Deus fosse manifestada nele. Cristo o curaria diante dos olhos incrédulos dos judeus, ao ponto em que o cego daria testemunho não somente diante da assistência atônica [“desde o princípio do mundo nunca se ouviu que alguém abrisse os olhos a um cego de nascença” v. 32], mas também diante dos fariseus, da incredulidade e hipocrisia deles, que consideravam transgressão Cristo curar no Sábado. Aquele homem foi instrumento para revelar ao mundo que em Cristo está manifestada a glória de Deus, pelas obras que Ele faz em nome do Pai; “a fim de que os que não vêem veja, e os que vêem sejam cegos” [v.39]; mas mais do que isso, para revelar que era Deus, e não estava sujeito à Lei, ainda que a cumprisse integralmente. Há também uma referência explícita à cegueira espiritual em que o homem natural está imerso, e somente Cristo pode tirá-lo da sepultura, das trevas em que se encontra, trazendo-o para a luz, salvando-o da condenação. Logo, não há argumento aqui a isentar o homem de sofrer pelo pecado; pelo contrário, todos sofrerão por causa dele, de um jeito ou de outro. Mesmo nós, os remidos pelo sangue de Cristo na cruz, não estamos livres dos seus efeitos, o que acontecerá somente na eternidade, quando seremos impossibilitados por Deus de pecar, feitos santos como santo é o seu Filho Amado.


Em outra passagem, Jesus curou um homem que se achava enfermo trinta e oito anos. O Senhor se aproximou dele sabendo que estava doente há muito. Depois de algum tempo, eles se encontraram novamente no templo, e Jesus disse-lhe: “Eis que já estás são; não peques mais, para que não te suceda alguma coisa pior” [Jo 5.14]. Ao meu ver, o Senhor está a falar de um pecado específico cometido por aquele homem no passado e que motivou a enfermidade, ou simplesmente de pecados genéricos. De qualquer forma, o aspecto geral de sua exortação era para que ele evitasse o pecado a todo custo, resistindo-lhe.


Como nos exemplos anteriores, vemos que existe a punição física pelo pecado também aqui, tanto no aspecto individual como coletivo. Com isso, não quero dizer que devamos sair à caça dos pecados alheios, apontando-os e usando-os como justificativa para a tragédia na vida humana. Porém, Deus em sua soberania, pode dispor de cada um de nós da forma como quiser, como melhor lhe convém, sem que possamos, com isso, acusá-lo de qualquer delito ou desvio de caráter. Deus é santo, perfeito, justo e Senhor. Cabe-nos reconhecê-lo como tal, e a Ele dar honra e glória, para sempre. Sem nos esquecer de que o pecado será punido, de que o infrator, ao rejeitar o nome de Cristo como Senhor e Salvador, estará irremediavelmente perdido. Porque a verdade não pode ser desfeita, nem alterada, mas permanece imutável, garantida pelo próprio Deus: “Eis que todas as almas são minhas; como o é a alma do pai, assim também a alma do filho é minha: a alma que pecar, essa morrerá” [Ez 18.4].


Deixar-se iludir pelo pecado, ainda que ele tenha uma aparência atrativa,  representará a morte; pois ele é fatal, e cobrará o seu salário no tempo devido [Rm 6.23].

13 julho 2010

A vontade de Cristo














Por Jorge Fernandes Isah

Dando continuidade ao tema do último post, e tratando de um assunto tão ou mais complexo do que aquele, ousarei falar sobre as vontades de Cristo. Primeiro, um esclarecimento:

Não tenho pretensão de ser a última palavra em nada. Reconheço minhas muitas limitações e incapacidades, mas se estou a tratar de alguns assuntos quase “tabus” entre os cristãos, com uma perspectiva diferente da adotado por Concílios, Sínodos e Confissões, deve-se ao fato de não concordar completamente com suas declarações, percebendo erros e distorções em relação ao texto bíblico. O que não quer dizer desprezá-las, nem quem as professa integralmente. Há, contudo, posições que me são inconciliáveis, originárias da má-conclusão das declarações ou decorrente da minha incapacidade de compreendê-las adequadamente.

De qualquer forma, tanto elas, quanto eu, somos feitos da mesma matéria: a imperfeição; portanto, não há infalibilidade em nenhum de nós. Por isso, exorto que o meu texto e outros materiais sejam lidos, mas, sobretudo, que a Escritura tenha preeminência sobre qualquer decisão que se vá tomar, sendo ela a última e definitiva palavra final. Oro para que Deus nos ilumine e capacite a compreender e buscar sempre a verdade.

Mais do que a simples polêmica, o meu objetivo é fazer com que meditemos sobre assuntos praticamente “mortos” entre nós, que têm sido negligenciados, e que abandoná-los significa comprometer o conhecimento de Deus. Além de serem assuntos que têm me instigado e me levado a estudá-los, os quais são fundamentais para a Igreja se manter firmemente fundada no Evangelho; sem outra pretensão a não ser expor o meu pensamento.

Então, vamos ao tema propriamente dito: a vontade de Cristo.

Não farei um apanhado histórico, por motivos óbvios. Mas definirei dois termos que serão importantes no decorrer da exposição, e que suscitou muitas disputas no passado, e ainda hoje é alvo de má-interpretação:
1) Monotelismo: doutrina que admite em Cristo duas naturezas, a humana e a divina, e uma única vontade. 
2) Duotelismo: doutrina que defende a existência de duas naturezas e duas vontades naturais em Cristo.

Resumo de alguns conceitos cristológicos:
1) Cristo é plenamente Deus e plenamente homem, contudo, sem pecado.
2) Cristo, portanto, tem duas naturezas: a divina e a humana, bem como duas vontades perfeitas e não-contrárias, sem que Ele seja duas pessoas, mas uma unipersonalidade.
3) As duas vontades de Cristo não se conflitam, coexistindo harmoniosamente; em que a vontade humana está sempre sujeita ou subordinada à vontade divina.
4) Cristo é o sujeito pessoal único e indivisível, cujas ações humanas e divinas são atribuídas a apenas um agente, que é o Deus-homem.

O dilema é: como duas vontades distintas podem subsistir em uma mesma pessoa? Não parecem necessárias duas pessoas para se ter duas naturezas e duas vontades? Acontece que há um princípio governante supremo entre as duas vontades: Deus.

“Afinal de contas, como também crêem os da ortodoxia histórica, o controle da personalidade do Redentor é dependente de sua natureza divina, portanto, com vontade divina. A vontade humana de Cristo sempre esteve submissa à vontade divina”[1].

Como alguns querem entender, não vemos nenhuma alusão de que a natureza humana de Cristo seja independente da divina, como se fosse algo além ou um acréscimo ao Logos; ao ponto em que é impossível distinguir-se nas ações do Senhor quem operou o quê, se a parte humana ou a parte divina, tendo-se em vista que Ele é Um, unio personalis.

Ao se fazer qualquer distinção e, por isso, a impossibilidade de Deus deixar de ser Deus e ainda continuar a sê-lo [o esvaziamento a que muitos se referem], estar-se-á invariavelmente comprometendo a sua unipersonalidade. Desta forma, o communicatio idiomatum ou comunicação de propriedades, na qual ambas as naturezas, divina e humana, passaram a ser propriedades da pessoa de Cristo, e a ela são atribuídas, remetem-me ao Logos. Em outros termos, o que estou a dizer é que ambas as naturezas do Redentor procedem do Logos, o Verbo, de tal forma que a natureza humana procede de uma única hypostasis [existência pessoal]: o Verbo eterno! Afinal, o Logos é o sujeito da encarnação.

Há uma única personalidade, a do Deus-Filho, o que não quer dizer que a humanidade de Cristo seja impessoal ou anipostática, a qual afirma que a natureza humana do Filho não constitui pessoa. A personalidade do Filho, ou seja, a sua natureza, suas propriedades essenciais, sempre existiram, são eternas, a despeito da encarnação. De tal forma que, “se o Filho não tivesse se encarnado, seria uma pessoa da mesma maneira... A natureza humana de Jesus Cristo existe somente em união com o Logos e pela união com ele, não tendo existência própria à parte dele. Essa natureza humana não tem subsistência independente”[2].

Uma outra forma de dizer o mesmo é que “a natureza humana de Cristo não ficou sem hipóstase, mas se tornou hipostática [personalizada] na Pessoa do Logos”[3].

Se voltarmos à minha afirmação na postagem anterior, veremos que disse o seguinte: 

"Apenas para não deixar a pergunta sem resposta, a qual poderei esmiuçar em 
outra postagem, acredito [sem me aprofundar no assunto], que o Cristo-homem é 
eterno, ainda que assumisse a natureza corpórea no tempo, pela encarnação, mas 
desde sempre foi o Verbo, Deus e homem, como os apóstolos dizem:
"O segundo homem, o Senhor é do céu" [1Co 15.47]
"Como também diz, noutro lugar: Tu és sacerdote eternamente, segundo a ordem 
de Melquisedeque" [Hb 5.6]
"O qual, na verdade, em outro tempo foi conhecido, ainda antes da fundação do mundo, mas manifestado nestes últimos tempos por amor de vós" [1Pe 1.20]
"No princípio era o Verbo, e o verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus" [Jo 1.1]"


Mas o que isso tem a ver com hypostasis e anipostasis?

A questão é que, rudimentarmente, afirmei uma posição que se pode chamar de “união enipostática” [ainda que ela não esteja completa e corretamente definida no que escrevi], ou seja, Cristo sempre foi a eterna segunda pessoa da Trindade, o Verbo, o Filho de Deus, “com uma natureza humana e sua própria natureza divina, e é a “pessoa” das duas naturezas”[4]. Em outra palavras, Cristo é o Logos que se fez homem, carne, e a ele pertencem tanto a natureza divina como a natureza humana, e de quem a Escritura trata em sua inteireza, totalidade, não compartimentado. 

Do ponto de vista lógico, pergunto: Cristo é santo? Cristo é perfeito? Cristo é puro? Cristo é justo? Cristo é sábio? Cristo é impecável? Se afirmamos que estes e outros atributos divinos estão presentes em Cristo, teremos de aceitar também a sua eternidade e imutabilidade. Não dá para dissociar Cristo Deus do Cristo homem, pois as duas naturezas é que o tornam o Cristo, o Filho de Deus. 

Senão, de qual forma entenderemos a sentença: “Jesus Cristo é o mesmo, ontem, e hoje, e eternamente” [Hb 13.8]? Vejam bem a relação desta afirmação de Paulo[5] com os versos de Apocalipse: “Graça e paz seja convosco da parte daquele que é, e que era, e que há de vir, e da dos sete espíritos que estão diante do seu trono... Eu sou o Alfa, e o Ômega, o princípio e o fim, diz o Senhor, que é, e que era, e que há de vir, o Todo-Poderoso... E eu, quando o vi, caí a seus pés como morto; e ele pôs sobre mim a sua destra, dizendo-me: Não temas; Eu sou o primeiro e o último” [v. 4, 8, 17].

Como já disse outras vezes, é impossível se adicionar alguma coisa ao Perfeito, seja muito ou pouco; é-se impossível adicionar ou aumentar algo à Pessoa, sem que a Pessoa deixe de sê-lo, portanto, afirmar que Cristo é, sempre, mas, de alguma forma, passou a ter, após a encarnação, algo acrescido à sua essência, parece-me insensato e irracional. Falar de Deus, o Verbo, Cristo e Jesus, separadamente, como se estivesse a distinguir uma porção ou parte divina e uma porção ou parte humana, é indicativo de que se está a falar de duas pessoas, não de uma, a qual é o Senhor Jesus Cristo, a segunda Pessoa da Trindade.

Paulo diz que fomos eleitos em Cristo com todas as sortes de bênçãos espirituais antes da fundação do mundo e predestinados para filhos da adoção nEle [Ef 1.4-5]. Se cremos no eterno decreto, como é possível Deus nos eleger eternamente através de algo temporal? E se a natureza humana de Cristo está na carne, e se ela é limitadora da sua natureza divina, ao ponto de se crer possível Deus esvaziar-se de Si mesmo, como explicar a imutabilidade, onisciência, onipotência de Deus? Pode Cristo deixar de ser Deus em algum aspecto e momento? Pode Cristo deixar de ser humano em algum aspecto e momento? Se pode, não estamos falando do ser imutável e perfeito, mas de um ser mutável e imperfeito.

Por isso, dissociar Cristo de Cristo, seja em qual condição ou por qualquer justificativa, não me parece bíblico, nem lógico.

Seguindo este padrão, entramos na questão da vontade do Senhor. Como definido nos termos iniciais, desde os primórdios da Igreja debatia-se se Cristo tinha uma ou duas naturezas, se era uma ou duas pessoas, se possuía uma ou duas vontades. A questão é: seria possível Cristo ter uma vontade, mesmo que seja um simples desejo, uma expectativa ou probabilidade, contrária à vontade de Deus? É concebível Cristo, como Deus e homem, ter duas vontades conflitantes, antagônicas, discrepantes? Até que ponto Ele pode querer algo que se choque com o divino?

O Senhor disse: “Porque eu desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou” [Jo 6.38]. Neste versículo é possível conceber dois ensinos:

1) O de que Cristo, Deus e homem, tem apenas uma vontade, que é a vontade da Pessoa, Cristo, resultando em um ato como conseqüência de uma decisão tomada [monotelismo]. Assim, há uma vontade, a de Cristo, que é a mesma daquele que o enviou, o Pai. Cristo tem uma vontade, que o levou a decidir fazer a vontade do Pai.

2) O de que Cristo, Deus e homem, tem duas vontades, as quais não são conflitantes mas consoantes, ambas colaborando harmonicamente, como duas energias em operação, por causa da suas duas naturezas, resultando na ação da Pessoa, Cristo, sem que a natureza humana seja um mero instrumento da vontade divina, sendo parte essencial da pessoa completa de Cristo [duotelismo]. Assim, há duas vontades que têm o mesmo propósito e se comunicam, levando Cristo a decidir fazer a vontade daquele que o enviou, o Pai.

Do ponto de vista soteriológico, a natureza humana de Cristo tem de ter uma vontade, não independente, não autônoma da sua natureza divina, mas concorrendo juntamente com ela para que Ele decida-se e aja unanimemente de acordo com elas, pois, de outra maneira, não haveria possibilidade dEle ser verdadeiramente humano, não podendo ser o Salvador.

Como Deus controla todas as coisas, inclusive as vontades, pensamentos, desejos e ações humanas, por mais que se possa intelectualmente dividir as vontades de Cristo em duas, elas serão sempre uma: aquela decretada por Deus. Por onde se raciocine, especule ou filosofe, no fim das contas, o que vale mesmo é aquilo que foi decretado na eternidade. Por isso, as vontades, mesmo de Cristo, não podem estar sujeitas a variações, não podem ser mutáveis, nem díspares, nem se indisporem. E a sua vontade humana estará sujeita e condicionada àquilo que a natureza divina estabeleceu para sempre, porque "Deus é o que opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade" [Fp 2.13]. 

Do ponto de vista ontológico, o ser de Cristo tem duas vontades, contudo a vontade humana não pode, em nenhum aspecto, anular ou reformular a vontade divina, alterando-a; e se são duas vontades com um único propósito perfeito e santo, onde todos os seus elementos são idênticos e concorrem para o mesmo objetivo, não há porque falar em dupla vontade, mas numa única vontade, coesa, indissolúvel, inseparável. De tal forma que Paulo chegou à seguinte conclusão: de que Deus opera em nós o que “perante ele é agradável por Cristo Jesus, ao qual seja glória para todo o sempre. Amém.” [Hb 13.21].  Ou seja, a vontade de Cristo é a vontade Deus, de tal forma que ele a quer operada em nós, “porque dele e por ele, e para ele, são todas as coisas; glória, pois a ele eternamente. Amém.” [Rm 11.36].

De outra forma, não teria o Senhor dupla personalidade? Não seria Ele ambíguo, esquizofrênico, indistinguível e não-real? De maneira nenhuma; pois nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade [Cl 2.9], logo, a perfeição.

Porque Cristo é um. E sua vontade, única; irretocável.

Notas: [1] “A União das Naturezas do Redentor”, Heber Carlos Campos, Ed. Cultura Cristã, pg. 47.
[2] Idem. Pg. 55
[3] História da Teologia Cristã, Roger Olson, Ed. Vida, pg. 250
[4]  Idem, pg 251
[5] Já disse anteriormente que não considero Hebreus um livro anônimo, mas, conforme a tradição histórica da Igreja, parte dos escritos do apóstolo Paulo; e, porque a minha Bíblia, ACF, da Sociedade Bíblica Trinitariana, considera-o como de sua autoria.

28 junho 2010

Jesus teve as orações respondidas?













Por Jorge Fernandes Isah



Responda!

... silêncio...

Vou dar mais um tempo para você pensar...

... Refletiu?... Então, diga?... Sim ou não?...

Primeiro, gostaria de dizer que Cristo é a segunda Pessoa da Trindade Santa, portanto, é Deus. São tantos os versículos que apontam a Sua divindade, que é desnecessário indicá-los. Qualquer conhecedor mínimo da Escritura não terá problemas em aceitá-la como verdadeira, pois Ele mesmo diz: “Quem crê em mim, crê, não em mim, mas naquele que me enviou. E quem me vê a mim, vê aquele que me enviou” [Jo 12.44-45].

Segundo, Cristo é 100% Deus e 100% homem. Igualmente há muitos versículos que confirmam esta assertiva. Também creio que o conhecedor mínimo da Bíblia não terá problemas em aceitá-la como verdadeira. E sempre tenho em mente que a humanidade serve à divindade, e, por isso, acredito que a humanidade de Cristo está a serviço da sua divindade, não o contrário. Ou seja, sempre que houver alguma dúvida, apelarei para a divindade do Senhor; exatamente por ela preceder e ser a origem da Sua humanidade.  Como está escrito: “E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança” [Gn 1.26]. Em outras palavras, o Cristo-homem existe pela vontade e poder de Deus, sendo Ele o Adão perfeito, o espírito vivificante, o segundo homem, o Senhor, que é do céu, diferente do primeiro Adão, a alma vivente, terrena [1Co 15.45-47]. O que me leva a meditar sobre a eternidade do Cristo-homem. Seria Ele eternamente homem assim como é eternamente Deus?

Apenas para não deixar a pergunta sem resposta, a qual poderei esmiuçar em outra postagem, acredito [sem me aprofundar no assunto], que o Cristo-homem é eterno, ainda que assumisse a natureza corpórea no tempo, pela encarnação, mas desde sempre foi o Verbo, Deus e homem, como os apóstolos dizem:
“O segundo homem, o Senhor, é do céu” [1Co 15.47];
"Como também diz, noutro lugar: Tu és sacerdote eternamente, segundo a ordem de Melquisedeque" [Hb 5.6];
"O qual, na verdade, em outro tempo foi conhecido, ainda antes da fundação do mundo, mas manifestado nestes últimos tempos por amor de vós" [1Pe 1.20];
“No princípio era o Verbo, e o verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” [Jo 1.1].


Porque Cristo é, sempre!


Esta afirmação pode parecer contraditória em relação ao parágrafo anterior;  acontece que o Cristo-homem veio a ser pleno na encarnação, quando assumiu a forma humana, visto Deus ser Espírito [Jo 4.24]. Porém, como essência, Cristo sempre foi Deus e homem, pois, caso contrário, haveria um dilema: se a natureza humana foi criada [como essência], Cristo não seria imutável, não seria eterno, logo, não seria Deus. E essa possibilidade é inimaginável e inadmissível à luz da Escritura.

Terceiro, Cristo orou várias vezes ao Pai. Também está na Escritura. Sem entrar nos motivos pelos quais Ele orava: se para nos ensinar; conseqüência da comunhão que havia entre Pai e Filho; se para demonstrar humildade, e revelar a obra de Servo Sofredor que viera realizar; esse não é o objetivo do texto.  Mas evidenciar que Cristo orava constantemente ao Pai, como fato inegável.

Quarto, como Deus, Ele sabia tudo o que iria acontecer. Portanto, não há possibilidade, nem a factibilidade, de se afirmar que Cristo pediu ao Pai o que não estivesse dentro do plano eterno; como algo realizável a se realizar, como algo exeqüível a se cumprir. Por qual motivo pediria o irreal e o não-existível?

O problema está em se acreditar que Cristo pediria e não seria atendido. Então, sabendo que não teria a sua solicitação considerada, por que oraria? Visto ser um com Pai [Jo 17.21], e estar em plena comunhão com Ele, tinha a resposta, antes de pedir. Como Criador do mundo, sem o qual “nada do que foi feito se fez” [Jo 1.3], e como sustentador “de todas as coisas pela palavra do seu poder” [Hb 1.3], parece-me improvável Cristo dirigir-se ao Pai pedindo o impossível[1].

Feitos os esclarecimentos iniciais, transcreverei os versículos que supostamente apontam a não concretização, parcial ou total, da oração do Senhor[2]:

1) "E dizia Jesus: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” [Lc 23.34].
Cristo pediu pelo perdão dos que o crucificaram, mas seria apenas daqueles que efetivamente levaram-no à cruz, naquele tempo? Pilatos, os fariseus, os soldados romanos, os judeus? Ou estaria a pedir pelos eleitos? Na verdade a igreja foi quem o crucificou; por nós, Ele morreu [At 20.28; Ef. 5.25;1Ts 5.10, Ap 1.5], não por todos os homens, muito menos os que já estavam condenados antes da fundação do mundo.

Alguém poderá inquiri: “Mas essa realidade já não estava definida? Jesus não sabia que pela Sua morte todos os eleitos estariam perdoados? Por que então clamou ao Pai o perdão?”.

Na cruz, mesmo diante de todo o sofrimento e injustiça cometidas contra Ele, o Seu coração estava tão cheio de amor e misericórdia para com os Seus, os eleitos, que Ele deixou-os evidenciados. Não como um simples exemplo de obediência, humildade, amor, compaixão, mas por ser obediente, humilde, amoroso e misericordioso em verdade. Falou do que o Seu coração estava cheio; falou do que sentia; mesmo sendo eu, você, e os remidos em todos os tempos, culpados pela Sua crucificação. Ele demonstrou o amor com que nos amou, não somente expiando-nos, mas também clamando pelo nosso perdão.

Outra implicação quanto ao sentido da oração do Senhor é dada pelo verso: “Eu rogo por eles; não rogo pelo mundo, mas por aqueles que me deste, porque são teus... E não rogo somente por estes, mas também por aqueles que pela tua palavra hão de crer em mim” [Jo 17.9,20]. Cristo jamais oraria genericamente por todos, indistintamente. Não oraria pelos eternamente condenados, nem por aqueles que não seriam perdoados. Como diz Isaías: “Mas ele levou sobre si o pecado de muitos, e intercedeu pelos transgressores” [Is 53.12]. O sentido de todo o Evangelho é Cristo orando pelos eleitos, o Seu povo, aquele por quem morreu e também ressuscitou.


2) "Pai, se queres, passa de mim este cálice; todavia não se faça a minha vontade, mas a tua" [Lc 22.42]. 
Se Cristo pediu ao Pai para afastá-lo do cálice, e não ser crucificado, estaria em contradição, pois, disse: “Agora a minha alma está perturbada; e que direi eu? Pai, salva-me desta hora; mas para isto vim a esta hora” [Jo 12.27]. Pertencendo-lhe a vida, e sabendo que a daria, e para isso veio ao mundo, por que pediria ao Pai para não dá-la? “Por isso o Pai me ama, porque dou a minha vida para tornar a tomá-la. Ninguém ma tira de mim, mas eu de mim mesmo a dou; tenho poder para a dar, e poder para tornar a tomá-la”  [Jo 10.17-18]. Cristo a deu, e poderia muito bem não a dar se quisesse, nem precisaria orar para não dá-la, mas desde sempre quis dá-la, assim como o Pai também quis que o Filho a desse, por amor de nós [Jo 12.30].

Como homem, Cristo inquietou-se, angustiou-se, afligiu-se diante da proximidade da morte, mas isso não quer dizer que Ele tenha, em algum momento, desejado não cumprir a obra que por sua vontade estava prestes a executar. Novamente, entra aqui um dos atributos divinos, a imutabilidade; e Cristo, sendo Deus, tinha a Sua vontade inalterável, perene, eterna. É uma definição complexa, porém, se levarmos em consideração que as duas naturezas de Cristo não se contrapunham, de que não havia oposição entre elas, mas uma coordenação tal que “cada forma de Cristo, como Deus e ser humano, desempenha as suas atividades próprias em comunhão com a outra”[3], jamais poderemos afirmar a mutabilidade do Senhor, e de que, assim, Ele não desejou realizar aquilo a que veio fazer. Não há como aceitá-la nem mesmo como uma mera hipótese, impossível de ser cogitada pelo Filho.

3) “Não peço que os tires do mundo, mas que os livres do mal” [Jo 17.15].
A questão aqui é definir o que seja “mal”. A palavra pode implicar em muitas coisas, desde o pecado cometido pelos eleitos; ao sofrer-se o mal, seja pelos pecados de outros, seja pela influência maligna; até mesmo a alusão direta ao diabo. A ARA apresenta a seguinte tradução: “Não rogo que os tires do mundo, mas que os guardes do Maligno”. Os versículos anteriores e posteriores dizem que o Senhor está a falar que o “mal” é o “sistema” que odeia e odiará cada vez mais tudo o que se refere a Deus, inclusive aos eleitos; porque Ele nos deu a palavra do Pai, “e o mundo os odiou, porque não são do mundo assim como eu não sou do mundo... não são do mundo, assim como eu do mundo não sou” [v. 14,16]

A alegação é de que Cristo orou para que fossemos livres do mal, mas os crentes não o foram, visto passarem por perseguições, sofrimentos, tribulações, dores, morte, etc. Sendo assim, a oração do Senhor não teve “eficácia” junto ao Pai, que não nos livrou do mal. Dizer que a palavra significaria “livrar-nos da condenação”, é apenas a tentativa de se mudar o foco da questão, pois Cristo sabe perfeitamente que o eleito “não entrará em condenação, mas passou da morte para a vida” [Jo 5.24], “e dou-lhes a vida eterna, e nunca hão de perecer, e ninguém as arrebatará da minha mão” [Jo 10.28]. Portanto, jamais será condenado. 


Mas será esse sentido impróprio?


Em várias passagens, Cristo orou por algo que sabidamente aconteceria, inapelável. Por exemplo, ora para que sejamos um com o Pai [Jo 17.21]; para o Pai guardar aqueles que deste a Ele [Jo 17.11]; para que fossemos enviados ao mundo, assim como o Pai o enviou ao mundo [Jo 17.18]; para sermos santificados na verdade, sendo a palavra do Pai a verdade [Jo 17.17], etc.

O verso que talvez clarifique o significado de “mal” aqui é: “Estando eu com eles no mundo, guardava-os em teu nome. Tenho guardado aqueles que tu me deste, e nenhum deles se perdeu, senão o filho da perdição, para que a Escritura se cumprisse” [Jo 17.12]. Evidencia-se o sentido de “preservação dos santos”, do Senhor nos resguardando da condenação, ao ponto em que nenhum dos que o Pai lhe deu se perderia. Cristo cumpriu e cumprirá a Sua missão de guardar e cuidar dos Seus, mesmo nos momentos em que a Igreja passe por aflição, dor, sofrimento. Estaremos sempre mantidos por Ele, para Ele, como está escrito: “Quem nos separará do amor de Cristo? A tribulação, ou a angústia, ou a perseguição, ou a fome, ou a nudez, ou o perigo, ou a espada?” [Rm 8.35].

Alguém poderá dizer: “Mas o significado de mal em Jo 17.15 não é esse. O termo refere-se ao Maligno, o diabo, visto a palavra grega usada ser ‘ho poneros’, a mesma utilizada em Mt 13.19”.

Tenha o “mal” o sentido de mau, maligno, dano, malfeitor, Satanás, etc, o certo é que Cristo nos preservará de sucumbir ao mal, de sermos destruídos por ele, enganados, feitos discípulos do mal, pois a nossa salvação foi planejada e executada de tal forma que somos preservados para ela, porque mediante a fé estamos guardados na virtude de Deus para a salvação, já prestes para se revelar no último tempo [1Pe 1.5]. Fomos reservados para o glorioso dia de Cristo, cuja missão foi a de nos salvar, mas também a de nos guardar completa e finalmente da condenação.

Portanto, a conclusão é: todas as orações de Cristo foram atendidas, confirmadas na palavra do próprio Senhor: "Pai, graças te dou, por me haveres ouvido. Eu bem sei que sempre me ouves, mas eu disse isto por causa da multidão que está em redor, para que creiam que tu me enviaste" [Jo 11.41-42]. Aqui o significado de ouvir não é apenas escutar, mas de ser atendido, ter a oração respondida, positivamente. Cristo estava à porta do sepulcro de Lázaro, o qual ressuscitaria como cumprimento da oração de Jesus. E tendo dito isto, clamou com grande voz: Lázaro sai para fora” [Jo 11.43].

E o defunto saiu.

Notas: [1] O fato do Senhor ser o Deus do impossível, e para Ele tudo ser possível, não quer dizer a realização daquilo que não estiver decretado eternamente. Isso implicaria na não-imutabilidade divina, na não-perfeição, na não-santidade, sugerindo que Deus é passível de engano, visto ser necessário corrigir seus planos e adequá-los aos acontecimentos no decorrer da história. E esse, como sempre digo, não é Deus, mas um "deusinho chulé", feito à imagem e semelhança do homem imperfeito e volúvel.

[2] Desenvolvi o texto a partir da preciosa pergunta do irmão Natan de Oliveira, no post anterior: “Como você explica a oração de Jesus ‘Senhor perdoa-os porque não sabem o que fazem...’?”. E por nunca ter considerado a questão, decidi refleti-la aqui detalhadamente, mesmo eu e o Natan termos iniciado o debate na seção comentários, já citada.
[3] Teologia Sistemática, de Franklin Ferreira e Alan Myatt, Editora Vida Nova, página 489, citando Mark Noll.